por João Palhares
“Can you imagine being lit up by some hot shells?
Imagine being tossed around and put in jail,
Imagine life when you can't get from under.”
Snoop Dogg, in «Imagine», última faixa de The Blue Carpet Treatment (2006).
Talvez não se tenha dado nem se tenha pensado o suficiente num lugar para Xavier no cinema português. Certamente devido ao seu tempo de gestação: é um filme de 1992 a estrear em 2003. Não devia importar, não devia querer dizer nada, isso tudo. Podia-se pensar se um filme que não estreia na “sua” década não poderia influenciar o resto, se não podia pairar nas consciências pela sua não-existência de dez anos, se não resolvia um conflito de gerações no cinema, se não confirmava que era possível um verdadeiro trabalho de actores por estes lados, se não impunha Pedro Hestnes como personificação suprema de uma geração ou como mito fundador de uma juventude revoltada e sedenta de sangue, quando o sangue é a própria vida. Mas faz-se pouco disso e por muitas razões, sendo a principal a sua quase total invisibilidade.
Manuel Mozos diz preferir as "pequenas coisas" ao "que é importante" ou às grandes histórias, porque "isso está salvaguardado"[1], e Xavier transformou-se numa dessas "pequenas coisas" que se têm de defender às vezes em detrimento do que supostamente importa. Essa sua preferência está também patente nas "ruínas" que desencantou no documentário de 2009 do mesmo nome, no período insólito que seleccionou para a série que Pedro Éfe produziu para a RTP, "Síntese Histórica do Cinema Português", nada mais nada menos do que a década e meia de que faz parte o chamado "ano zero" do cinema português, em que não se produziu filme algum (Mozos realizou o quarto episódio dessa série, Tristes Anos - 1945-1960). Nas imagens que guardou de Lisboa no seu Ponto de Vista de 1994 sobre a cidade no cinema. E no contínuo Nogueira, no Luís, no António com dores de corno da Rute e do Pedro, na rebelde Diana que tenta ajudar o pai Gabriel, separando Madalena do Miguel.
Em Xavier talvez não hajam grandes actos heróicos, pelo menos na acepção que lhes costumamos dar, mas normalmente é a vida que transforma as pessoas em heróis ou heroínas, e é a vida que vai comandando as acções de Hipólito (José Meireles), Rosa (Cristina Carvalhal), Luísa (Sandra Faleiro), a irmã Luz (Isabel de Castro) e Xavier. O que é pagar as contas e as multas, andar com uma mãe muda e traumatizada de um hospício para outro, de um lar para outro, pagar isso, pagar para trabalhar, roubar, discutir com os namorados, perder o emprego, mas também fumar, "falar com os índios", beber, chamar maricas aos amigos, saltar e dar golpes de karaté num parque, combater a tristeza dos dias com o amparo da noite.
Xavier retrata uma Lisboa mais negra do que branca, um passado e uma infância que não acabam no seu tempo e que regressam ao presente da personagem principal do filme. Retrata uma sede tocante de existir, quase como acto de resistência. Contra tudo, consciência, remorsos, família, amigos, amores, negócios, estratagemas, dinheiro. Das conversas que estruturam uma amizade, em telhados da capital, de quanto ela respira e de quanto o filme a documenta. Das viagens de uma vida, dos dias e meses que nos transformam, as bases e consequências dum ponto de viragem que poucas voltas dá, mas que deu quantas lhe foi possível. Os ponteiros não param e os dias vão passando, cem minutos de convivência e amor em contra-relógio, em contra-vivência. Por ser difícil. Mas por valer a pena exactamente por isso. “There was a naughty boy. A naughty boy was he. He could not stay home, he could not quiet be”. Havia Xavier. E Xavier é o quanto se paga por ser assim, que não é uma escolha. Por não tentar a saída fácil e tentar curar as feridas irreparáveis, tentar abordar as pessoas em acto de desespero calmo. Em surdina. A melancolia disso tudo...
