quarta-feira, 30 de outubro de 2019

150ª sessão: dia 31 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Para fechar o ciclo de Outubro que nos tem ocupado, convocamos os aforismos e profecias de Jean-Luc Godard, monstro sagrado do cinema mundial. O seu último filme, O Livro de Imagem, de 2018, será a nossa próxima sessão no auditório da Casa do Professor.

Em entrevista a Dmitry Golotyuk e Antonia Derzhitskaya, para a Débordments, o realizador disse que o filme "começou mesmo quando pensei nos cinco dedos. Disse a mim mesmo: "Vamos fazer um filme em que há cinco dedos e depois o que os cinco dedos fazem juntos, a mão." E foi aí que pensei em... talvez depois noutra parte. Mas isto levou tempo. Os cinco dedos vieram rápido: o primeiro dedo são remakes, cópias; o segundo dedo é a guerra, e depois encontrei um texto antigo em francês, Soirées de Saint-Pétersbourg (Joseph de Maistre, 1821); e depois o terceiro era um verso de Rilke ("Essas flores entre os trilhos, no vento confuso das viagens"); o quarto dedo era—certo, os dedos vieram quase ao mesmo tempo—era o livro de Montesquieu, Do Espírito das Leis (1748); e o quinto era La région centrale, que é de um americano, Michael Snow [nota: Michael Snow é canadiano], que eu encurtei: já não vemos isto tudo [ele faz um gesto a imitar uma panorâmica circular]. E depois tive a ideia de que a região central era o amor entre um homem e uma mulher, o que é retirado de A Terra de Dovzhenko."

Quando lhe perguntam, na mesma entrevista, porque fez um filme sobre a Arábia, Godard responde que "Ah, bom, pode-se dizer que funciona bem. Vem de mim. Das mulheres árabes por quem estive apaixonado e depois não resultou, coisas assim. Mas havia qualquer nos árabes que eu gostava. E depois, na época do meu avô, com o cão Cassaba, o meu avô tinha um motorista e este motorista era argelino. Eram pessoas burguesas mesmo ricas e nós comíamos de pratos decorados com cenas da conquista da Argélia. Tudo isso tem de desempenhar um papel. E, então, desde que falamos do Médio Oriente nos dias de hoje. Há muitas coisas assim. Eu tive um tio que era um capitão de não sei o quê e que fazia parte de... na Síria antes da guerra, quando a Síria era um protectorado francês, enquanto o Iraque era um protectorado inglês. Isso tudo."

Num dos textos publicados pelo site À Pala de Walsh no seu dossier sobre Jean-Luc Godard, Inês Lourenço escreveu que "é com os cinco dedos de uma mão que Jean-Luc Godard se lança – nos lança – no folhear deste Le livre d’image (O Livro de Imagem, 2018). Vamos pensar com a mão. Vamos abrir com uma aleatoriedade reflectida as páginas de um arquivo em ebulição, imagens em contacto com a lava de uma secreta atividade vulcânica. A que é que nos podemos agarrar? A um discurso febril, palavras inteiras ou retalhadas, frases reunidas num cortejo sincopado, umas roubadas outras consubstanciadas na voz quebrantada do próprio Godard. São senhas para entrar na performance onírica do filme-livro, onde filmes (seus e dos outros), pinturas, guerra, sangue, Oriente/Ocidente, o mundo árabe e outras arqueologias materiais e imateriais, nos ferem o olhar com uma beleza ardente e triste.

"Aliás, não sei se há imagem melhor para traduzir a ideia desta experiência senão aquela famosíssima do corte do olho em Un chien andalou (Um Cão Andaluz, 1929), de Buñuel, que surge neste Le livre d’image como um comentário pungente. Godard corta-nos o olho com imagens-lâmina, fragmentos de uma oração profana que seduz pela sua energia peculiar. Como diz o cineasta a certa altura, citando Brecht, “só o fragmento tem a marca da autenticidade”. E é de pedaço em pedaço que se tacteia a verdade desta montagem, trespassada por um sentimento de pesadelo em noite de trovoada."

Na folha da Cinemateca sobre o filme, republicada no mesmo dossier, Maria João Madeira propõe que "haverá muitos textos, interpretações, sobre este Le livre d’image, possivelmente muita escalpelização. A matéria é vasta, a vontade de decifrar fontes e subtilezas, irresistível. A fixação que JLG tem em trabalhar determinadas imagens, frases soltas, também convida a isso. É por exemplo impressionante perceber que uma tirada importante “sobre” recordações destroçadas em Adieu au langage se ouve em fundo como diálogo de um filme na cena do namoro numa sala de cinema de Patricia Franchini / Jean Seberg e Michel Poiccard / Jean-Paul Belmondo em À bout de souffle. Mas enfim, é outra história. Aqui, tentar-se chegar a como JLG faz confluir a História, de olhos postos no mundo árabe, e o cinema, com o seu olhar que vem de longe e vai fundo, sem deixar nem uma nem outro. Não deixa. Os Remakes podem ser o primeiro dos cinco andamentos e A Região Central o último, mas contaminam-se. Os encadeamentos entre os cinco passos têm uma lógica e dirigem-se sem tréguas ao mundo de hoje, certo. Mas nem por isso estes cinco “passos” se vão dispensando. Como os ditos cinco dedos que, juntos, compõem a mão, com a qual é preciso pensar. “Na harmonia, os acordes produzem melodias. No contraponto são as próprias melodias de cujo inverso resultam os acordes.” Le livre d’image move-se no território do contraponto. 

"O primeiro raccord de Le livre d’image talvez se faça fora de campo. Se nos lembrarmos que as duas últimas frases de Adieu au langage são “Malbrough partiu para a guerra! Não sabe quando voltará!”, talvez nos ocorra que este filme seguinte está lá. “A guerra aí está”. É de um mundo em guerra que JLG fala, zangado. Com as repetições da História por exemplo. Por isso este filme a toma por matéria, por isso, e por tudo o resto propondo a sua novidade. É um filme novo de um homem velho de idade, que quando se engasga na sua própria rouquidão acelera o ritmo e continua, e deixa o atropelo em si mesmo sobrepondo a sua voz em dois tons. Zangado, mas não aniquilado. “Esperança ardente”, diz ele. “Assim o passado era imutável assim as esperanças permanecerão imutáveis e aqueles que um dia quando éramos ainda jovens tinham alimentado… esperança ardente de se indagarem… quando nós o fizermos… e mesmo que nada tivesse sido cumprido como nós havíamos esperado isso em nada alteraria as nossas esperanças.” Mesmo no fim, volta o cinema, é a dança de Ophuls na sobre-exposição da imagem electrónica de Godard no século XXI, calada a banda de som. Ponto final mudo num filme que dá a ouvir a “tridimensionalidade” do som, mostrando o que serve um desenho sonoro de múltiplas pistas."

Até Quinta!

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