por António Cruz Mendes
Carta de amor é um melodrama construído sobre um tema político apresentado de uma forma quase subliminar. O contexto da narrativa é o do pós-guerra. Depois dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki, o Japão rendeu-se e foram colocados sob a dominação dos EUA. A continuidade do
Imperador apenas foi tolerada por ele ter renunciado a todos os seus poderes e, à humilhação da derrota militar e de um poder político tutelado por estrangeiros, somou-se o impacto cultural da presença americana que ameaçava as antigas tradições culturais que conferiam uma identidade própria ao orgulhoso Império do Sol Nascente.
Recusando as transformações sociais que na sequência disso ocorreram, Yukio Mishima, o renomado autor de O Templo Dourado, suicidou-se em 1970, praticando o ritual do seppuku (mais conhecido entre nós por haraquiri), depois do falhanço de uma quixotesca tentativa de golpe de militar que teria como objectivo restaurar o antigo poder imperial. No filme de Kinuyo Tanaka, o velho Japão rebaixa-se na figura das prostitutas que se vendem aos soldados americanos e Reikichi, um soldado desmobilizado, ganha a vida escrevendo-lhe as “cartas de amor” que elas lhes dirigem para conseguirem sacar-lhes mais algum dinheiro. O seu irmão montou uma banca onde vende a American Home e outras revistas americanas em segunda mão. E é neste contexto que Reikichi, que vive só e amargurado por ter visto o seu grande amor preterido por um casamento de conveniência e depois de cinco anos de separação, finalmente reencontra a sua amada para ficar a saber que, também ela, depois de enviuvar, passou a viver dos donativos de um soldado americano de quem teve um filho. Um soldado que, diz-lhe ele, podia ter sido aquele que matou o seu marido.
O filme resolve-se, portanto, neste conflito íntimo vivido por Reikichi, entre o seu amor por Michiko e a repugnância que lhe suscita a sua “traição”. Em paralelo, a partir de um longo flash back, conhecemos a história de Michiko, do seu amor, sempre adiado, por Rekichi e das razões que explicam as suas difíceis opções.
Carta de amor é, como já se disse, o primeiro filme realizado por Kinuyo Tanaka. Porém ele denota
já uma grande maturidade. As sequências do reencontro e a da separação de Reikichi e Michiko são belíssimas, e a montagem alternada da sequência final oferece-nos uma emotiva, mas sóbria e elegante conclusão. Aliás, a relação de Kinuyo Tanaka com o cinema é muito anterior à sua experiência como realizadora. Antes disso, já ela se tinha destacado como actriz e, como produtora, tinha sido responsável
por vários filmes dos grandes mestres do cinema japonês, Kenji Mizoguchi e Yasujiro Ozu. Depois de Carta de Amor, realizou ainda mais cinco filmes que, agora, por feliz iniciativa da distribuidora The Stone and
the Plot, foram finalmente exibidos em Portugal. De Kinuyo Tanaka, o nosso cineclube exibirá, ainda, nas duas próximas sessões, A lua ascendeu e Para sempre mulher.
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