segunda-feira, 18 de março de 2019

Oyû-sama (1951) de Kenji Mizoguchi



por João Bénard da Costa

A segunda das “três senhoras” de Mizoguchi chamou-se Oyu e o cineasta foi buscá-la a um dos maiores romancistas japoneses do século XX, Junichirô Tanizaki (1886-1965), que a criara no conto Ashikari, de que existem traduções inglesa e francesa. Deux Amours Cruelles chamou-se a tradução francesa, editada pelo Stock em 1979. Para além de uma obra imensa, publicada entre 1910 e 1965, Tanizaki foi o homem que, em 1932, verteu para japonês moderno um dos monumentos da literatura clássica do seu país: os celebérrimos Contos de Genji de Murasaki Shikibu (Lady Murasaki, como alguns a conhecerão) que os escreveu há quase mil anos, entre 1007 e 1010. Outros ou os mesmos saberão que os famosos Contos foram uma das fontes de inspiração de Paulo Rocha para o seu filme O Desejado (1987). Quando ouvirmos, no filme, Oyu citar Os Contos de Genji entre as suas obras favoritas, não é para estranhar, vindo de quem vem. E é curioso recordar que os contemporâneos chamaram a Tanizaki “o escritor das mulheres” e que a sua obra foi caracterizada como um permanente documento sobre “o eterno feminino”. Tal como Mizoguchi. 

Apesar da aproximação temática que alguns críticos japoneses têm feito entre a obra de Tanizaki e a de Mizoguchi, nem o realizador nem o argumentista ficaram com boas recordações do filme. No livro, a narrativa é um longo “flash-back”, quando um já velho Shinnosuke conta a história da sua vida. Diz o argumentista Yoda: “De início, procurei conservar o carácter onírico da recordação e manter a construção em 'flash-back'. O regresso a tempos passados contribuía para reforçar o mistério. Mas essa sucessão de 'flash-backs' foi liminarmente recusada por Matsutaro Kawaguchi, o director do estúdio da Daiki em Quioto, que receou o descalabro comercial.” Por outro lado, Kinuyo Tanaka achava a Oyu de Tanizaki muito lânguida e etérea e Mizoguchi concordou com ela, dirigindo-a de forma muito mais energética. “Em Oyu-Sama – disse Yoda – fomos vencidos pela literatura”. Mizoguchi, como sempre ou quase sempre, foi também muito autocrítico: “não fizemos um bom trabalho. Deixei-me levar pelas modas e manias do tempo”. Como sempre ou quase sempre não tem razão. Oyu-Sama, sobre o qual Serge Daney escreveu em tempos um texto magnífico, é, para mim, tão fascinante como qualquer das senhoras que a precederam e seguiram: Yuki, a branca da neve (O Destino da Senhora Yuki), Michiko, a pálida e crepuscular Senhora de Musashino

A Yuki deu Mizoguchi a luz lunar que a quase todo o filme preside. A hora do pôr-do-sol foi a hora de Michiko em Musashino. Oyu, o filme das três primaveras, começa com todo o sol e acaba com toda a lua. Intensamente solar no início, nessa tarde em que Shinnosuke se enganou de mulher ou foi enfeitiçado por outra mulher, acaba sob uma lua imensa, na noite em que o protagonista traz como presente a Oyu, o filho que tivera de Oshizu e que, como ele, será um filho sem mãe. E bastariam essas sequências – iniciais e finais – para que essa obra fosse já o prodígio que é. 

Falei de três primaveras. Oyu-Sama é também o filme de três concertos, o filme de Mizoguchi em que a música (o koto) tem lugar mais central, a ponto de se poder dizer que lhe cabe o lugar que em Utamaro coube à pintura e em tantos outros filmes coube ao teatro. Este “conto da lua vaga”, este “conto dos cerejais em flor” é um conto musical, um conto encantado. “De cada vez que penso em ti, tudo é melancolia” diz a letra da canção, que também por três vezes ouvimos: durante o genérico, no segundo dos três concertos de Oyu, e no final, na oferenda do bebé. “Nun will die Sonn so hell aufgeh'n”. A primeira das crianças mortas. O espírito de Mahler, como o espírito de Tchekov, não andam longe. 

Tenho insistido no número três. Reparar-se-á que este filme, ao contrário de quase todos os filmes de Mizoguchi, com muitas personagens importantes, centra-se também num trio: as duas irmãs e o homem que ambas amaram. Todos os outros são quase inexistentes. 

