O
filme distingue-se por uma construção narrativa que privilegia o olhar subjetivo e a fragmentação da memória. A montagem fragmentada e o recurso a flashbacks criam uma atmosfera onírica e densa, onde a temporalidade se dilui e a verdade se apresenta como algo sempre incompleto e questionável.
A direção de fotografia de Lisa Hagstrand sustenta a tensão latente do filme: a luz incandescente e o calor abafado da paisagem africana reforçam o sentimento de opressão e deslocamento vivido por Evita. A câmara privilegia os rostos, os gestos e os espaços de transição — corredores, varandas, paisagens ao longe — como metáforas visuais de uma existência suspensa entre o passado e o presente, entre Portugal e África, entre o silêncio e a denúncia.
A Costa dos Murmúrios é, acima de tudo, um retrato intimista da desintegração de uma consciência diante do colapso de um império. O filme desmonta o mito heroico das campanhas ultramarinas portuguesas, revelando um quotidiano impregnado de racismo, violência institucional e repressão sexual. A personagem de Evita emerge como uma espécie de testemunha silenciosa que vai tomando consciência da hipocrisia e da brutalidade que sustentaram o projeto colonial português. A narrativa aposta na ambiguidade: mais do que oferecer respostas, levanta questões sobre culpa, responsabilidade histórica e os fantasmas da colonização que persistem mesmo após o fim do domínio formal.
Importância no cinema português: A Costa dos Murmúrios ocupa um lugar central na cinematografia portuguesa do início do século XXI, sendo um dos poucos filmes a abordar de forma explícita o legado colonial a partir de uma perspetiva feminina. O rigor formal de Margarida Cardoso, aliado à densidade histórica e emocional da obra, fazem do filme um marco no cinema de memória e uma poderosa reflexão sobre a identidade nacional. O filme tem sido amplamente estudado em contexto académico e figura frequentemente em mostras de cinema europeu e de género, pela sua abordagem sensível, mas incisiva, dos temas do pós-colonialismo e da condição feminina num contexto de guerra e dominação.
A componente sonora do filme é subtil, mas crucial para a construção da tensão narrativa. Os sons ambientes como o zumbido do calor, os passos em corredores vazios, o tilintar de copos são utilizados como elementos dramáticos. A música, assinada por Vasco Pimentel e Nuno Malo, surge em momentos pontuais, acentuando o desconforto, a nostalgia ou a inquietação das personagens, sem nunca se sobrepor à densidade visual e ao silêncio carregado de sentido que define o tom do filme.
O filme foi aclamado pela crítica portuguesa e internacional, tendo sido exibido em festivais como Veneza, São Paulo e Londres. Destacou-se a sua capacidade de tratar uma temática historicamente silenciada no cinema português com uma linguagem visual sofisticada e uma abordagem intimista, evitando simplificações ou estereótipos. A Costa dos Murmúrios continua a ser uma referência para cineastas e estudiosos interessados nas heranças do colonialismo, no papel da mulher na História e na força do cinema como instrumento de memória e questionamento. A sua importância reside não apenas no conteúdo temático, mas na ousadia estética com que foi realizado, inserindo-se num esforço mais amplo de reescrita do passado recente de Portugal a partir de vozes alternativas.
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