por António Cruz Mendes
“O sono da razão provoca monstros”, diz a legenda de uma famosa gravura de Goya. Mas, não poderão eles também nascer do seu despertar?
A crença na ideia iluminista do progresso, que resultaria do triunfo da razão sobre a superstição e
que conduziria à implantação de uma sociedade onde a liberdade e a justiça se imporiam aos poderes retrógrados da tradição religiosa e monárquica, foi posta em causa pelos acontecimentos que conduziram aos totalitarismos nazi e estalinista, à 2a Guerra Mundial e ao bombardeamento de Hiroshima e Nagasaki. Afinal, a ciência também podia ser chamada a justificar a tirania e ser colocada ao serviço da morte.
Surgiram então várias obras de ficção que denunciavam o carácter perverso de uma sociedade onde o império da razão, personificado numa omnipotente autoridade central, subjugava a liberdade, as emoções e a poesia. Estamos a pensar em Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, em 1984 (1948), de George Orwell, e em Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury. Todas estas obras foram adaptadas, com maior ou menor sucesso, para o cinema e é na linha destas distopias que Jean-Luc Godard concebeu e
realizou Alphaville.
Essas obras referem-se a possíveis sociedades futuras mas, de facto, todas reflectem problemáticas
bem presentes no tempo da sua criação. Em Alphaville, essa ambiguidade é claramente assumida. Em princípio, a história passa-se na capital de uma indefinida galáxia, mas os cenários são os de Paris dos anos 70 e Lemmy Caution é uma personagem criada por Peter Cheney que protagonizou muitos dos seus policiais. Para a interpretar, Godard escolheu Eddie Costantine, um actor que já tinha encarnado o detective do escritor americano noutros filmes franceses. A sua figura, o chapéu e a gabardina de gola levantada, os seus modos bruscos, o seu rosto duro e cansado, vão seguir-nos pelos ambientes soturnos onde decorre toda a acção.
No plano narrativo, o filme obedece à tradicional partição entre um início, uma fase intermédia e um fim. No princípio, Caution apresenta-se com o nome Ivan Johnson, um jornalista dos “Países
Exteriores” que quer entrevistar o Professor Von Braun e pede à sua filha, Natacha, que lho apresente. Natacha é encarregada pelas autoridades centrais de acompanhar Johnson na sua visita a Alphaville e, ao longo da segunda parte, vamos descobrindo num registo quase documental (afinal “Ivan Johnson” é um jornalista...) a natureza do poder que domina a cidade. As sequências finais são as de um “filme de acção”, onde não faltam, ainda que consideravelmente estilizados, os tiroteios e as perseguições.
Há uma nítida aproximação à estética do film noir, os policiais realizados na década de 30, onde, muitas vezes, a trama policial se desenvolve num quadro social marcado pelos anos da depressão. Todos sabemos da influência do expressionismo alemão sobre aqueles filmes. Também podemos observar em
Alphaville os violentos contrastes claro-escuro ou a iluminação em flashes que, abruptamente, destacam particularidades dos objectos ou das pessoas em cena. Por exemplo, nas imagens da conferência no Instituto de Semântica Geral, Secção de Programação e Memória, onde o computador Alpha 60 discorre sobre o tempo, o passado, o futuro e o presente, a vida e a morte, e a lógica que subjaz à nossa existência e a determina.
No plano temático, Alphaville pode-nos trazer à memória Metropolis, de Fritz Lang. Mas, para além das alusões cinematográficas, importa destacar as referências literárias que, no filme, podem ser mais ou menos explícitas. Numa breve cena, podemos ver Caution folheando The Big Sleep, de Chandler, e, numa viagem de táxi, interrogado sobre o percurso que pretende seguir, se pelo Norte nevado, ou pelo Sul ensolarado, cita Céline e responde que tanto lhe faz, porque viaja sempre “au bout de la nuit”...
Numa sociedade onde as emoções são suspeitas e as palavras que as traduzem foram esquecidas, resgatá-las é um acto subversivo. Porém, podemos encontra-las nos livros. Por isso, eles eram queimados em Fahrenheit 451. Caution dá a ler a Natacha La Capital de la Douleur, de Paul Éluard. Nele, ela descobre o significado da palavra “amor” e, nos seus poemas líricos e surrealistas que convocam uma imaginação criativa que nasce do sonho e do inconsciente, ultrapassando o domínio da lógica e da razão e a visão utilitarista da vida que lhe está associada, Natascha vislumbra horizontes que até então lhe estavam proibidos.
No final, quando Alphaville sucumbe ao fim do computador que a governava, só Natasha se salva porque, num derradeiro esforço, consegue pronunciar je vous aime.
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