E em Março assistimos ao nascimento do cinema pelas mãos dos irmãos Lumière e dos seus operadores. Veremos as defesas aguerridas, apaixonadas e informadas de Henri Langlois e Jean Renoir em Louis Lumière (1968), filme realizado por Éric Rohmer para a televisão francesa e que será a nossa próxima sessão.
O filme será antecedido pelo filme com o comboio dos Lumière que assustou os seus contemporâneos na sua apresentação pública. João Bénard da Costa descreveu o efeito numa das suas crónicas para o Independente, "O Olhar de Ulisses", contando que "o êxito de L'Arrivée d'un Train à la Gare de Ciotat (Louis Lumière, 1895) deveu-se ao facto de se "acrescentar" à fotografia o movimento, introduzindo assim uma nova dimensão na representação visual. Não era a fotografia de um comboio, nem a de uma estação, o que importava. Mas o movimento do comboio a avançar até ao plano próximo e a provocar, segundo a lenda, a fuga dos espectadores, aterrados com semelhante aproximação. Recorrendo a esse exemplo famoso, esquece-se, habitualmente, que a força da imagem reside no seu enquadramento e "planificação", e esquece-se que o espectador era conduzido a um lugar que raramente ocupou, a não ser que seja ferroviário ou miraculoso sobrevivente de um desastre ou tentativa de suicídio: estar de pé numa linha de caminho-de-ferro, virado para um comboio a avançar contra ele.
O filme será antecedido pelo filme com o comboio dos Lumière que assustou os seus contemporâneos na sua apresentação pública. João Bénard da Costa descreveu o efeito numa das suas crónicas para o Independente, "O Olhar de Ulisses", contando que "o êxito de L'Arrivée d'un Train à la Gare de Ciotat (Louis Lumière, 1895) deveu-se ao facto de se "acrescentar" à fotografia o movimento, introduzindo assim uma nova dimensão na representação visual. Não era a fotografia de um comboio, nem a de uma estação, o que importava. Mas o movimento do comboio a avançar até ao plano próximo e a provocar, segundo a lenda, a fuga dos espectadores, aterrados com semelhante aproximação. Recorrendo a esse exemplo famoso, esquece-se, habitualmente, que a força da imagem reside no seu enquadramento e "planificação", e esquece-se que o espectador era conduzido a um lugar que raramente ocupou, a não ser que seja ferroviário ou miraculoso sobrevivente de um desastre ou tentativa de suicídio: estar de pé numa linha de caminho-de-ferro, virado para um comboio a avançar contra ele.
"Seja como for, o sucesso do cinema deveu-se a esse efeito do real e, por isso, nos primeiros tempos dele, tanto se insistiu na possibilidade de ver "como se lá se estivesse". Mesmo quando Méliès encenou em estúdio a coroação de Edward VII (1901) o filme foi publicitado como reportagem dessa coroação."
No Dictionnaire du Cinéma, Lourcelles termina a sua entrada sobre La sortie de l'usine Lumière à Lyon escrevendo que "hoje já ninguém duvida que é necessário designar Lumière como o primeiro realizador da história do cinema. Vamos vê-lo fascinado pelo movimento, tal como os seus discípulos e operadores que percorriam o mundo. Essa fascinação é contagiosa. Normalmente surge do facto de que Lumière procura o ângulo em que o maior movimento, e o mais harmonioso, é captado pela câmara. Câmara fixa, obviamente, mas que Lumière e os seus operadores irão colocar o maior número de vezes possível sobre um suporte móvel (cf. os admiráveis planos da Exposição universal de Paris captados do comboio que circula no interior da exposição; encontram-se vários nos dois documentários de Marc Allégret, Lumière e Exposition 1900, 1966). Como a necessidade aguça o engenho, muito do génio de Lumière reside na sua escolha de ângulos, sendo os mais naturais às vezes também os mais hábeis. Na imobilidade da câmara de Lumière, menos ávido em se mexer do que em captar o movimento, estão já contidos os planos (voluntariamente fixos) que realizarão Ford ou Lang no pico da sua arte algumas décadas mais tarde."
