terça-feira, 6 de julho de 2021

Vale Abraão (1993) de Manoel de Oliveira



por João Palhares

Manoel de Oliveira chegou a Agustina Bessa-Luís por via de Camilo Castelo Branco, no projecto que realizou três anos depois da consagração ainda hoje difamada e deserdada do seu Amor de Perdição, filme demencial e inclassificável em que a fidelidade absoluta à palavra escrita gerava imagens e mundos novos que as transcendiam e transformavam em cinema. O projecto chamou-se Francisca e era uma adaptação de Fanny Owen, romance de Agustina publicado em 1979. Contava a estória dos estranhos amores de José Augusto e a inglesa Fanny Owen, também descritos nas páginas redigidas a sangue de Camilo, que é personagem tanto no romance como no filme. Daí em diante, Agustina escreveu diálogos para Party e para Visita ou Memórias e Confissões (filmado em 1982 mas estreado apenas depois da morte do realizador, por sua vontade), tendo Oliveira adaptado mais alguns dos seus livros e histórias, como As Terras do Risco (em O Convento), A Mãe de um Rio (em Inquietude), Jóia de Família (em O Princípio da Incerteza), A Alma dos Ricos (em Espelho Mágico) e, claro, Vale Abraão (no filme homónimo). 

Esta colaboração nascida por interesses, temas e obsessões comuns foi muito mistificada tanto pela parte do cineasta como da romancista, ao longo dos anos, podendo-se às vezes apenas supor como terão começado alguns dos seus projectos a dois. Sabe-se que houve colaborações frustradas, como O Convento. A romancista amarantina estava a demorar demasiado tempo a escrever para as necessidades imediatas e muito cinematográficas do cineasta portuense e este pediu que ela lhe resumisse a estória, escrevendo ele próprio o guião. Agustina não gostou nada do resultado e não quis ter nada que ver com esse filme. Fizeram as pazes com Party, para o qual a romancista escreveu os diálogos. Sabe-se que apesar de tudo aquilo que os aproximava, seguiam sempre em direcções diferentes. Alimentavam-se das ideias um do outro, podendo estar pronto primeiro o livro dela ou o filme dele, servindo-se mutuamente durante o processo de gestação. Sem nos alongarmos demasiado nestas questões, e também porque gostamos de algum mistério, damos a palavra a Manoel de Oliveira, conciso e prosaico como todos os homens do século XX: “Agustina fez o seu livro e eu fiz o meu filme.” 

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Vale Abraão, o filme, continua a ser a enorme maravilha que sempre foi, um espelho encantado dos nossos sonhos, ilusões, desejos e angústias, revelação de um dos mais belos rostos femininos de toda a história do cinema, compêndio de elipses cósmicas urdidas por um rio que corre e que fica, como o passado vivo que não passa de William Faulkner, épico sobre as prisões do amor e as liberdades do desejo, sobre a impossibilidade de dois serem um na comunhão espiritual do ser andrógino fundador de Platão, com planos estranhos de lavadeiras a rasgar uma estrada ladeada por palmeiras, Isabel Ruth a esmagar roupa húmida na pedra como se o fizesse desde o início dos tempos, Isabel de Castro a aparecer para fumar um cigarro pelo tempo que se demora a fumar um cigarro, e o rio corre e não passa, ouve-se o ranger de tábuas de madeira no chão ao mais fino toque dos pés como um som levemente familiar e que reaviva memórias felizes ou dolorosas, olha-se para as coisas e elas surgem noutros planos com outros significados ao som de uma voz que se confunde com o próprio pensamento, em fluxo de consciência, melodias lunares e árias solares que acompanham as elevações e os abismos da alma, apontamentos sobre a decadência da aristocracia, o fim dos tempos e a fibra dos homens, proferidos em conversas que se prolongam pela noite fora, passeios à luz das velas por corredores sombrios à espera que se abra uma porta com uma pequena redenção, a classe alta e a classe baixa, os entendimentos tácitos que impedem que o equilíbrio desabe num ímpeto justo e apaixonado, a candura no gesto de uma mulher que sai do carro a coxear para ir colher uma flor e entregá-la à pessoa de quem mais gostou em vida antes de se atirar aos braços da morte, para o leito de um rio que até aí observou tudo sem fazer julgamentos e no final lhe servirá de morada eterna, como para todos os românticos que almejaram um dia a felicidade absoluta e o regresso a um paraíso perdido de que ouviram rumores por instantes numa ida ao Vesúvio, talvez a única forma de fazer com que certas coisas passem mesmo e se tornem passado ausente nas margens íngremes e sedutoras do Vale de Abraão.

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