sexta-feira, 14 de julho de 2023

Morada (2022) de Eva Ângelo



por João Acciaiuoli Catalão

Confesso que adormeci. Algures antes da visita às obras de recuperação do Trindade. Não por causa do filme mas por causa do meu cansaço. Aconteceu o mesmo com os cinemas. Fecharam não por causa dos filmes mas por causa do nosso cansaço. Conto isso na expetativa de trazer à leitura pessoal que faço a mesma inteireza e cuidado que a Eva Ângelo colocou no seu trabalho. No ajuste dos enquadramentos feito em diálogo e empatia. Na delicadeza poética da costura e dos entrançados que sustentam a arquitetura do filme. Nos apontamentos espontâneos que regista aqui e ali pela cidade. No vagar e no sentido dos seus atravessamentos coreográficos. Retenho em particular as mulheres que se escutam atentamente dentro de si mesmas. E os homens petrificados por um toque de Midas de sentido contrário. Em empurrões e esgares de riso que trazem consigo para dentro do plano. Tocou-me particularmente ter visto o filme num dia em que fiquei na casa da minha mãe no Porto. E depois revisitá-lo como quem reaprende o caminho de regresso. Para o descobrir finalmente fora da tela. Num contexto celebratório memorável. Em que as senhoras da turma de cinema se tornavam elas próprias protagonistas de uma estreia cinematográfica. Eu sei que a Eva queria que víssemos no filme matrioskas. Pela natureza sedimentar complexa do seu processo artesanal de trabalho. Que realça ainda mais a consistência que resultou dessa gestação prolongada. Quando finaliza o percurso coletivo com a justeza de um fecho de abóboda. Como se um cargueiro pesado se transformasse em aeroplano num passe de decolagem. Escolho ver por isso no filme, no lugar das matrioskas que também lá estão, o movimento circadiano das aves. Em particular aquelas que acentuam os silêncios na cidade. Que encenam subtilmente no filme presenças que persistem em edifícios que já foram salas de cinema. E ganharam outros usos. E também desusos. Por vezes daninhos à dignidade com que foram projetados. Escolho o volteio circular dos pombos. Pela porosidade com que coabitam connosco as casas. E as alargam em relevos orográficos invisíveis. Os desenhos que riscam na paisagem têm para a Eva um sentido simbólico codificado. Que ela tomou como metáfora do pensamento no seu filme Revoada. Em que o toque de Midas acontece no sentido exato. Alinhado com o entusiasmo humanista do Laborinho Lúcio. Que emparelho com a força e a fertilidade tecedora da Madalena Vitorino no Água. Escolho ver a epifania da luz súbita que rompe a chuva noturna. Como um candelabro que se acende numa sala de espetáculos há muito encerrada. A anunciar o renascimento possível dos cinemas de proximidade. Com a cidade e com as artes cinematográficas. Mesmo que a plateia tenha sido imobilizada de forma insólita no espaço público. Como na transfiguração que a Eva aplica ao trabalho Treze a Rir uns dos Outros de Juan Muñoz. Com as suas figuras em ferro petrificadas como no Vesúvio. Sob o olhar feminino imperturbável da Justiça à porta do palácio que supostamente habita. Escolho a alegoria solar da República que traz na mão um ramo de oliveira para mediar o conflito que se forma no interior da narrativa. E a verticalidade incisiva da Elisa com os auscultadores na cabeça. A ouvir palavras que lhe ferem por vezes os ouvidos. E o modo como nos interpela com intensidade. Escolho ver a Maria José e as muitas vozes que se fizeram presentes na antestreia do filme no Trindade. Quase como um milagre. Porque a passagem do tempo impregna-se tanto em nós como na película. Tal como as gravações feitas no inverno. Quando reforçam de forma quase grotesca a alameda de plátanos deformados no Jardim da Cordoaria. Que perdeu a sua aura romântica original quando o Porto foi Capital Europeia da Cultura. E ganhou as figurações escultóricas que habitam agora também este trabalho. O filme da Eva Ângelo fala da perda das salas de cinema. E resgata memórias documentais do seu surgimento e dos seus tempos áureos. Conjugadas com testemunhos improváveis recolhidos numa universidade sénior. Num registo afetivo de rememoração e reciprocidade. Porque há olhares habitados sobretudo neste exercício demorado dentro do silêncio e da resiliência. E uma exaltação comovente do espaço de partilha comunitário. Cujo endereço na rua da Constituição é uma bandeira que remata a orbitalidade agridoce de um filme que é também morada. Com um filme dentro do filme. Numa odisseia feliz contada com humor e brilho nos olhos pela Maria Teresa. Que a Eva tornou nome de rua num enquadramento prévio. A mim fez-me voltar à minha experiência como programador cultural na Casa do Professor em Braga. E ao seu lar de porta aberta para professores aposentados. Onde a minha mãe pensava ir viver antes de se mudar para o prédio da minha irmã na Prelada. Fez-me sentir a idade que ela tem agora multiplicada num caleidoscópio sensitivo. Com fragilidades e