quarta-feira, 14 de março de 2018

Lumière! L'aventure commence (2016) de Thierry Frémaux



por João Palhares

[nota prévia: à falta da versão para cinema de Lumière!, que não consegui arranjar para escrever esta folha, vi a que consta num DVD de 2015 editado pelo Institut Lumière e que se chama Lumière! Le cinématographe 1895-1905, que sei que não é a mesma por não ter visto ou ouvido Martin Scorsese em lado nenhum, mas em que há a opção de ver o filme sem os comentários de Thierry Frémaux, o que é óptimo (e fá-lo-ei em breve) e nos traz o trabalho dos Lumière em todo o seu esplendor – mas não numa sala de cinema. Em todo o caso, se essa versão é muito diferente do filme que hoje vão ver, peço imensa desculpa. A Thierry Frémaux também.] 

Um problema que se coloca ao tentar escrever sobre este projecto de Thierry Frémaux, o director do Festival de Cannes e do Instituto Lumière, é saber se se deve falar dele como um filme de Frémaux ou como parte da obra dos Lumière, como uma colectânea dos seus filmes. Porque se no filme de Éric Rohmer que vimos a semana passada se começa por separar as “vistas” dos Lumière dos comentários de Renoir e de Henri Langlois, deixando-as respirar e deixando sobretudo que o espectador as veja, para depois imbuir “vistas” e comentários e elevar esse episódio de « Aller au Cinéma » a obra capital do cinema, e como obra de Éric Rohmer, num trabalho de montagem exímio e fascinante, em Lumière! ouvimos Frémaux do princípio ao fim e vemos filmes dos Lumière do princípio ao fim. Os críticos mais avançados e mais modernos diriam que é tudo respeito do realizador pelo espectador, que no fim de contas consegue fazer mais do que uma coisa ao mesmo tempo. Diriam que é respeito do realizador pela obra que comenta, mantendo-a totalmente intacta. Mas quando vemos ensaios de Tag Gallagher, por exemplo, não duvidamos por uma vez que para falar sobre os filmes por meios visuais é preciso pará-los, puxá-los para a frente e para trás, descaracterizá-los ao máximo para lhes fazer a máxima justiça, para a imagem encontrar um equivalente nas palavras. Não é coisa propriamente nova: nos anos 50, Bazin fez comentário semelhante em relação à representação da pintura no cinema, em como era preciso desvirtuá-la para a coisa funcionar. Será a única maneira? Não sei, mas vendo Lumière! fica-se com a sensação de nem se ver os Lumière nem se ouvir Frémaux. 

 Isto não quer dizer que Frémaux diga coisas desinteressantes, porque não é verdade que o faça, nem que não haja momentos bem bonitos de junção das imagens com as palavras que diz, como quando fala de Chaplin enquanto vemos uma criança a afastar-se sozinha pela estrada ou quando descreve a parte final daquele que, para ele, é o melhor filme dos Lumière e dos seus operadores, Le village de Namo – Panorama pris d’une chaise à porteurs (1900) de Gabriel Veyre. Mas parece que são apenas momentos felizes e aleatórios e não deixa de dar a ideia de que estamos a ver uma retrospectiva do trabalho dos Lumière enquanto alguém fala ao nosso lado na sala durante toda a sessão. A Frémaux perdoa-se isso, uma vez que é director do Instituto Lumière, é nisso que é suposto acreditarmos e é isso que é suposto defendermos? Podia-se contra-argumentar dizendo que o trabalho dos Lumière se presta a isso, que são imagens avulsas e aleatórias às quais se pode acrescentar sempre um ponto e enquanto o conto decorre, mas o comentário de Frémaux diz exactamente o contrário, fala de mise en scène, de inícios e de fins nos planos únicos, de perspectiva, de pensamento, de precisão e de muitíssimo trabalho. Coisas em que acreditamos piamente, de resto, como puderam verificar na nossa última folha de sala. 

Enfim, não podíamos levar Frémaux aos céus poucos dias depois de termos visto Louis Lumière, e temos que nos perguntar se este empreendimento muito necessário, importantíssimo e infinitamente louvável de restaurar a obra dos irmãos precisava deste filme, que pelas palavras do seu realizador quer “mostrar o restauro dos filmes Lumière e ir ao encontro do público em condições normais de projecção,” mas faz isso com os comentários de Frémaux e essa é uma nuance que não se pode ignorar. Pode-se supor, no entanto, que era a única maneira desse empreendimento ser concretizável e viável, porque um filme de uma hora e meia “só” com música de Saint-Saëns e “só” com as curtas dos Lumière nunca passaria em sala e nunca teria um investidor. Mas se calhar só assim é que a aventura começava. E isto são tudo perguntas e considerações que podemos fazer depois de ver esta experiência de Frémaux, mas para isso temos que a exibir e deixar-vos tirar as vossas próprias conclusões. São as diferenças entre programar um filme e ter que falar sobre ele. E podem ser mais notórias, de vez em quando.

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