Na sua Biographie d'Éric Rohmer, Antoine de Baecque descreve o contexto e o ambiente em que os filmes de Rohmer para a televisão foram feitos, contando que "nesta altura, ele [Rohmer] roda emissões sobre o cinema para a televisão escolar, essencialmente, fecundando assim a sua cinefilia no momento em que esta se apaga, pelo menos na sua forma clássica. Encontra nesta altura Jean Douchet, que criou na segunda metade de 1967, a pedido de Georges Gaudu, a série « Aller au cinéma » para a RTS. Já tinham sido filmados uma dezena de programas antes, desde 1962, nomeadamente por Georges Rouquier, Robert Benayoun, Philippe Pilard, Georges Gaudu, ou pelo próprio Éric Rohmer (Les Histoires extraordinaires de Poe, L'Homme et les Images). Mas é com Douchet que o controlo e a coerência chegam e este programa. Assim, o crítico concebe pessoalmente catorze programas de cinema* de 1967 a 1969, enquanto que, sob a sua direcção, a série é enriquecida com filmes de Jean Eustache, de Jean-Paul Török e Roger Tailleur, de Bernard Eisenschitz ou Georges Rouquier. No total, são realizados quarenta programas em três anos**.
* À propos de Toni et de Païsa (1967), À propos de Tabou (1968), À propos de L'Intendant Sansho (1968), Extraits de À nous la liberté, un film de René Clair (1968), Initiation au cinéma 1: aller au cinéma (1968), Initiation au cinéma 2: voir le film (1968), Initiation au cinéma 3: connaître le passé du cinéma (1968), Les Trois Lumières, postface (1968), Tabou de Murnau (1968), Postface à L'Impératrice rouge (1969).
** Laurent Garreau, Le Cinéma au CNDP, 1962-1975, documento interno do CNDP, 2011.
"Rohmer encontra naturalmente o seu lugar neste ambiente amigável. Prepara e roda três programas: Postface à L'Atalante, Louis Lumière, e Postface à Boudu sauvé des eaux, difundidos entre 24 de Janeiro de 1968 e 16 de Dezembro de 1969. O primeiro filme é uma entrevista de dezassete minutos com François Truffaut a propósito da sua visão sobre o cinema de Jean Vigo; o terceiro é uma conversa de meia hora entre Jean Douchet e Éric Rohmer sobre Boudu sauvé des eaux, a riqueza da personagem, o seu lado maligno e destrutivo, a cultura clássica e iluminada de Renoir... Um Renoir que está omnipresente nestes filmes, tanto com Rohmer como na série « Aller au cinéma ». O « patrão*** », então rendido à vida cultural francesa - vive em Paris, na avenida Frochot, recebe os seus amigos da Nova Vaga regularmente, preside a comissão de apoio a Henri Langlois em 1968 -, impõe-se como o modelo do autor por excelência.
*** Jacques Rivette, Jean Renoir, le patron, episódio da série « Cinéastes de notre temps », 1966.
"Ele intervém em pessoa no principal filme de Rohmer sobre o cinema: Louis Lumière. É ele que, a pedido de Rohmer e seguindo as suas perguntas, comenta as vistas cinematográficas. Instalado de forma confortável numa poltrona, imediatamente juntado por Langlois, impulsivo e brilhante, Renoir conta da sua descoberta maravilhada destes filmes curtos. Evoca os seus contextos pictóricos e civilizacionais, o que os torna o equivalente de uma obra impressionnista, exalta a captação vibrante da vida real e elogia a composição, bem mais elaborada do que se cria geralmente, os planos, as durações, os movimentos. Rohmer, graças a Renoir e Langlois, contribui humildemente, na posição daquele que faz falar, para o reconhecimento definitivo do génio do cinematógrafo."
Até Sexta!
No Dictionnaire du Cinéma, Lourcelles termina a sua entrada sobre La sortie de l'usine Lumière à Lyon escrevendo que "hoje já ninguém duvida que é necessário designar Lumière como o primeiro realizador da história do cinema. Vamos vê-lo fascinado pelo movimento, tal como os seus discípulos e operadores que percorriam o mundo. Essa fascinação é contagiosa. Normalmente surge do facto de que Lumière procura o ângulo em que o maior movimento, e o mais harmonioso, é captado pela câmara. Câmara fixa, obviamente, mas que Lumière e os seus operadores irão colocar o maior número de vezes possível sobre um suporte móvel (cf. os admiráveis planos da Exposição universal de Paris captados do comboio que circula no interior da exposição; encontram-se vários nos dois documentários de Marc Allégret, Lumière e Exposition 1900, 1966). Como a necessidade aguça o engenho, muito do génio de Lumière reside na sua escolha de ângulos, sendo os mais naturais às vezes também os mais hábeis. Na imobilidade da câmara de Lumière, menos ávido em se mexer do que em captar o movimento, estão já contidos os planos (voluntariamente fixos) que realizarão Ford ou Lang no pico da sua arte algumas décadas mais tarde."
