por Alexandra Barros
Atraído pelos seus ambientes extremos e motivado pela vontade de criar imagens únicas e nunca vistas, Herzog tem filmado, ao longo da vida, territórios longínquos e selvagens e lugares de difícil acesso ou inóspitos, como a selva amazónica, a Antártida, vulcões em erupção, o deserto do Sahara e cavernas com pinturas rupestres. Nesses territórios, de natureza grandiosa, primitiva, imponente, as paisagens são belas, misteriosas e possivelmente fatais, ora escondendo perigos desconhecidos, ora anunciando gritantemente os riscos que a presença nessas zonas implica. Naturalmente, muito poucos homens habitam ou estiveram nesses lugares.
Em Eis o Admirável Mundo em Rede, Herzog foi ao encontro do mundo virtual alicerçado na Internet, território que partilha com os de filmes anteriores o mistério, a estranheza e a imprevisibilidade, mas está nos antípodas desses relativamente ao povoamento e habitabilidade. Estão ligados à Internet mais de metade dos habitantes da Terra (aproximadamente 65% da população mundial[1]), a que se juntam muitos outros diariamente, o que faz da web o espaço comum, criado pelo homem, mais habitado da Terra.
Contrariamente ao que lhe é habitual, Herzog procura entender esse lugar sem verdadeiramente nele entrar. Parte para este filme como um autêntico outsider, alguém que quase não usa a net, nem smartphones, e recorreu a figuras influentes do mundo tecnológico para guiá-lo. Embora o ponto de entrada tenha sido a Internet, acabou por se dispersar por outros campos, atraído por histórias, personagens ou cenários presentes e futuros com as marcas dos interesses e obsessões pessoais: o lado negro ou demente dos seres humanos (a família Catsouras, redes sociais, cyberbullying e hate mail); o bizarro (a comunidade isolada do mundo, de pessoas com suposta alergia à radiação electromagnética emitida pelas antenas de comunicações móveis); o absurdo e o horror (histórias de viciados em jogos online: a morte de um bebé por negligência dos pais, viciados num jogo cujo objectivo é tomar conta de um bebé, ...); os marginais (Kevin Mitnick e a cultura hacker); os seres excepcionais e os sonhadores (Ted Nelson); idealismo e utopia (projecto Udacity: acesso global e gratuito a cursos online de universidades de topo); tecnologias disruptivas (carros autónomos, que se auto-guiam e robots futebolistas inteligentes não-comandados, que ambicionam vir a ser melhores que Cristiano Ronaldo ou Messi, e possivelmente campeões do mundo em 2050); o desconhecido e o imprevisível (possibilidades e futuro alcance da Inteligência Artificial, as viagens inter-planetárias); a nossa vulnerabilidade face a fenómenos naturais incontroláveis (eventual colapso da Internet devido a erupções solares, com consequências fatais para a humanidade, dado o mundo contemporâneo assentar nessa rede global).
Entre os reputados “guias” que Herzog entrevistou estão: Leonard Kleinrock, Bob Kahn, Elon Musk, Sebastian Thrun, Ted Nelson e cientistas de neurociências, robótica e ciências da computação da Carnegie Mellon University. Herzog ouve-lhes as histórias e explicações teóricas, mas não se aventura na exploração, na primeira pessoa, de nenhum dos territórios, ao contrário do que lhe é característico e habitual. O filme está dividido em “capítulos” e salta de tema em tema, de acordo (assumidamente) com as direcções que Herzog teve vontade de seguir. Embora a web lhe seja estranha, paradoxalmente, imagino Herzog a fazer este filme de forma semelhante a uma típica navegação nesse mundo. Ao pesquisar o tema de partida, encontrou “links” para outros assuntos, que seguiu impulsivamente, que por sua vez lhe sugeriram outros aliciantes “links”, acabando assim a prosseguir diversas direções, sem um verdadeiro fio condutor. Todos os temas têm enorme riqueza e complexidade e, por isso, o filme assemelha-se a um banquete constituído por excelentes entradas, sem prato principal.
O filme começa com a descrição da primeira tentativa de comunicação por meio da Internet, entre computadores localizados em duas universidades americanas (Los Angeles e Stanford). Termina com a pergunta “Poderá a Internet vir a sonhar consigo própria?”[2]. O cosmologista Lawrence Krauss responde que não sabe se já não o fará. Caso as máquinas desenvolvam consciência, sem que disso nos apercebamos, elas provavelmente não o anunciarão. Os optimistas acreditam que o desenvolvimento tecnológico abre portas para um mundo melhor. Os cépticos crêem que é possível que os homens estejam a preparar a sua própria extinção. Herzog, simultaneamente fascinado e céptico, afirma assertivamente que as máquinas nunca farão filmes tão bons como os dele porque não são capazes de se apaixonar. Suspeito que alguns dos entrevistados poderão ter guardado para si o pensamento: “Por enquanto ...”.
[1] statistica.com
[2] Questão que evoca o título do icónico livro de Philip K. Dick: “Será que os Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?”
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