Ouvem-se os versos do Snoop Dogg em epígrafe e vêm à cabeça os passeios do Pedro Hestnes pela capital e do negrume disso, sem se perceber bem porquê. Primeiro, pensa-se que se o cinema é como a música, é porque ambos, música e filme, estão na mesma tonalidade, mas isso talvez seja a reacção emotiva, irracional. Depois, que é uma questão de luta, do tal acto de desespero, que é uma questão de ser do bairro e de subir como se pode, a muito custo, de que se tem a arrogância de pensar que, sim, que se compreende isso, quando não se tem a mais pequena ideia. “Imagine life when you can't get from under”.. Mas também pode não ser isso e então viramo-nos para o regresso nostálgico às raízes. Que andamos todos uma vida inteira a tentar regressar a casa ou à infância, a herança narrativa mais antiga de todas, mas talvez a que mais coisas tenha que se lhe diga, por estar muito além da narrativa. Muito que se lhe diga. “We may be through with the past, but the past is never through with us”. “Prender” no tempo, com planos ou notas, aquele momento (ou momentos) chave em que uma pessoa se apercebe de si, do “eu”, com todas as lições e arrependimentos documentados e se torna adulta. Lições sinceras e que têm de custar a aprender. A todos, sem excepção.
Voltando ao cinema e ao labor de Manuel Mozos, podemo-nos concentrar no despontar do seu talento em três pontos essenciais:
1. O amor aos actores e ao que eles podem dar. A Pedro Hestnes talvez seja escusado tecer elogios, que nunca bastariam. Vêem-se actores e actrizes que se reconhecem de novelas e doutros filmes e a luz é diferente, não parecem os mesmos. Fora dos teatros, nunca se viu ou ouviu Sandra Faleiro como aqui se vê e ouve (porque não lhe é dada a oportunidade). É tocante e revelador. Realização é um trabalho de espera e paciência, de fé e de resistência.
2. A cena terrível da morte da mãe que vemos “só” nos olhos e na reacção de Xavier e a montagem elíptica de toda essa cena. Prova de que há um realizador que pratica um jogo justo e limpo com o espectador, sem ilusões ou aparatos que ofusquem o pensamento e a experiência de ver um filme, que confia e respeita a nossa inteligência. A tal coisa que nos faz duvidar da nossa invisibilidade e do nosso conforto no processo.
3. A montagem. Abrir os horizontes e as possibilidades narrativas de um filme partido e não terminado com uma montagem disciplinada e cheia de buracos de Lubitsch, elipses violentas, particularmente com a decisão de ocultar o destino de Hipólito na montagem final, transformando-o no fiador trágico da redenção de Xavier. Enfim, como é que é possível fazer um grande mosaico lisboeta cheio de implicações pessoais entre as personagens com uns tostões contados? A resposta é Xavier.
[1] in Times Are Changing Not Me (Mário Fernandes, José Oliveira, Marta Ramos, 2012)
Manuel Mozos diz preferir as "pequenas coisas" ao "que é importante" ou às grandes histórias, porque "isso está salvaguardado"[1], e Xavier transformou-se numa dessas "pequenas coisas" que se têm de defender às vezes em detrimento do que supostamente importa. Essa sua preferência está também patente nas "ruínas" que desencantou no documentário de 2009 do mesmo nome, no período insólito que seleccionou para a série que Pedro Éfe produziu para a RTP, "Síntese Histórica do Cinema Português", nada mais nada menos do que a década e meia de que faz parte o chamado "ano zero" do cinema português, em que não se produziu filme algum (Mozos realizou o quarto episódio dessa série, Tristes Anos - 1945-1960). Nas imagens que guardou de Lisboa no seu Ponto de Vista de 1994 sobre a cidade no cinema. E no contínuo Nogueira, no Luís, no António com dores de corno da Rute e do Pedro, na rebelde Diana que tenta ajudar o pai Gabriel, separando Madalena do Miguel.
Em Xavier talvez não hajam grandes actos heróicos, pelo menos na acepção que lhes costumamos dar, mas normalmente é a vida que transforma as pessoas em heróis ou heroínas, e é a vida que vai comandando as acções de Hipólito (José Meireles), Rosa (Cristina Carvalhal), Luísa (Sandra Faleiro), a irmã Luz (Isabel de Castro) e Xavier. O que é pagar as contas e as multas, andar com uma mãe muda e traumatizada de um hospício para outro, de um lar para outro, pagar isso, pagar para trabalhar, roubar, discutir com os namorados, perder o emprego, mas também fumar, "falar com os índios", beber, chamar maricas aos amigos, saltar e dar golpes de karaté num parque, combater a tristeza dos dias com o amparo da noite.
