domingo, 11 de março de 2018

Louis Lumière (1968) de Éric Rohmer



por João Palhares

Devido à existência de várias versões das chamadas “vistas cinematográficas” dos irmãos Lumière e devido às grandes diferenças entre elas, aliadas às cronologias estabelecidas pelos historiadores para encontrar as versões oficiais das mesmas, às vezes delineadas por meras flutuações no clima registadas na altura, a idade dos intervenientes nas imagens dos Lumière ou pequenos apontamentos em artigos dos jornais da época, tornou-se imperativo apelidar os Lumière de cineastas e deixar de repetir a história dos técnicos ingénuos que fizeram curiosidades históricas, simples documentos da viragem do século. O assombro causado por muitas das curtas dos Lumière é um efeito a que eles não eram de todo inconscientes, porque reparavam erros durante a captação das suas “vistas”, intuitivamente, e na procura desse mesmo efeito. As correcções feitas a La sortie de l’usine Lumière à Lyon (nas três versões que se conhecem) são por isso reveladoras: nas primeiras duas versões, os trabalhadores levam muito tempo a sair da fábrica e as carroças puxadas a cavalo atrapalham-lhes os movimentos, por isso Louis Lumière decidiu retirar a carroça totalmente e apressar os seus trabalhadores, conseguindo a fluidez e a ideia de início e de fim (aqui marcadas pelo abrir e fechar dos portões) que estão presentes em tantas das suas curtas. 

“Quando se olha com muita atenção para os filmes de Lumière”, diz Langlois neste filme, depois de Rohmer ter dito que não havia mise en scène nos filmes dos irmãos, “parecem muito espontâneos, que só puseram as câmaras na rua e que é a rua a desfilar, e se é bom, se nos impressiona, dizemos que foi sorte. Mas não é sorte, porque há planos dos Lumière que são evidentes. Por exemplo, quando se vê num filme de Louis Lumière– e isto é uma questão de tempo, temos um filme e ele dura tanto e o plano dura outro tanto – mas por exemplo, o filme começa com um eléctrico que entra em plano pela direita, depois há uma série de movimentos, e acaba com outro eléctrico que entra em plano pela esquerda. Acha que é sorte? Não é sorte, de todo. Eles procuraram locais, eles viram como é que as coisas se passavam durante algum tempo, escolheram o melhor ângulo e conseguiram a coisa mais extraordinária (e que costumamos esquecer) que foi inserir na imagem, durante esses poucos segundos, o máximo de planos, sem mudar o lugar da câmara. Temos o grande plano, o plano médio, o plano americano e temos o plano de conjunto com um movimento que os liga a todos. E isso não é sorte. É ciência.” 

É a partir deste momento que o que achávamos ir ser só uma conversa com belos testemunhos, um mero registo de uma conversa feito para a televisão, se transforma no equivalente cinematográfico para a obra de Platão ou de Xenofonte, filósofos gregos que documentaram não só a existência como o pensamento de Sócrates, o mais famoso dos filósofos. Tal como Renoir e Langlois dão testemunho do génio de Lumière e tal como Rohmer documenta o pensamento de Langlois. Louis Lumière, o filme, o episódio da série « Aller au cinéma », como lhe quiserem chamar, faz-nos ver a fragilidade dos meios que albergam o conhecimento, das dificuldades físicas da sua transmissão, das barreiras temporais e das circunstâncias que se batem com ele de forma impiedosa e tantas vezes nos conseguiram impedir de lhe aceder. Podíamos ter perdido Sócrates, podíamos ter perdido Lumière e perdemos muita coisa, sem dúvida, do incêndio de Alexandria à chegada do cinema sonoro aos Estados Unidos da América, que condenou 90% do cinema mudo à destruição. Langlois, que com Lotte Eisner salvou centenas de bobines durante o flagelo da segunda Guerra Mundial, sabe do que fala quando menciona essa fragilidade, ainda muito real. Como quando descreve feitos que ainda não eram conceitos, por parte dos operadores dos Lumière, ou quando descreve o cinema como o objectivo e a meta do impressionismo. 

É pelas palavras de Langlois que as curtas ou “vistas” dos Lumière se vão transformando em cinema à frente dos nossos olhos, numa viagem de descobertas infindáveis, um caleidoscópio ilimitado que contém toda a gramática do cinema. Rohmer terá percebido isso durante a fase da montagem (crença minha) e o cepticismo inicial deu lugar à fé absoluta, seleccionando a melhor ordem de imagens para nos causar essa sensação maravilhosa de descoberta, sem dúvida semelhante à sua: dos primeiros movimentos em diagonal (ou em triângulo, como diz Langlois) à abstracção pura dos aquários inundados de luz e das imersões na escuridão de túneis que testam os limites da sensibilidade dos obturadores. E se o melhor filme de Éric Rohmer é uma pequena conversa feita para a televisão em 1968? Cinema são sons e imagens, orquestrados para produzir um efeito, mil sensações. Grande parte das vezes (para não dizer sempre, que não é isso que nos toca, é o jogo que isso potencia) não são precisos heróis nem vilões, suspensões da descrença, três actos ou morais da história, basta uma câmara apontada a um homem que não para de fumar e que fala do que gosta. Depois mostra-se do que é que ele gosta e na acepção dos russos cria-se essa terceira imagem que nos deixa atónitos e em busca de palavras para a descrever (os tratados imersivos e utópicos de Eisenstein, os aforismos em formas de perguntas de Jean-Luc Godard). O concreto e o material do cinema entram no domínio do metafísico, no mundo invisível que perfaz os sonhos e o conhecimento e nos ajuda a reagir ao mundo visível e material. 

Que é como quem diz, dos Lumière para esta sala.

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