terça-feira, 5 de novembro de 2019

151ª sessão: dia 7 de Novembro (Quinta-Feira), às 21h30


Os nossos próximos meses vão ser dedicados a uma das figuras mais fascinantes e singulares das últimas décadas do cinema português: Manuel Mozos. Produto da escola Superior de Teatro e Cinema da Lisboa dos anos 80, teve como professores homens da cepa de João Bénard da Costa, António Reis, Luís Miguel Cintra ou Paulo Rocha. Para dar início a esta retrospectiva, mostraremos a versão do realizador de Xavier, filme charneira do cinema português, e a nossa próxima sessão.

Em entrevista a Miguel Cipriano, Mozos falou sobre os problemas de produção do filme, dizendo que "previmos arrancar numa determinada data, mas depois decidimos adiar um tempo, e quando realmente se arrancou para o filme, o ambiente, a equipa e o trabalho dos actores deixaram-me bastante satisfeito. Tínhamos feito um mapa de quase nove semanas, mas a partir da terceira semana começou a haver problemas de pagamentos, e na quinta semana houve uma pequena paragem. As coisas negociaram-se e o filme foi retomado ao fim de um dia, mas quando estávamos a chegar ao fim da oitava semana voltámos a parar e eu julgava que a coisa seria resolvida. Na altura estava aborrecido, mas não imaginando o que se ia passar. O filme parou mesmo e não se encontrou maneira de o retomar, embora se tivessem feito vários esforços. O filme parou porque os técnicos e os actores não estavam a ser pagos, e obviamente que as pessoas não estavam contentes com a situação. Isto não aconteceu por culpa do Joaquim, mas sim porque uma das outras pessoas que estava à frente da produção tinha feito o orçamento a contar com uma participação de um produtor francês, e não se precaveu de garantir o estado financeiro desse produtor, que, veio-se a descobrir, estava falido. Obviamente que a pessoa responsável por isso me aborreceu, mas não foi uma situação de desviar dinheiro, foi uma coisa um bocado ingénua. Eu confiei naquela pessoa não prevendo a situação, e ainda hoje em dia não me interessa saber para onde vai o dinheiro."

Por alturas da estreia do filme, doze anos depois do início da rodagem, Kathleen Gomes escreveu que «coincidência ou destino, foi Paulo Rocha quem acabou por assumir a produção de Xavier, o que permitiu concluir o filme. E Verdes Anos tornou-se emblemático para uma série de jovens cineastas que estavam a começar ao mesmo tempo que Mozos. O tempo tem destas coisas: se tivesse estreado à altura, Xavier teria sido colocado ao lado de outras primeiras obras dos anos 90, com as quais partilha temas e obsessões - a orfandade ("seríamos nós próprios a querer ficar órfãos", pergunta Mozos, referindo-se a uma ruptura com o Cinema Novo), a passagem da infância -, como O Sangue, de Pedro Costa, A Idade Maior, de Teresa Villaverde, ou Nuvem, de Ana Luísa Guimarães.

«"Se virmos os filmes dessa época em conjunto, realmente há muita coisa que os liga, mas o que é curioso é que não éramos nenhum grupo como a geração de 60, não tínhamos um programa. Foi espontâneo, quase uma coisa misteriosa." Retrospectivamente, Xavier é quase um filme visionário, em relação ao qual haverá a tentação de reconhecer-lhe o retrato de uma geração de realizadores sobre a qual foram postas grandes esperanças mas onde alguns ficaram pelo caminho. "Acreditávamos que podíamos fazer filmes e que as coisas iriam mudar. Acho que fracassámos. Mas nesse fracasso há coisas muito positivas, como o trabalho de Pedro Costa e não só."»

Num texto muito sentido publicado no seu antigo blog, João Mário Grilo grita que "Xavier não merecia tal destino, embora, em boa verdade, se possa (e deva) dizer que é o país – que cada vez mais se estupidifica – que não merece tal filme. E Xavier até esteve para nunca ser. Durante doze anos, Manuel Mozos lutou para conseguir que o seu filme sobrevivesse à falência do co-produtor francês. Entretanto, chegou mesmo a estrear o seu segundo filme (Quando Troveja, em 1998), e não é o menor dos sortilégios que, num país de raros filmes e raros cineastas, uma primeira-obra estreie depois da segunda. Isso marca bem uma diferença – o filme quase parece de "época" –, mas as diferenças de Xavier não são realmente essas. Já antes de mim houve quem escrevesse que se Xavier tivesse estreado na altura em que foi feito, muita coisa podia ter mudado no cinema português. Porque Xavier – história de um rapaz (Pedro Hestnes) em rota de colisão com uma cidade (Lisboa) – esconde, realmente, a promessa de um novo cinema novo português, o cinema de uma nova gerarão que é, talvez, doze anos depois, o que mais falta nos faz. 

"E nada disto é só (sem o deixar de ser, completamente) por o filme tanto nos fazer lembrar a alma, o sangue, o nervo e o músculo de Verdes Anos, filme realizado por Paulo Rocha, há quarenta anos, e que iniciou, então, uma revolução radical no status quo apodrecido da cinematografia portuguesa da altura. Xavier é um filme com um idioma próprio, sonhado e feito, totalmente, nas margens das imagens dominantes (mesmo as do cinema, para já não falar das da televisão), e que parte, solitariamente, à descoberta de uma nova poética portuguesa, que não é só cinematográfica. Do filme, guardo muita coisa: por exemplo, o risco elíptico e brutal, que fende o filme em ligações surpreendentes, o "casal" Hestnes/Isabel Ruth (Laura, a mãe), a relação fraterna entre Xavier e Hipólito, o fundo palpitante da cidade (soberbo o plano em que Xavier conserta uma antena num telhado de Alcântara). De tudo isso, no entanto, o que mais me fascina é essa vontade de tecer todo um filme à volta de um único protagonista, um grande, paciente e magnífico gesto de humildade, absolutamente incomum no cinema português, e que faz com que Xavier, apesar do atraso com que nos chega, mantenha, para sempre – sabemo-lo hoje – a força genuína de uma mudança, que o filme nunca deixará de ser, realmente. Foram doze anos; mas parece, apesar de tudo, que ainda há tempo."

Até Quinta!

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