Xavier retrata uma Lisboa mais negra do que branca, um passado e uma infância que não acabam no seu tempo e que regressam ao presente da personagem principal do filme. Retrata uma sede tocante de existir, quase como acto de resistência. Contra tudo, consciência, remorsos, família, amigos, amores, negócios, estratagemas, dinheiro. Das conversas que estruturam uma amizade, em telhados da capital, de quanto ela respira e de quanto o filme a documenta. Das viagens de uma vida, dos dias e meses que nos transformam, as bases e consequências dum ponto de viragem que poucas voltas dá, mas que deu quantas lhe foi possível. Os ponteiros não param e os dias vão passando, cem minutos de convivência e amor em contra-relógio, em contra-vivência. Por ser difícil. Mas por valer a pena exactamente por isso. “There was a naughty boy. A naughty boy was he. He could not stay home, he could not quiet be”. Havia Xavier. E Xavier é o quanto se paga por ser assim, que não é uma escolha. Por não tentar a saída fácil e tentar curar as feridas irreparáveis, tentar abordar as pessoas em acto de desespero calmo. Em surdina. A melancolia disso tudo...
Ouvem-se os versos do Snoop Dogg em epígrafe e vêm à cabeça os passeios do Pedro Hestnes pela capital e do negrume disso, sem se perceber bem porquê. Primeiro, pensa-se que se o cinema é como a música, é porque ambos, música e filme, estão na mesma tonalidade, mas isso talvez seja a reacção emotiva, irracional. Depois, que é uma questão de luta, do tal acto de desespero, que é uma questão de ser do bairro e de subir como se pode, a muito custo, de que se tem a arrogância de pensar que, sim, que se compreende isso, quando não se tem a mais pequena ideia. “Imagine life when you can't get from under”.. Mas também pode não ser isso e então viramo-nos para o regresso nostálgico às raízes. Que andamos todos uma vida inteira a tentar regressar a casa ou à infância, a herança narrativa mais antiga de todas, mas talvez a que mais coisas tenha que se lhe diga, por estar muito além da narrativa. Muito que se lhe diga. “We may be through with the past, but the past is never through with us”. “Prender” no tempo, com planos ou notas, aquele momento (ou momentos) chave em que uma pessoa se apercebe de si, do “eu”, com todas as lições e arrependimentos documentados e se torna adulta. Lições sinceras e que têm de custar a aprender. A todos, sem excepção.
Voltando ao cinema e ao labor de Manuel Mozos, podemo-nos concentrar no despontar do seu talento em três pontos essenciais:
1. O amor aos actores e ao que eles podem dar. A Pedro Hestnes talvez seja escusado tecer elogios, que nunca bastariam. Vêem-se actores e actrizes que se reconhecem de novelas e doutros filmes e a luz é diferente, não parecem os mesmos. Fora dos teatros, nunca se viu ou ouviu Sandra Faleiro como aqui se vê e ouve (porque não lhe é dada a oportunidade). É tocante e revelador. Realização é um trabalho de espera e paciência, de fé e de resistência.
2. A cena terrível da morte da mãe que vemos “só” nos olhos e na reacção de Xavier e a montagem elíptica de toda essa cena. Prova de que há um realizador que pratica um jogo justo e limpo com o espectador, sem ilusões ou aparatos que ofusquem o pensamento e a experiência de ver um filme, que confia e respeita a nossa inteligência. A tal coisa que nos faz duvidar da nossa invisibilidade e do nosso conforto no processo.
3. A montagem. Abrir os horizontes e as possibilidades narrativas de um filme partido e não terminado com uma montagem disciplinada e cheia de buracos de Lubitsch, elipses violentas, particularmente com a decisão de ocultar o destino de Hipólito na montagem final, transformando-o no fiador trágico da redenção de Xavier. Enfim, como é que é possível fazer um grande mosaico lisboeta cheio de implicações pessoais entre as personagens com uns tostões contados? A resposta é Xavier.
[1] in Times Are Changing Not Me (Mário Fernandes, José Oliveira, Marta Ramos, 2012)
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