por Bernard Eisenschitz
Caro Jean-Luc,
Obrigado por me ter convidado a ver O Livro de Imagem (...)
Com as diversas fontes e formatos, o senhor recria uma matéria pictórica. Deformada, re-colorida, ampliada com o grão, reenquadrada.
Bloqueada toda a sedução das imagens e também do texto, balbuciante, trémulo, interrompido, encoberto.
Nas interrupções constantes, ser partilhado entre o que é representado e a máquina do cinematógrafo com o seu desenrolamento, as suas perfurações, a sua decomposição. Reencontrar a descontinuidade com os meios do digital.
A definição muito justa e bela do contraponto dá uma chave.
Ondas, chamas, bombardeamentos, exércitos, a história e o mundo num espectáculo estrondoso à Dovjenko ou à Vidor.
Um grande fluxo sinfónico. Mas não para contar uma história. «O cinema, de forma mais genuína». Como o primeiro leitor de Moby-Dick (segundo Giono):
– Não é um livro. – Não, diz Melville.
Isto não é algo que o torne popular, diante do digital onde se vê tudo e nada por trás (passei por essa experiência nos filmes de Vigo, espero ter evitado isso no final).
Isto já supondo que ouvimos o que nos diz. É o que há de surpreendente no filme.
«Torna-se necessário chamar a atenção», de facto. Mas isso não foi mostrado assim, como às vezes se diz, com os governos de animais selvagens de Hugo.
Os remakes foram inventados por Marx no seu Louis-Napoléon. A história repete-se, mas aqui não como farsa. As falhas morais confundem-se com crimes de Estado. Há criminosos que só existem por causa da guerra. A humanidade está-se a destruir a si própria. Há anos que a guerra está por todo o lado, de forma cada vez mais literal, no sentido de Goya ou Joseph de Maistre (eis como se explica a presença deste). Segue-se a habituação.
Dizer que O Livro de Imagem é de uma grande coragem e sem precedentes é uma banalidade. Mas é o sentimento que me vem à mente.
É verdade, como dizem os jovens que lhe escrevem em “Lundi matin”, que o senhor é o único que, etc. (Eles não sabem quão certos estão, estou curioso para que vejam este.)
O senhor sempre esteve na história, pensando para que é que o cinema devia servir.
A partir das Histoire(s), era acima de tudo disso que se tratava, mais do que a cinefilia que conta as suas pequenas histórias (não mal).
Desta vez, a história é a própria matéria.
De facto não se afastou do cinema, só não é mais um amor dominante.
Ele serve como a caixa de impressão em que o tipógrafo analfabeto de Fuller encontra os caracteres a toda a velocidade.
E o senhor olha para o caracter, o hieróglifo com que Eisenstein sonhava. (Ele também, as suas três aparições são magníficas, a coruja, as mãos sobre a Bíblia e o cavaleiro teutónico. Ele quis fazer a sua catedral das artes, completamente sozinho. A sua resistência era já a da esperança, a sua solidão também.)
Encontra todas as imagens nos filmes ou nos velhos jornais de actualidades. É mais que justo. Melhor ainda, se Ridley Scott serve para preencher uma caixa de impressão.
E para não se desviar do cinema, bastam dois longos planos do Plaisir em que se vêm corpos em movimento e que dão essa mesma definição.
O pensamento desenvolve-se nas imagens e nos sons («um pensamento / virá / em seguida», como numa colagem que uma amiga tinha feito pegando em textos no ecrã das Histoire(s)).
É um bloco e é articulado como os cinco dedos... ainda uma dessas coisas que eu não compreendia no papel.
Por fim, mesmo que as re-utilizações das Histoires sejam o que me deixa menos curioso – não se muda de caligrafia – adoro a ideia da imortalidade através dos filmes líquidos, de Vertigo a Ruby Gentry passando por The River.
E os momentos de calma da Arábia alegre em que vejo qualquer coisa da felicidade de Barnet: o pôr-do-sol, um barco no mar que brilha, os cantos mundanos de Maghreb que representam a Arábia inteira, a que temos atrás dos olhos.
Obrigado mais uma vez.
Com amizade,
B.E.
in dossier de imprensa de Le Livre d'image
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