domingo, 20 de outubro de 2019

Stromboli (1950) de Roberto Rossellini



por João Bénard da Costa

Para se perceber os hasards deste filme tem que se começar pelo primeiro: Ingrid Bergman. 

A história é muito conhecida, Ingrid contou-a em pormenor nas suas célebres memórias (“My Life”), Rossellini também, e por isso a vou resumir. Foi por acaso – segundo ela jurou – que Ingrid Bergman, em 1948 a mais famosa e bem paga vedeta do mundo (é célebre a anedota hollywoodiana que refere como lugar-comum das conversas dos anos 40 “hoje vi um filme sem Ingrid Bergman”) entrou numa sala de cinema, para ver um filme de que nunca tinha ouvido falar: Roma, Città Aperta. O que viu maravilhou-a, pois que – Ingrid dixit – “nunca na minha vida tinha visto um filme assim, nem imaginava que os pudesse haver”. Voltou e voltou ao cineminha de bairro que projectava o filme de Rossellini, já “velho” de três anos. E amadureceu a decisão: escrever uma carta a Roberto Rossellini – Cinecittá – Roma – Itália, oferecendo-se para trabalhar com ele, fossem quais fossem as condições. 

Este simples acontecimento marca uma revolução na história do cinema e na história de Hollywood. A mais célebre das stars – em percurso inverso ao de Greta Garbo, Marlene Dietrich, Vivien Leigh ou tantas outras – estava disposta a trocar a capital do cinema pela Europa e – mais do que isso – achava que se faziam melhores filmes na Europa do que em Hollywood. Vinte anos antes, Louise Brooks achara o mesmo e trocara Hollywood pela Lulu de Pabst. Mas este teve que insistir e Louise era um “bicho” muito raro e muito rebelde (aliás, pagou com a carreira essa rebeldia). Além disso, o cinema alemão de 28 tinha reputação comparável ao americano que, por isso mesmo, lhe roubou, um a um, todos os grandes (Lubitsch, Murnau, Leni, Jannings, Marlene e dezenas de outros). Ingrid Bergman era tudo menos rebelde (ou não tinha imagem de o ser), estava instalada em pleno star system (no alto do firmamento) e a crítica americana tratava sobranceiramente o incipiente cinema italiano dito “neo-realista”. Que o símbolo de Hollywood caísse aos pés do símbolo do neo-realismo (Roma, não Rossellini) é que era a revolução de que falei. 

A carta de Ingrid chegou às mãos de Rossellini a 8 de Maio de 1948, dia em que o realizador festejava o seu 42º aniversário. Apesar do prestígio de Rossellini na Europa, apesar do êxito de filmes como Roma ou Paisà, o cineasta não acreditou no que lia. E julgou tratar-se de uma brincadeira de alguém decidido a ver até onde chegava a mania das grandezas dele. Nem respondeu. 

Mas Ingrid insistiu e Rossellini acreditou mesmo. Foi até à América. Quando os estúdios perceberam o que se podia passar, usaram o velho ditado que manda juntarmo-nos aos que não podem ser vencidos. Roberto podia dirigir Ingrid mas em Hollywood, num filme aprovado por Hollywood. Isso era exactamente o que nem um nem outro queriam. E, em 49, sem dizer água vai (ou disse-o de outra maneira) Ingrid Bergman voou de Londres, onde filmara sob a direcção de Hitchcock Under Capricorn (que detestou) para aterrar em Roma e daí partir para a Ilha de Stromboli para filmar em décors naturais (o que jamais lhe havia sucedido) uma história escrita por muitos e mais ou menos em borrão. 

O resto é conhecido. Ingrid apaixonou-se também por Rossellini e começou a viver com ele, ainda formalmente casada com o médico sueco que fora o seu primeiro marido. A escandaleira que isso deu só em parte foi ditada pelo romance heterodoxo (muitos houve antes, que os estúdios calavam, como tantos outros). A grande razão é que Hollywood não perdoou essa fuga e resolveu ter muito menos fair play do que teve – ao que parece – o marido “enganado”. Era preciso que Ingrid fosse esmagada e que o filme fosse um fiasco. 

