por António Tabucchi
O MEU AMIGO ZÉ
Contei já isto algures: descobri Portugal graças a um livro. Aliás, um poema. Corria o ano de 1964, eu tinha 21 anos, era estudante em Paris (pelo menos era o que eu dizia aos meus pais) e um dia, a caminho da gare de Lyon para regressar a Itália, comprei num «bouquiniste» um livrinho em francês com um título bizarro, Bureau de Tabac, de um autor para mim desconhecido, um tal Fernando Pessoa. A sua leitura, feita no comboio, deu-me a ideia de estudar o português. É assim que na minha vida começa Portugal.
Portugal, português. Conceitos nebulosos e aproximativos até geograficamente, para o jovem ignorante que eu era. Mas não só para mim, é bom que se diga. Poucos falavam de Portugal, «cá fora», nessa época. Nem a imprensa, nem a televisão, nem as pessoas. O que as pessoas, «cá fora», sabiam mediamente de Portugal resumia-se no Eusébio (aliás extraordinário jogador) numa abstractíssima Lisboa, obviamente «cheia de encanto e beleza» do fado da Amália (aliás extraordinária fadista) e no milagre de Fátima (cuja revelação do terceiro segredo aliás prometia coisas extraordinárias para a Humanidade). E pouco mais. Portugal era então um país longínquo e misterioso que tinha virado costas à Europa e do qual a Europa se tinha esquecido: a sua popularidade «cá fora», sem exagero, fazia concorrência à dos Principados de Liechtenstein e de Andorra.
Um livro, dizia eu, levou-me a Portugal. Mas se um livro pode conduzir até um país, não chega para que nele se fique, ou para que ele fique dentro de nós. Para que isso aconteça são necessárias as pessoas. E uma dessas pessoas foi José Cardoso Pires.
Conheci Cardoso Pires há mais de 30 anos, e desde logo ficámos amigos: eu um jovem curioso e «verde», como pode sê-lo um rapaz de 22 anos com vagas veleidades literárias, ele um escritor já reconhecido e estimado, no pleno domínio do seu talento. Como é que uma coisa assim pode acontecer? Porque é que o Cardoso Pires gostou de mim, não saberia bem dizê-lo. Pelo que me diz respeito poderia afirmar facilmente que gostei dele porque tinha lido O Anjo Ancorado, O Hóspede de Job e, ainda em provas (casualidade de que guardarei sempre uma lembrança especial), em casa do Alexandre O'Neill – outra pessoa daquelas graças às quais um país pode ficar dentro de nós –, O Delfim; e quem, nos seus verdes anos, teve o privilégio de ler livros como estes e simultaneamente conhecer o seu autor, não pode não gostar dele.
O que seria a explicação mais fácil e não verdadeira. Porque nem sempre um escritor corresponde aos seus livros: aliás, raras vezes corresponde. Melhor: normalmente os escritores são criaturas inferiores aos seus livros, chegando a ser decepcionantes. Eu que o diga. José Cardoso Pires, pelo contrário, era igual aos seus livros, tinha a mesma qualidade: era excelente como o que escrevia: chapado. Cardoso Pires era os seus livros. E foi por isso que aquela simpatia imediata e espontânea que, ao conhecê-lo, senti por ele, se transformou gradualmente em amizade. Uma amizade que cresceu à medida que os anos passavam e que eu me afastava da idade em que a diferença de idade com uma pessoa bastante mais velha do que nós já não é a mesma diferença de idade do que antes, porque se a mesma pode ser significativa entre um jovem de 20 anos e um homem de 40, um homem de 30 e outro de 50 podem ser perfeitamente coetâneos.
A amizade não se deve contar, e aliás não é contável. Não só porque pertence à nossa esfera mais íntima, que temos o dever de proteger, mas sobretudo porque, para a contarmos, precisaríamos de acontecimentos e episódios, e isso banaliza a amizade, amarra-a ao plano anedótico do memorialismo de café, do «lembras-te disto, lembras-te daquilo». O que não interessa nada.
Não vou contar a minha amizade com o Cardoso Pires. Só direi que era daquelas amizades feitas de entendimentos recíprocos, de cumplicidade, de juízos de valor sobre a realidade, as pessoas, as ideias, as ideologias, a literatura, em suma, sobre a vida. «Eh pá, este livro tem imensa graça!». Ou então: «Eh pá, esta polícia é mesmo uma merda!»; e ainda: «Eh pá, este gajo é mesmo um sacana!». E pronto: não era necessário adiantar mais.
