sábado, 17 de julho de 2021

199ª sessão: dia 20 de Julho (Terça-Feira), às 19h00


Em 2001, Agustina Bessa-Luís iniciou uma trilogia de romances com o livro Jóia de Família, a que se acrescentariam nos anos seguintes A Alma dos Ricos e Os espaços em Branco. O nome com que baptizou a sua trilogia foi "O Princípio da Incerteza", como o enunciado quântico de Werner Heisenberg. Foi também esse o nome que Manoel de Oliveira deu à sua adaptação de Jóia de Família e que será a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Num artigo escrito para o jornal Libération por ocasião da morte da escritora, Camille Nevers aborda a sua obra e a parceria com o cineasta, argumentando que "a palavra em Oliveira é mais que um elemento natural e mais que um tema, mesmo mais que uma personagem de direito pleno - mas sim a matéria simultaneamente muito concreta (as palavras) e intangível (o sentido) a partir da qual se molda a mise en scène, como argila. A palavra e a sua forma, os seus cânones e as suas normas, a sua etiqueta, que bastaria portanto ao cinema distorcer, triturar, até a «fazer tossir». Isto explica mais ou menos a experiência da colaboração um bocado louca e muito brilhante entre Bessa-Luís e Oliveira. Ele encontrou com ela o que aperfeiçoar essa inclinação para os «contos discretos da burguesia», uma bússola e até o Norte, instigado por esse diálogo infinito, pela ficção sonhadora e elaborada ao mesmo tempo, pelo trágico e pela ironia profunda do sentido da vida, do amor, de Deus, de um lugar a assumir e das classes sociais. De Francisca a Espelho Mágico, passando pelos esplendores absolutos de Vale Abraão e de O Princípio da Incerteza, ou pelas divagações em espiral e arabescos do Convento, de Inquietude, de Party, a quintessência romanesca, feminina, amorosa e sensual de Oliveira está lá contida. A adaptação parece ser a contra-senha entre a mulher de letras e o homem de cinema, criação de abordagem oblíqua perpétua lenta. Um mesmo gosto pelos interiores inebriantes, a natureza, e as cintilações dos espelhos, os reflexos da água, pelo esplendor do indirecto. Pelo mistério não revelado e pelos enigmas sem chave. O livro mais reputado de Agustina Bessa-Luís não se chama A Sibila por acaso. Em 2003, ela confidenciou à revista Letras de cine : «Nós atravessamos as nossas vidas muito faladores a propósito de coisas insignificantes e muito silenciosos sobre aquilo que nos faz medo.» Carácter forte tal como aparece numa sequência sentada de Porto da Minha Infância, ela era tão teimosa como ele."

Em entrevista a Jean-Marc Lallane e Charles Tesson para o número 571 dos Cahiers du Cinéma, em 2002, Manoel de Oliveira disse que "Leonor Baldaque, que interpreta Camila, é neta de Agustina Bessa-Luís. A escritora, que escreveu o romance, pode assim ver-se no filme através da sua neta. E encontramos qualquer coisa da avó na maneira como a neta está presente no écran. Alguma coisa, creio eu, de que ela não gostava muito nela própria e que, no entanto, era verdadeiramente ela. Do mesmo modo, Touro Azul é interpretado pelo meu neto, Ricardo Trêpa. Neste filme quis que ele tivesse muitas semelhanças comigo quando tinha a sua idade. É um rapaz desportivo, vigoroso, que faz corridas de automóveis. Descrevo isto, a presença da escritora e do cineasta no filme através dos seus netos e, ao mesmo tempo, será que deveria fazê-lo? Será isto, verdadeiramente, certo? Não sei. É isto o princípio da incerteza."

Já Maria João Madeira, na sua folha da Cinemateca sobre o filme, convida-nos a ir "aos dados, adquiridos ou não: sendo uma adaptação do primeiro volume de uma trilogia de Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza toma o nome da série – o romance intitula-se Jóia de Família e do seguinte, A Alma dos Ricos, Oliveira realizou Espelho Mágico – e marca o regresso de Oliveira à colaboração com Agustina, aos cenários do Douro e à aristocracia em ruínas do Norte de Vale Abraão (curiosamente houve quem visse no filme “o remake negro de Vale Abraão”). Entre os dois “filmes da incerteza”, Oliveira filmou Um Filme Falado, a partir de um argumento original seu e O Quinto Império – Ontem como Hoje, a partir de José Régio. O romance de Agustina foi escrito tendo em conta os actores previamente escolhidos por Oliveira para interpretarem as perso- nagens. Os capítulos anteriores resultantes do par Agustina-Oliveira começaram, como se sabe, por Francisca, a partir de Fanny Owen (1981) e pela Visita ou Memórias e Confissões (realizado em 1982 para ser divulgado como filme póstumo), sendo a colaboração retomada em Vale Abraão, a que se seguiu O Convento, a partir das Terras do Risco, Party, argumento de Oliveira com diálogos de Agustina, e Inquietude, a partir de A Mãe de Um Rio. Depois, Oliveira dedicou-se a A Carta, Palavra e Utopia, Vou para Casa e Porto da Minha Infância. O par voltou a juntar-se neste O Princípio da Incerteza e uma coisa é certa, tão certa como transparente: este filme, tão improvável ele próprio, só podia ter vindo deles os dois. 

"De que se ocupa O Princípio da Incerteza? O tema, motivos e personagens assentam na exposição da ideia da decadência de princípios e de costumes, sendo esta construída à volta de uma teia de relações de força e ambições mantidas entre personagens de psicologias vertiginosas marcadas, também elas, por questões de linhagem (e da falta dela). No fundo, diz-se a dada altura, “Portugal tornou-se uma casa de lotaria”. Nesta “casa de lotaria”, em que a antiga ordem social se desmorona e a ralé ascende ao seu lugar, há espaço para fazer conviver mundos tão distintos como aqueles de onde vêm Camila e Vanessa, António Clara, também conhecido como Cravo Roxo, e José Luciano, o Touro Azul. No centro do enredo, um outro par, Da Rute, a mãe da casa da família rica e Celsa, a criada, que na discrição da sua condição faz mover os cordelinhos. A trama é romanesca, os condimentos não dispensam as questões de casta, casamentos arranjados, conveniências sociais, traições, rivalidades, mas a “line” mais conhecida de Francisca, “a alma é um vício”, só pode aqui ecoar numa tirada mais dura, “isso da alma é uma quimera”. Quem o diz é Vanessa, a dona das casas de alterne que ocupa um escandaloso lugar na casa e na vida de Camila, esta última porventura a mais indecifrável de todos, aquela que na mansidão de uma atitude ostensivamente submissa (“sim, sou uma escrava”) vai assumindo uma posição cada vez mais voraz em relação a todos os outros. Por outro lado, menos essencialmente atento à intriga e aos seus sucessivos factos do que aos subterrâneos desígnios que se constituem como móbeis de uns e de outros, o ponto de O Princípio da Incerteza está justamente condensado neste título."

Até Terça-Feira!

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