Continuando a nossa homenagem a Robby Müller, chega a vez de A Mulher Canhota do escritor e cineasta austríaco Peter Handke, que se juntou a Wim Wenders, Bruno Ganz e Müller (todos acabados de sair da produção de O Amigo Americano) para adaptar o seu romance de 1976, Die linkshändige frau, ao grande écran.
Handke, que foi ao Festival de Cinema de Lisboa e do Estoril em 2016, disse a Paulo Branco que "fiz o filme há quarenta anos e para mim é difícil falar sobre ele agora, foi uma experiência bastante única e eu sentia-me como um intruso no mundo dos cineastas e do cinema e ainda me sinto assim. Acho que não me devia justificar, mas quando fiz o filme A Mulher Canhota tive depois o que se apelida na biografia dos seres humanos como uma crise de identidade. Já não me sentia um escritor e sobretudo um cineasta e não fazia ideia como continuar. Mas enquanto preparava o filme, quando escrevi o argumento, enquanto estava com os actores, com a luz, com a neve e sobretudo com o espaço nos subúrbios de Paris, estava entusiasmado. Mas depois foi como que uma queda total no nada, numa espécie de culpa... depois. E fiquei sempre entre as duas coisas, concordo com aquilo que fiz mas ao mesmo tempo, e como a citação do cineasta iugoslavo que eu mencionei, "sabem que só há lugar para os que produzem o seu próprio lugar"... e eu não sei se produzi o meu próprio lugar para o filme. E depois, claro, continuei, escrevi outro argumento - mas foi dez anos depois."
Gérard Courant, autor do projecto Cinématon, escreveu sobre o filme para a Cinéma 78, notando que "a tomada de posição obsessiva para um cineasta de fazer uma descrição minuciosa de um espaço e de um lugar, ao abrigo das mudanças do tempo (meteorologia) e da transição das estações (aqui, do Inverno para a Primavera, os inserts assinalam-no com insistência: o filme desenrola-se em Março, Abril e Maio) é coisa rara demais no cinema para que nos passe ao lado uma abordagem tão original como a de A Mulher Canhota, o filme de Peter Handke. É que com o tempo há qualquer coisa que envolve profundamente o cinema. O tempo é a transformação e a mudança de um lugar, do seu espaço (nem que fosse apenas pelos levantes rápidos de luzes), ou seja qualquer coisa com que a mise en scène banal não se importa. Em A Mulher Canhota há imagens de nuvens com as formas mais sedutoras e mais inquietantes, sombrias e voluptuosas (que paletas de cores!), há planos frequentemente sombrios de aguaceiros de chuva ou de neve e também há planos em que o sol do fim do inverno lança os seus raios horizontais por entre nuvens negras. É de um laranja muito forçado e apertado e esse vai-e-vem incessante entre os dois tons dominantes, que devemos a Robby Müller, o comparsa habitual de Wim Wenders, tem que ver com o tema do filme: uma mulher pede ao seu marido que a deixe para viver sozinha. E para ser preciso ela fala a Bruno, o seu marido, nestes termos: «De repente fez-se-me a luz de que tu te ias do pé de mim, que me deixavas sozinha. Sim, é isso, Bruno, vai-te. Deixa-me sozinha». De seguida, é só deambulação, desordem e solidão, mas também libertação e euforia (passageira).
"Isto tudo não quer dizer, claro, que todos os filmes que jogam com a ciência meteorológica sejam interessantes. Mas, inversamente, é de fazer o tempo interpretar outra coisa além do papel de um simples cenário que o filme obtém a sua força. No Cinema de Consumo Corrente, uma tempestade pode implicar seja a iminência de acontecimentos graves, seja a possibilidade de fazer reencontrar dois seres ao abrigo do dilúvio, um raio de sol pode facilitar o despojamento da heroína, etc.
"Portanto o tempo em A Mulher Canhota não é um cenário, mas torna-se a tal ponto um motivo que, assim que neva, a mulher, feliz, em vez de se apressar ou arranjar abrigo, prefere orientar o seu olhar na direcção do céu para receber os flocos na cara. Disse a Mulher. É assim que ela é designada ao longo de todo o filme É um termo abstracto porque para Peter Handke ela não é uma mulher, mas todas as mulheres."
Para o Diário de Notícias, Inês Lourenço escreveu: "Associado à reposição de obras emblemáticas de Wim Wenders surge este maravilhoso A Mulher Canhota (1978), primeira longa-metragem do austríaco Peter Handke, que evidencia um autor capaz de passar das palavras às imagens com refinada sensibilidade dramática.
"Adaptando o seu romance homónimo, Handke retrata o desejo de liberdade de uma mulher (Edith Clever), que, num impulso feminista, se separa abruptamente do marido (Bruno Ganz), dedicando os dias ao labor dessa pesada autonomia.
"A solidão, descontinuada apenas pelas brincadeiras do filho, molda uma nova experiência da paisagem suburbana, que nos remete para Ozu - embora estejamos em França. Os recorrentes planos na estação de comboios, a vivacidade da infância e o minimalismo poético sublinham um gracioso tributo a esse cineasta cuja fotografia, na parede, vigia as inquietações humanas."