Quando Stromboli se estreou (distribuído pela RKO) e amputado e remontado, houve o fiasco. “When things get dull, they throw in a little sex” escreveu um reputado crítico americano da época. A frase valia mais para o que Hollywood fizera do que para o filme (com muito pouco sexo) e que não era o “20 minute travelogue of Stromboli in an 89 minute film”, como também se escreveu. E Bosley Crowther no “New York Times” advertia os leitores que “the much discussed Stromboli is neither good Bergman, good Rossellini, nor good anything”. E muitos anos passaram até que alguns happy few descobrissem a beleza desta obra, muitos anos avançada em relação à sua época, e que, ainda por cima, nada tinha de “neo-realista” no sentido usual do termo. 

Mas um dos aspectos mais curiosos deste filme – para mim – é ver como Ingrid Bergman – menos “maquilhada” do que nunca, e jamais o fora muito – sem actores a seu lado capazes de lhe darem réplica (Mario Vitale ou Renzo Cesana, eram actores de secundaríssimo plano) e rodeada de povo, povo (não actores) manteve uma imagem que, para mim, é já a dos seus filmes de Hollywood. Sempre ela me pareceu como tanto escrevi (e pensem em Intermezzo, em Gaslight, em Spellbound, em Notorious ou em Under Capricorn) a permanente estrangeira que misturava à sua doçura a capacidade de ser a misteriosa detonadora das forças do mal. Parecia atrair masoquisticamente esse mal que chegava mais para desgraça dela do que dos outros. Ora, Stromboli, aparte muitas outras coisas e já lá vou, é isso mesmo: a mulher que vem doutro mundo (o campo de raparigas, a Checoslováquia) e, ao casar com Antonio e entrar em Stromboli, desencadeia não só a hostilidade popular (compreensível face à estrangeira) mas o oculto movimento das forças subterrâneas – acompanhando, imperceptivelmente o que se passa nos subterrâneos dela – até à explosão final, em todos os sentidos da palavra. Paradoxalmente, quando Rossellini julgou revelar ao mundo uma nova Ingrid Bergman, surgiu quanto a mim, o paradigma de tudo quanto Hollywood antes, nela, deixara entrever. E Stromboli é um filme sobre a progressão da auto-destruição de Karin-Ingrid, um filme em que, ao contrário do “nada se passa” que a crítica da época acentuava, tudo se passa no interior de Karin, num processo ditado não por acontecimentos mas por actos, que sinalizam tanto o conflito que opõe Karin ao espaço envolvente, como a metamorfose interior, jamais explicitada, da personagem. Estamos em pleno universo rosselliniano: “universo de actos puros, insignificantes por si próprios, mas preparando, mesmo a despeito de Deus, a súbita e maravilhosa revelação do seu sentido” (Bazin). 

Este filme, duma beleza alucinante, é um filme sobre o cosmos. Os três elementos – terra, água e fogo – que dominam a obra, marcam, mais do que a hostilidade dos habitantes da ilha, a separação e desarmonia de Karin, a mulher que não sabe o significado da palavra terra (“como se diz terra em inglês”?) que cai na água, na única sequência em que entra no mar, e sobre a qual desaba o fogo do vulcão, cuja erupção começa exactamente quando ela acende o fogão da sua casa. 

Rejeitada pelo espaço físico e humano, Karin só na espantosa sequência final, quando redescobre, ao mesmo tempo, as lágrimas e a maravilha do mundo (what beauty!), é capaz de clamar e invocar “Deixei que se aproximassem de mim os que não me interrogavam e deixei que me encontrassem os que não me procuravam”. A epígrafe de Isaías que antecede o filme assume, nesse momento, a sua plena significação. 

Stromboli é o poema da criação. 

in Folhas da Cinemateca.

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