por João Palhares
Sabe-se que Fritz Lang, tal como Alfred Hitchcock (e não é a única coisa que os aproxima), coleccionava recortes de jornais como forma de inspiração e busca de material e temas para os seus filmes. Quando Peter Bogdanovich, no seu livro de entrevistas ao realizador austríaco (Fritz Lang in America) lhe perguntou porque é que gostava de trabalhar a partir de jornais, Lang respondeu-lhe que “Eu penso que os filmes são não apenas a arte deste século, mas, para impôr uma palavra de Abraham Lincoln, a arte ‘do povo, para o povo, pelo povo.’ Foi inventada mesmo na altura certa – quando as pessoas estavam prontas para uma arte das massas. (Sabe, por acaso, o que é que fazia mesmo propaganda ao modo de vida americano? Filmes americanos. Goebbels percebeu o enorme poder dos filmes como propaganda, e eu temo que mesmo hoje as pessoas não saibam que meio de propaganda tremendo os filmes podem ser.) Mas de qualquer maneira, onde é que vamos buscar o nosso conhecimento da vida? Aos factos, não à ficção. Naturalmente, podem-se aprender uma data de coisas em romances e em peças, mas é sempre visto através dos olhos doutro homem. Não se esqueça que nesses dias não havia televisão: hoje quando há um motim, nós vêmo-lo; Pelo Vietname, podemos ver o que é uma guerra na selva. Antes disso, as actualidades levavam bastante tempo a chegar aos cinemas, e só os jornais é que eram notícia fresca.
“Um realizador devia saber tudo. Um realizador devia-se sentir em casa num bordel – o que é muito fácil – mas também se devia sentir em casa na Bolsa – o que já é um bocado mais difícil. Devia saber como se comporta o duque de Edimburgo, como se comporta um trabalhador e como se comporta um gangster. Agora, eu diria que é impossível aprender isto tudo por experiência. Mas a melhor coisa a seguir a isso é ler jornais – mesmo se não forem objectivos, pode-se aprender a separar as coisas objectivas das subjectivas.”
Não é fácil saber se o que se passa em While the City Sleeps é tudo verdade, se é mesmo um documento dos processos e dos canais do chamado quarto poder, que não temos capacidade para o julgar. O que é verdade é que tem essa ambição e pinta um quadro imenso da nossa sociedade, de uma enorme abrangência e que se pode comparar, por exemplo, ao que Otto Preminger fez poucos anos depois em Advise & Consent e The Cardinal ou o que fez Jean- Claude Brisseau em Choses Secrètes, de 2002. Quatro filmes sobre o poder a uma grande escala e que testemunham o interesse do cinema no que Jean-Luc Godard chamou de “os grandes temas”, na investigação e na compreensão do presente, da teia complexa dos processos e instituições que nos rodeiam e nos regem e que, afinal, conhecemos apenas pela rama. Em tempos de especializações nada mais salutar do que almejar ao impossível e tentar compreender o mundo por inteiro.

Mas o filme de Lang não quer saber só disso e ainda bem. Precisa de mostrar o que faz o
mundo ao interior do homem, de perguntar se não o corrói por dentro e se não o transforma. Se o olhar de um pivot de telejornal quando vê o trinco da porta da namorada não é igual ao de um assassino a fazer o mesmo quando entrega as compras a uma mulher que não conhece e, a seguir, a mata. Se essa cena serve para a personagem de Dana Andrews descobrir como é que essa primeira morte aconteceu, o relevo dado ao olhar de Andrews não pode ser inocente. Como nada é inocente neste filme tão perverso e que vai fundo na tão difícil missão de saber o que vai na cabeça dos homens quando caem nas ciladas da ambição. Talvez seja essa a mais difícil das missões.
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