Na sua Biographie d'Éric Rohmer, Antoine de Baecque descreve o contexto e o ambiente em que os filmes de Rohmer para a televisão foram feitos, contando que "nesta altura, ele [Rohmer] roda emissões sobre o cinema para a televisão escolar, essencialmente, fecundando assim a sua cinefilia no momento em que esta se apaga, pelo menos na sua forma clássica. Encontra nesta altura Jean Douchet, que criou na segunda metade de 1967, a pedido de Georges Gaudu, a série « Aller au cinéma » para a RTS. Já tinham sido filmados uma dezena de programas antes, desde 1962, nomeadamente por Georges Rouquier, Robert Benayoun, Philippe Pilard, Georges Gaudu, ou pelo próprio Éric Rohmer (Les Histoires extraordinaires de Poe, L'Homme et les Images). Mas é com Douchet que o controlo e a coerência chegam e este programa. Assim, o crítico concebe pessoalmente catorze programas de cinema* de 1967 a 1969, enquanto que, sob a sua direcção, a série é enriquecida com filmes de Jean Eustache, de Jean-Paul Török e Roger Tailleur, de Bernard Eisenschitz ou Georges Rouquier. No total, são realizados quarenta programas em três anos**.
* À propos de Toni et de Païsa (1967), À propos de Tabou (1968), À propos de L'Intendant Sansho (1968), Extraits de À nous la liberté, un film de René Clair (1968), Initiation au cinéma 1: aller au cinéma (1968), Initiation au cinéma 2: voir le film (1968), Initiation au cinéma 3: connaître le passé du cinéma (1968), Les Trois Lumières, postface (1968), Tabou de Murnau (1968), Postface à L'Impératrice rouge (1969).
** Laurent Garreau, Le Cinéma au CNDP, 1962-1975, documento interno do CNDP, 2011.
"Rohmer encontra naturalmente o seu lugar neste ambiente amigável. Prepara e roda três programas: Postface à L'Atalante, Louis Lumière, e Postface à Boudu sauvé des eaux, difundidos entre 24 de Janeiro de 1968 e 16 de Dezembro de 1969. O primeiro filme é uma entrevista de dezassete minutos com François Truffaut a propósito da sua visão sobre o cinema de Jean Vigo; o terceiro é uma conversa de meia hora entre Jean Douchet e Éric Rohmer sobre Boudu sauvé des eaux, a riqueza da personagem, o seu lado maligno e destrutivo, a cultura clássica e iluminada de Renoir... Um Renoir que está omnipresente nestes filmes, tanto com Rohmer como na série « Aller au cinéma ». O « patrão*** », então rendido à vida cultural francesa - vive em Paris, na avenida Frochot, recebe os seus amigos da Nova Vaga regularmente, preside a comissão de apoio a Henri Langlois em 1968 -, impõe-se como o modelo do autor por excelência.
*** Jacques Rivette, Jean Renoir, le patron, episódio da série « Cinéastes de notre temps », 1966.
"Ele intervém em pessoa no principal filme de Rohmer sobre o cinema: Louis Lumière. É ele que, a pedido de Rohmer e seguindo as suas perguntas, comenta as vistas cinematográficas. Instalado de forma confortável numa poltrona, imediatamente juntado por Langlois, impulsivo e brilhante, Renoir conta da sua descoberta maravilhada destes filmes curtos. Evoca os seus contextos pictóricos e civilizacionais, o que os torna o equivalente de uma obra impressionnista, exalta a captação vibrante da vida real e elogia a composição, bem mais elaborada do que se cria geralmente, os planos, as durações, os movimentos. Rohmer, graças a Renoir e Langlois, contribui humildemente, na posição daquele que faz falar, para o reconhecimento definitivo do génio do cinematógrafo."
Até Sexta!
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