Handke, que foi ao Festival de Cinema de Lisboa e do Estoril em 2016, disse a Paulo Branco que "fiz o filme há quarenta anos e para mim é difícil falar sobre ele agora, foi uma experiência bastante única e eu sentia-me como um intruso no mundo dos cineastas e do cinema e ainda me sinto assim. Acho que não me devia justificar, mas quando fiz o filme A Mulher Canhota tive depois o que se apelida na biografia dos seres humanos como uma crise de identidade. Já não me sentia um escritor e sobretudo um cineasta e não fazia ideia como continuar. Mas enquanto preparava o filme, quando escrevi o argumento, enquanto estava com os actores, com a luz, com a neve e sobretudo com o espaço nos subúrbios de Paris, estava entusiasmado. Mas depois foi como que uma queda total no nada, numa espécie de culpa... depois. E fiquei sempre entre as duas coisas, concordo com aquilo que fiz mas ao mesmo tempo, e como a citação do cineasta iugoslavo que eu mencionei, "sabem que só há lugar para os que produzem o seu próprio lugar"... e eu não sei se produzi o meu próprio lugar para o filme. E depois, claro, continuei, escrevi outro argumento - mas foi dez anos depois."
Gérard Courant, autor do projecto Cinématon, escreveu sobre o filme para a Cinéma 78, notando que "a tomada de posição obsessiva para um cineasta de fazer uma descrição minuciosa de um espaço e de um lugar, ao abrigo das mudanças do tempo (meteorologia) e da transição das estações (aqui, do Inverno para a Primavera, os inserts assinalam-no com insistência: o filme desenrola-se em Março, Abril e Maio) é coisa rara demais no cinema para que nos passe ao lado uma abordagem tão original como a de A Mulher Canhota, o filme de Peter Handke. É que com o tempo há qualquer coisa que envolve profundamente o cinema. O tempo é a transformação e a mudança de um lugar, do seu espaço (nem que fosse apenas pelos levantes rápidos de luzes), ou seja qualquer coisa com que a mise en scène banal não se importa. Em A Mulher Canhota há imagens de nuvens com as formas mais sedutoras e mais inquietantes, sombrias e voluptuosas (que paletas de cores!), há planos frequentemente sombrios de aguaceiros de chuva ou de neve e também há planos em que o sol do fim do inverno lança os seus raios horizontais por entre nuvens negras. É de um laranja muito forçado e apertado e esse vai-e-vem incessante entre os dois tons dominantes, que devemos a Robby Müller, o comparsa habitual de Wim Wenders, tem que ver com o tema do filme: uma mulher pede ao seu marido que a deixe para viver sozinha. E para ser preciso ela fala a Bruno, o seu marido, nestes termos: «De repente fez-se-me a luz de que tu te ias do pé de mim, que me deixavas sozinha. Sim, é isso, Bruno, vai-te. Deixa-me sozinha». De seguida, é só deambulação, desordem e solidão, mas também libertação e euforia (passageira).
"Isto tudo não quer dizer, claro, que todos os filmes que jogam com a ciência meteorológica sejam interessantes. Mas, inversamente, é de fazer o tempo interpretar outra coisa além do papel de um simples cenário que o filme obtém a sua força. No Cinema de Consumo Corrente, uma tempestade pode implicar seja a iminência de acontecimentos graves, seja a possibilidade de fazer reencontrar dois seres ao abrigo do dilúvio, um raio de sol pode facilitar o despojamento da heroína, etc.
"Portanto o tempo em A Mulher Canhota não é um cenário, mas torna-se a tal ponto um motivo que, assim que neva, a mulher, feliz, em vez de se apressar ou arranjar abrigo, prefere orientar o seu olhar na direcção do céu para receber os flocos na cara. Disse a Mulher. É assim que ela é designada ao longo de todo o filme É um termo abstracto porque para Peter Handke ela não é uma mulher, mas todas as mulheres."
Para o Diário de Notícias, Inês Lourenço escreveu: "Associado à reposição de obras emblemáticas de Wim Wenders surge este maravilhoso A Mulher Canhota (1978), primeira longa-metragem do austríaco Peter Handke, que evidencia um autor capaz de passar das palavras às imagens com refinada sensibilidade dramática.
"Adaptando o seu romance homónimo, Handke retrata o desejo de liberdade de uma mulher (Edith Clever), que, num impulso feminista, se separa abruptamente do marido (Bruno Ganz), dedicando os dias ao labor dessa pesada autonomia.
"A solidão, descontinuada apenas pelas brincadeiras do filho, molda uma nova experiência da paisagem suburbana, que nos remete para Ozu - embora estejamos em França. Os recorrentes planos na estação de comboios, a vivacidade da infância e o minimalismo poético sublinham um gracioso tributo a esse cineasta cuja fotografia, na parede, vigia as inquietações humanas."
Até Quinta-Feira!
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