memórias mais recentes que se perdem. Mas com a persistência de conhecimentos antigos de físico-química. Que foi o curso em que a minha mãe se formou em Coimbra. Onde conheceu o meu pai, que era estudante de direito. E desenhava repetidamente a casa que sonhava construir no futuro. Envolto em música clássica e fumo de cachimbo. O filme é feito assim também de pequenas memórias estaladiças. Que aceleram uma pulsação nostálgica de fundo. E que acredito possam provocar efeitos semelhantes em outros corpos expostos à mesma radiação fílmica. Que tem como cerimonial condutor uma cadeira vermelha no sótão. E coleções de livros arrumados cuidadosamente em prateleiras como marcadores de viagem. Com instruções de voo à mistura. Como a de Edgar Morin no seu O Cinema e o Homem Imaginário. Há tantas formas de viver o cinema. Tantas formas de recordá-lo. De o compartilhar em álbuns de famílias alargadas como esta que conhecemos aqui através do vaivém epistolar da Eva. A universidade sénior que o filme documenta é uma escola feita à medida da perseverança da sua fundadora. E não de quem queria impor-lhe outra perspetiva pedagógica. É a esse espaço de convívio e proximidade que o filme vai buscar uma polifonia invulgar de vozes narrativas. Que nos trazem as suas impressões e experiências enquanto espectadoras de cinema. Mescladas com os tempos fílmicos que manuseiam. E leem em voz alta. Mas que trazem também barreiras e frustrações que deixaram e deixam ainda marcas sociais profundas. Nesse mundo no feminino que o filme desvela encontramos ecos bem conservados da comunidade que alimentou a efervescência das salas de cinema no Porto. As suas recordações pessoais reativam as emoções e o sentido cultural das paisagens que ganharam outrora vida na tela. Ao mesmo tempo que refletem os ritmos sociais e urbanos que se cruzam com os primeiros movimentos cinéfilos. Vagamos assim também pela cidade do presente. Em busca de vestígios e transformações ocorridas nesse espaço comum de memórias. Que persistem e que também se perdem. Dando lugar tantas vezes a metástases comerciais higienizadas. Que tornam ainda mais invulgar o reaparecimento recente do Batalha. Que a realizadora integra discretamente na versão final do filme. Depois de uma visitação solitária ao outro lado do mundo. E se torna um bilhete para o futuro. Vagamos pela cidade tão presente. Para encontrarmos por vezes, em deambulações da câmara, nascentes cinematográficas em estado bruto. Como se em cada filme evocado, em cada afloramento antigo que resiste, pudesse estar uma semente que se atira ao ar num dia de vento. A expressão é uma alusão modificada ao título que a Eva utilizou para batizar um trabalho que fez no Alto Minho. Emergiu quando escrevia ainda a lápis o esboço inicial deste texto. Para transformar-se agora numa passagem urdida pela urgência. Vincadamente sensorial e analógica como a porta do tribunal que se abre de um filme para outro na trilogia de Kieslowsky. Ou a figura idosa obstinada que os atravessa. E pressenti aqui também a presença. Queria trazer essa ramificação poética como um sistema de filmes comunicantes. Capaz de irrigar a árvore seca do Sacrifício salvífico de Andrei Tarkovsky. E chegar por carta como antigamente a lugares obstruídos pela persistência do ruído e da aceleração na retina. Quem sabe nos consiga levar ainda a algum lugar do futuro onde a morada do destinatário seja igual à morada do remetente. Adormeci no filme por cansaço. E acordei depois imerso nele. Como se pelo meio algum estremecimento súbito tivesse aberto um atalho permeável ao invisível. Falo de atalho por ser uma palavra cara à minha filha. Em particular quando voltamos de um passeio que encontros casuais alongam. Ou no caso da Eva se fixam no filme. Não preciso de um mapa para me orientar entre as placas com nomes de ruas dos antigos cinemas que pontuam este trabalho. Enlaçadas com palavras soltas à deriva. Mas preciso saber Onde Fica a Casa do meu Amigo de Abbas Kiarostami. Que depois de ter sido evocado se avizinhou prodigiosamente da estreia do filme no Porto. Porque A Vida Continua. E o futuro sofreu um abalo sísmico fraturante como aquele que impele o cineasta iraniano em direção aos escombros. Numa viagem ficcionada em busca das crianças com quem havia trabalhado anteriormente. Morada é um filme habitado por filmes que são também casas habitadas por pessoas. Casas dentro de casas. Como as matrioskas que a Eva queria que víssemos. Mas é acima de tudo um olhar sobre um outro tempo que hoje nos escapa. E exige do espectador esse mesmo tempo como código de acesso. Procuro também a minha morada nas ruínas. Lembro-me que havia uma árvore isolada no alto da colina. E um anjo atento que nos ouvia. Como se fosse um divisor de mundos. Entre Tristão da Cunha e a Terra do Fogo. Porque há sempre um antes e um depois do que nos salva. Que é o que faz por vezes o cinema.



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