quarta-feira, 19 de julho de 2023

Street Angel (1928) de Frank Borzage



por António Cruz Mendes

Procurando repetir o grande êxito alcançado por 7th Heaven (A Hora Suprema), William Fox deu a Borzage toda a liberdade para a realização de um novo filme. Borzage tomou, então, como ponto de partida a peça de teatro de Monkton Hoffe, Cristilinda, e transformou-a radicalmente passando a história de Londres para Nápoles e de um meio burguês para os bairros miseráveis da cidade italiana, e regressou ao tema de um grande amor que se confronta com a dura realidade da vida. Além disso, convocou de novo Janet Gaynor e Charles Farrell para interpretarem a história de amor entre Angela e Gino. 

É bem conhecida a frase com que Tolstói nos introduz na história de Anna Karenina, que nos diz que “todas as famílias felizes se parecem, enquanto as infelizes o são cada uma à sua maneira”. Talvez por isso seja tão difícil filmar a história de um amor feliz sem cair em lugares comuns. Em Street Angel, Borzage arrisca essa possibilidade, não diferindo a vida amorosa de Angela e Gino para um suposto futuro que se seguiria ao happy end
 
O seu filme pode ser visto como um tríptico onde os sombrios volantes servem para realçar a luz que irradia do painel central, onde se conta a felicidade vivida por Angela depois do seu encontro com Gino. 

No primeiro “volante”, pinta-se a miséria em que ela vive, a morte da mãe e a sua prisão por roubo e prostituição. Na sequência do seu julgamento, vemos as autoridades que a condenam de costas, impessoais e em primeiro plano, enquanto Angela é filmada ao fundo da cena, reduzida a uma dimensão minúscula. Quando se abeira do juiz que, do alto, dita a sentença, só conseguimos ver os seus olhos espantados. Ela não é ninguém e, na prisão, as reclusas também já não são pessoas, mas apenas sombras projectadas nas paredes. Porém, quando foge, Angela recupera a sua vida, encontra uma família na comunidade do circo – e conhece Gino. 

O tema do painel central é o da felicidade de ambos, refugiados na pobre habitação onde, castamente, porque ainda não são casados, vivem em quartos separados. A rosa comprada por Gino, em vez da comida que faltava em casa, simboliza esse amor romântico que os une. Contudo, em Nápoles, a sombra do passado projecta-se sobre ele. A prisão de uma prostituta, avistada pelos dois da sua janela, é um sinal premonitório. “Talvez ela não tenha culpa”, diz Angela, assustada. “Elas só têm a si mesmas para se culparem”, responde Gino. E é quando, finalmente, Gino recebe uma grande encomenda, a pede em casamento e brinda ao futuro dos dois, um futuro que se adivinha de riqueza e felicidade, que esse passado bate à porta na figura de um polícia que reconhece Angela, a prostituta e ladra que fugiu da prisão. Numa sequência de planos em montagem paralela, vemos Gino sonhar com os filhos que vão ter, com a ventura que os espera, enquanto, lá fora, o polícia olha para o relógio. O tempo que deu a Angela para se despedir está-se a esgotar. O sino da igreja dá as horas, é o momento de partir. E a montagem paralela surge de novo, desta vez ensaiando um diálogo imagético e sonoro, quando os dois se despedem, assobiando O sole mio

Gino ainda não sabia que essa separação seria por muito tempo. No segundo volante deste tríptico, regressamos ao mundo das trevas. Angela está na prisão e Gino, desconhecendo o seu paradeiro, mergulhado no desgosto e incapaz de pintar, deixa-se ficar pelos bares, onde reage violentamente à abordagem de uma prostituta. Mais tarde, informado por ela do destino da sua noiva, decide voltar a pintar. Terá como tema uma mulher com uma alma demoníaca escondida sob uma cara de anjo. Procura o seu modelo entre as prostitutas, nas docas de Nápoles – e depara-se com Angela. Enlouquecido, tenta estrangulá-la e persegue-a por vielas e escadarias, até que a encontra aos pés de um altar, sob o retrato que ele próprio pintara, mas retocado por um falsário que transformou Angela numa santa, para fazer passar a obra de Gino pela obra perdida de um pintor setecentista. Então, nessa falsificação, ele descobre a verdade e a pureza do amor triunfa sobre a baixeza do mundo. 

O melodrama exige do público uma disponibilidade que supõe uma suspensão temporária do nosso juízo racional. Estamos num mundo para o qual apenas a emoção é convocada. Mas, para além disso, todos somos sensíveis à beleza lírica dos movimentos da câmara que nos levam por essa Nápoles de papelão, escura e enevoada, onde se canta e onde se sofre. Griffith foi, como se sabe, o pioneiro da montagem paralela, e terá inspirado Borzage. Quanto aos impressivos contrastes de claro/escuro (a camisa branca de Gino, percorrendo as escuras vielas de Nápoles…) e à figuração fantasmática das sombras projectadas nas paredes, serão, talvez, uma herança do expressionismo alemão que Borzage poderá ter reconhecido em Murnau. Mas, o seu cinema tem, sem dúvida, uma marca própria e ela faz dele um dos grandes mestres do cinema mudo.



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