quinta-feira, 1 de julho de 2021

Domangchin yeoja (2020) de Hong Sang-soo



por Alexandra Barros

No último filme do ciclo Hong Sang-soo, acompanhamos Gam-hee nas suas deambulações enquanto o marido está em viagem de trabalho. É a primeira vez que estão separados. Durante os cinco anos de casamento, nem um só dia estiveram longe um do outro. Em contrapartida tem estado afastada das amigas Young-soon e Su-young e aproveita a oportunidade para visitá-las, bem como para ir ao cinema. Nesta ocasião, encontra inesperadamente uma terceira amiga, Woo-jin, de quem se distanciara há muito, também. 
 
O filme está estruturado como um tríptico, com um encontro por cada uma das três partes. Como é próprio de Hong Sang-soo, grande parte do filme é passado à mesa, enquanto as amigas comem, bebem e conversam. Os prazeres gastronómicos e a eventualidade de Gam-hee abdicar do prazer de comer carne por causa dos bonitos olhos das vacas são eles próprios motivo de conversa. Além disso é de notar que os alimentos são meios através do qual se expressam afectos, tanto pela oferta como pela confecção. No primeiro e terceiro encontros (numa rima hongsangsooiana), há um ritual ligado aos alimentos especialmente ternurento: a demonstração de carinho através do acto de oferecer pedaços de maçã expressamente acabada de descascar. 
 
Este filme é mais linear e tem um subtexto mais identificável que os filmes que vimos anteriormente. Ou talvez não. Num filme de Hong Sang-soo é comum construirmos uma história a partir dos fragmentos dados, para no fragmento seguinte a termos que reconfigurar, desfazê-la no próximo, torcê-la ainda mais nos seguintes. Aqui, porém, muitos equívocos e ambiguidades são desfeitos e podemos identificar uma ideia recorrente: as histórias que imaginamos a partir do nosso ponto de observação e dos elementos disponíveis poderão ser muito diferentes dos factos reais. Esta ideia já tinha sido exposta em Mulher na Praia, quando Jung-rae explica a Moon-sook, através de um esquema, como os preconceitos e as imagens que temos das pessoas se formam erradamente a partir de um número insuficiente de dados e informação. A mesma ideia é expressa por Jingu no Filme de Oki: “O meu cinema é similar ao processo de conhecer pessoas [...]. Conhecemos alguém e ficamos com uma impressão, fazendo um juízo baseado nessa impressão. Mas, no dia seguinte, voltando a ver essa pessoa, não poderá dar-se o caso de notarmos outros aspectos distintos e ajuizarmos a partir deles?”. Sempre que Gam-hee conta às amigas que é a primeira vez que está longe do marido, estas estranham e inicialmente parecem pensar que alguma coisa está errada. No entanto nada indica que Gam-hee seja infeliz ou se sinta privada da sua liberdade e nada indica que a “liberdade” das suas amigas as torne mais felizes. Em nenhum dos encontros, aquilo que parece, é. 

Na primeira visita, Gam-hee mostra-se preocupada com as movimentações de uma rapariga que tem estado a observar. Devido ao enquadramento e à linguagem corporal, parece-nos que descreve o que está a ver através de uma janela. A câmara recua e percebemos que ela narrava o que estava a ver numa câmara de video-vigilância. Young-soon explica que se trata da filha perturbada de uma vizinha que um dia desapareceu, abandonando tanto a filha como o marido. Parece estar esclarecido o título do filme. Mas será assim? 
 
As pistas com que Hong Sang-soo tão habilmente nos conduz a suposições que se vêm a revelar erradas são tanto visuais como narrativas. Por vezes, somos esclarecidos através das conversas entre as personagens. Outras vezes é o reposicionamento da câmara que revela a verdade. No final da visita a Young-soon, esta mostra a Gam-hee a sua horta e o galinheiro do vizinho que, segundo Young-ji (companheira de casa de Young-soon), é dominado por um galo maldoso, que depena os pescoços das galinhas para se afirmar. A natureza montanhosa que rodeia a casa de Young-soon ocupa agora todo o plano e subtilmente somos levados dessa montanha para uma outra, como se apreciássemos a paisagem que nos rodeia. Mas quando a câmara recua percebemos que esta segunda montanha não tem nada a ver com a primeira. Trata-se da vista que é enquadrada pelo caixilho de uma janela. Uma janela da casa de Su-young. É com este raccord engenhoso que começa a segunda parte do filme. 
 
Nesta segunda visita, em mais uma recorrência hongsongsooiana, Gam-heee volta a usar a câmara de video-vigilância como uma “janela”. Por sua vez, para Su-young, a janela (física, real) de onde avista a paisagem montanhosa é um quadro, pois a paisagem parece-lhe uma pintura antiga. 
 
Dois encontros, duas casas com vista para montanhas. No terceiro encontro, em vez de montanhas temos o mar a espraiar-se aos nossos pés. Contudo, mais uma vez, o que parece não é. Não estamos na praia, mas numa sala de cinema. Estas imagens pertencem ao filme a que Gam-hee está a assistir. Filme a que assiste por duas vezes. A primeira vez depois do encontro não-programado com Woo-jin, que é directora do centro de artes emu, onde o filme é exibido. Reconhecendo Gam-hee, Woo-jin vai ao seu encontro, mas é visível que existe um mal-estar entre as duas. Pelo decorrer da conversa, parece-nos que Woo-jin teve um caso com um homem (Seong-gu) que na altura seria namorado de Gam-hee. Esta assegura à amiga que não existe qualquer ressentimento, mas Woo-jin pede repetidamente desculpa. Woo-jin e Seong-gu são agora casados, mas Woo-jin não parece muito satisfeita com o casamento e confidencia a Gam-hee aquilo que a desgosta em Seong-gu, um escritor bem sucedido : “É absurdo como ele se repete. Se ele só se repete, como poderá ser sincero?” (Hong Sang-soo em autoironia?). Por um dos acasos altamente improváveis típicos de Hong Sang-soo, Seong-gu está no emu a dar um “concerto literário” e Gam-hee esbarra nele ao sair do complexo. O encontro é pouco amigável e Gam-hee parte bruscamente, depois de criticar Seong-su pelos mesmos comportamentos (os discursos repetitivos) que Woo-jin tinha confidenciado não suportar nele. Ironicamente, encontro após encontro, o discurso de Gam-hee acerca do seu casamento foi também um discurso repetitivo. Dois ou três passos depois da saída do edifício, ela decide voltar à sala de cinema e à mesma praia onde “tinha estado”. Será a fuga do título afinal aquela que o cinema oferece?

Sem comentários:

Enviar um comentário