Tudo começa com um pedido de casamento, na primeira das primaveras. Há um movimento envolvente de câmara, quando o grupo de mulheres se aproxima de Shinnosuke, como se algo de mágico lhe acontecesse. Depois, em plano médio, vemos Oyu, a causadora do feitiço, com o quimono branco e o chapéu de sol branco, como se a luz e o calor fossem fortes demais para ela (mais tarde desmaiará com o sol), o que motiva o seu primeiro encontro a sós – e na penumbra – com Shinnosuke. E imediatamente surge o aviso: “Não as confundas”. Não, não era aquela mulher, sempre proeminente, sempre avançada em relação ao grupo, a mulher que a família queria casar com o aturdido rapaz. Mas a irmã dela, muito mais nova, aparentemente muito mais bonita, mas em que Shinnosuke nem sequer reparou (nem nós, nesse plano de mulheres). Mas é de Oyu o leque que fica na cerejeira e que depois a irmã apanha, até ao grande plano do leque na mão dela. Mais tarde, Shinnosuke dirá a Oyu que ela lhe lembra a mãe que morreu quando ele tinha quatro anos. Oyu a viúva, Oyu que não pode voltar a casar porque tem que educar o filho que será o herdeiro do clã, Oyu a vestal, é também Oyu a mãe, a mulher de tempos muito mais antigos e a deusa da música, nesse primeiro concerto primaveril, com planificação fragmentada e em que com Oyu só “contracena” com os espaços vazios dedicados aos arranjos florais e às peças de cerâmica. 

Será a personagem tão distante e tão desinteressada como então nos surge? Há uma ambiguidade prodigiosa na sequência da cabana, quando Shinnosuke, extático, a abana e, num momento, quase a beija. “Pensei que era Deus que me vinha salvar”. E os olhos fechados abrem-se. 

Como soube Oshizu dessa história de amor que ninguém lhe contou? Porque é que as gentes começaram o murmurar sobre o “ménage à trois” que eles vão viver depois do casamento de Oshizu e Shinnosuke? Há coisas que não se dizem. Há coisas que se vêem. Como naquela fabulosa sequência da brincadeira de Oyu com o cunhado, quando o obriga a suster a respiração e depois lhe faz cócegas. Estão os três, estão sempre os três, mas o casamento, branco por vontade de Oshizu (ou por vontade de Oyu?) é, desde o início, compartilhado. E a ilustração suprema é o segundo concerto, um ano depois do casamento de Shinnosuke e Oshizu. A canção só é cantada por Oyu e por Shinnosuke. Mas no plano-sequência as duas mulheres estão sempre juntas e é o homem quem as enlaça a elas e a elas com a música. E esse plano é quase tão interminável como o plano da inexistente noite de núpcias de Shinnosuke e Oshizu, quando o “casal” troca sucessivamente de posição tanto tempo quando dura a confissão de Oshizu e o seu pedido. 

Há qualquer coisa de um Jules et Jim por haver nessa sequência de felicidade a três e em que os três brincam aos irmãos e irmãs. Mas Mizoguchi não caminha nessa direcção. Ouve-se o coaxar das rãs, o piar das corujas, no lago há uma espuma branca. Sabemos que se acabou o tempo do sol e que a lua iniciou o seu reino. Morre, inexplicavelmente, o filho de Oyu, os grandes cerejais são murados ao fundo, dos lagos se passa ao mar e às rochas e o que se via começou a ser dito e falado. Um dia, Oshizu descobrirá que falta um talher à mesa e nunca mais nem ela nem ele verão Oyu, que casou com quem não queria casar. 

A última primavera – a primavera do nascimento do bebé – já não é fonte de vida mas de morte. Oshizu ainda quer ver as cerejeiras em flor, mas nada florirá nessa vida de casal em Tóquio. E é com o quimono de Oyu que Oshizu morre. Depois, é o último concerto à lua. E a lua trouxe o bebé e a lua levou Shinnosuke, no imponderável plano final. 

Este é o filme que faz tanta pena. Este é o filme entre o tarde e o cedo. O corpo de um homem e a alma de duas mulheres. E, no fim, como no princípio, só Oyu reina. Morreu Oshizu. Shinnosuke volveu-se noutro homem e noutra aparência. E o sol deu lugar à lua, a lua que brilha sobre o rio, onde um barco leva para sempre o filho que não achou mãe e o homem que não achou mulher. 

Mulher, disse eu. 

“Se algum de vós avistasse o que seríamos com o tempo 
todos nós choraríamos, de muita pena e susto imenso” 
Cecília Meireles, disse ela. 

in «As Folhas da Cinemateca – Kenji Mizoguchi», Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa, Março de 2005, pp. 89-92.

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