Enfim, era uma amizade que fazia com que, chegando à minha casa de Lisboa, depois de uma ausência, longa ou curta que fosse, eu depositasse a mala na entrada e mesmo sem abrir as portadas das janelas, a primeira coisa era chegar ao telefone no outro lado da sala para chamar o Cardoso Pires. A Maria José conhecia de cor o ritual e ocupava-se ela de arejar os quartos (afinal contei um episódio que banaliza a amizade).
*
O meu amigo Zé era firme. Era obstinado. Era pertinaz. Era fiel às amizades, e sobretudo a si próprio. Se acreditava numa coisa ía até ao fim. Deixar-se-ia matar mas nada ou ninguém o obrigaria a renegar a coisa em que acreditava. Não acreditava em muita coisa, mas aquilo em que acreditava era bom. Gostava das pessoas não pelo que mostravam ser, mas pelo que eram. Era generoso. Era fixe. Era sério. Era malicioso. Era alegre. Era vital. Era melancólico. Sabia indignar-se. Tinha bom olfacto. E quando uma coisa lhe cheirava mal, acertava. Tinha monomanias, e se por acaso embirrava com alguma coisa idiota ou com algum idiota era capaz de passar a noite inteira a falar furioso naquilo: furioso sobretudo consigo próprio pelo facto que tal coisa idiota e tal idiota lhe tomassem tanto tempo, e quanto mais ficava furioso tanto mais falava naquilo e ficava furioso consigo próprio. Era modesto, como são os grandes escritores: nunca fez propaganda aos seus livros. Conhecia a auto-ironia e praticava-a. Trabalhava como um doido. Podia ficar meses sem escrever, mas era capaz de escrever durante um dia inteiro, de manhã até à noite, sem parar. Às vezes passava um dia inteiro a lutar com uma página só: porque era exigente. Era exigente sobretudo consigo próprio. Era um indisciplinado com uma enorme disciplina. Não gostava de salões. Evitava as cerimónias. Detestava «o social». Tinha uma mirada infalível: uma olhadela, e percebia logo. Gostava de conversa popular. Tinha um léxico pessoal recorrente, cardosopiresiano, para definir coisas e pessoas: por exemplo, sei lá, «galdério», «fresco» «perdulário». Palavras praticamente intraduzíveis para outra língua.
Os misticismos não eram com ele. Os pés bem plantados no chão e agarrado à Realidade: e no entanto a Realidade, quando a escrevia para a compreender, ganhava na página um estatuto quase metafisico, porque assumia as formas de uma geometria impossível de se medir. Porque a Realidade possui uns perímetros que a literatura consegue individuar, os volumes menos. É uma geometria misteriosa. Cardoso Pires sabia-o, e todavia procurava os volumes. Toda a sua escrita é uma espécie de roer: roía as aparências para chegar à substância e acabava por verificar que muitas vezes as aparências são a substância. E isto dava-lhe melancolia, mas não resignação: continuava a roer. Não é por acaso que gostava de Antonioni, e sobretudo de Blow-up, e sobretudo daquele final quando o protagonista joga ténis sem a bola de ténis. Muitas vezes percebia por iluminações, por epifanias do quotidiano, como Joyce ou o Pessoa da Tabacaria. E então a sua escrita enfiava-se na primeira frincha que se lhe abrisse no betão da Realidade, como um espeleólogo que se esgueira pela fenda de uma rocha desconhecida. Para fazer isso é preciso muita coragem. E são poucos os escritores que souberam fazê-lo. Era assim o meu amigo Zé.
*
Já sei o que me vai acontecer da próxima vez que chegar a Lisboa, e sinto um arrepio nas costas. Vou abrir a porta, vou pousar a mala no chão, vou acender as luzes sem abrir as portadas das janelas, vou dar uns passos e vou olhar para o telefone como quem está perdido e procura um sinal de reconhecimento. Não vai ser fácil abdicar de um ritual já antigo e não voltar a ouvir a frase do costume: «Porra, pá, até que enfim!»
in «Jornal de Letras», 4 de Novembro de 1998, p. 13.
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