segunda-feira, 25 de março de 2019

Sommarlek (1951) de Ingmar Bergman



por João Bénard da Costa

Quem me tem vindo a seguir, já sabe, nesta altura do campeonato, por que é que Sommarlek é o mais belo dos filmes. Há os que já perceberam ou os que nunca hão-de perceber nada. Tanto para uns como para outros, não adiantam mais explicações. 

Por isso, se eu digo e repito que Sommarlek é o mais belo dos filmes, posso acrescentar que – só em Ingmar Bergman – há mais sete filmes que são também o mais belo dos filmes. Por ordem cronológica, Sasom i en Spegel (Em Busca da Verdade) de 1961, Nattvardsgästerna (Luz de Inverno) de 1963, Tystnaden (O Silêncio) de 1963, Persona (A Máscara) de 1966, Vargtimmen (A Hora do Lobo) de 1968, Ansikte Mot Ansikte (Face a Face) de 1975 e Saraband de 2004. 

Bergman não gostou do tal artigo de Godard nem da conversa do «mais belo dos filmes». Achou que ele mistificava ou, para ser mais exacto, que apresentava as coisas magicamente (o que é verdade). E devolveu-lhe o elogio: «É exactamente o que ele próprio fez, feiticeiro vítima do seu próprio feitiço. Neste artigo, estava a escrever sobre ele, não sobre mim». Podia repontar-se a Bergman: alguma vez ele filmou sobre outros e não só sobre ele?

Mas Bergman também colocou sempre Sommarlek, décima das suas longas-metragens, num lugar muito especial. «Pela primeira vez» - disse ele - «senti que estava a funcionar com total autonomia, com um estilo já só meu, com uma especificidade particular que era minha e só minha e mais ninguém podia imitar». E, se acusou Godard de falar dele (Godard) em vez de falar do filme, também disse que Marie, a bailarina protagonista de Sommarlek, era ele (Bergman). «Há imensas coisas minhas em Marie. Marie, o director do ballet e David, o medíocre e indolente jornalista, são, os três, projecções minhas.» Já de Henrik, o pobre estudante, disse que lhe tinha servido apenas de cabide. «Nunca me interessou muito.»

Marie foi um conto de Bergman, antes de ser o filme Sommarlek. Um conto que escreveu em 1937, com 19 anos, «sobre umas férias de verão nas rochas e o primeiro grande amor.»

Marie e Henrik conheceram-se aos 17 anos, numa ilha do norte da Suécia, onde passaram as férias de verão. Ela, em casa dos tios. Ele, em casa de uma tia viúva e cancerosa, que, ao sol da meia-noite, jogava xadrez com um padre. Era perigoso e terrível o mundo podre dos adultos. O tio lúbrico, que já comera muito a senhora mãe dela e agora lhe andava à roda da carne fresca. A tia, roída pelo cancro até às entranhas, beata e sempre vestida de negro. Aos 17 anos, esses sinais perturbam mas não escurecem. Como as nuvens negras que só momentaneamente tapam o sol. Nenhuma dessas aves de mau agouro impediu o belo amor dos adolescentes, esse amor de nunca mais e como nunca mais. Nos dias sem fim do brevíssimo verão, pela primeira vez aquela mulher conheceu um homem, e, pela primeira vez, aquele homem conheceu uma mulher. Os corpos, as almas. Até que um dia, uma noite, depois de mais um dia, de mais uma noite, voltaram à praia, às rochas e ao mar, como todos os dias voltavam. Como todos os dias, Henrik quis mostrar a Marie um dos seus belos mergulhos. A maré estava mais baixa ou o salto foi menos exacto. Henrik bateu com a cabeça numa rocha. A agonia num hospital, a morte. Aos 17 anos.

Agora, sim, tudo ficou tapado para Marie. Num plano fabuloso, virada para nós e de costas para o tio, que a tinha ido buscar, diz-lhe: «Não acredito que Deus exista. E, se existe, odeio-O. E nunca deixarei de O odiar. Se O visse na minha frente, cuspia-Lhe na cara. Odiá-Lo-ei durante toda a vida.»

Marie queria ser bailarina, esquecia-me de dizer. Foi-o. Mas a alma não se moveu mais. Deixou-se ser amante do tio, que conseguiu do desespero o que não conseguiu da esperança. O tempo cura tudo? Pelo menos, é provável que ela se tenha esquecido muito. Conheceu David, o jornalista que queria casar com ela. Já não tinha mais 17 anos, mas 30. Treze anos depois. E, numa noite de espectáculo (O Lago dos Cisnes), o tio mandou-lhe ao teatro o diário de Henrik, que ele retirara no hospital e que, durante treze anos, nunca lhe tinha mostrado. Marie volta à ilha, pela primeira vez, depois. Ainda lá vive, cada vez mais velha e cada vez mais cancerosa, a tia de Henrik. Ainda lá vive o tio, a tocar Chopin ao piano. Quando volta depois do espectáculo, decide-se a casar com David, para quem não tinha muita pachorra.

Isto tudo assim arrumadinho, de pouco serve. Até porque no filme nada está arrumadinho. Começa na noite em que Marie recebe o diário de Henrik e avança por flash-backs, dentro de flash-backs daquele jeito peculiar que, a partir de Sommarlek, sempre foi de Bergman, de se servir desse processo para abrir portas para o passado. E acaba com um happy end (que não é happy end): Marie a aceitar casar com o jornalista.

Marie, como disse, tem 30 anos no fim do filme, que, de propósito, não chamo o presente dele. Bergman tinha 33 quando o filmou. Ambos sabiam já que «nunca mais» a luz dos 17 ou dos 19 voltaria, que «nunca mais» se comerão morangos como aos 17 se comem, que «nunca mais» o mar e as rochas serão vistos com os mesmos olhos. Ambos sabiam que «nunca mais» voltam the days of wine and roses. Por isso, ambos podem olhar para o «verão do amor» (foi assim que o filme se chamou em Portugal, quando por aqui se estreou em 1963, treze anos depois de ser rodado) tão enfeitiçados como Bergman dizia que Godard estava. Mas, aos 33 anos, também já se pode ter o recuo suficiente e necessário – não mais, não menos – para não tropeçar em qualquer sentimentalismo e para olhar os personagens e os reflexos deles com tanta saudade quanto limpidez.

Sommarlek – apesar do happy end ou por causa do happy end – é um filme de dor e de nostalgia, um filme de luto. No camarim de Marie, depois de ela voltar da ilha, o director da companhia, vestido de palhaço (vai representar o papel de Copellius no bailado de Delibes) surge-lhe no espelho e especularmente lhe diz as palavras de um sage que a ajudam a recomeçar em circulação. Será mais forte essa máscara e esse mágico discurso, ou a máscara silenciosa da tia de Henrik, imagem da morte, que, nessa mesma tarde, ela reviveu na ilha? Será mais forte essa máscara e essas mágicas palavras, ou as palavras «diabólicas» que ouviu do tio, prometendo ajudá-la e ensiná-la a «murar-se» contra o mundo, criação do diabo? O tio ofereceu-lhe o «muro», a velha do guarda-chuva a existência de fantasma, o palhaço propõe-lhe a aceitação. Nada nunca mais se repete. É por isso que tudo sempre deve ser repetido. Nunca mais voltará o «esplendor das rochas», mas o que podemos fazer é arrancar as máscaras, como essa de bailarina, que as lágrimas de Marie desfazem enquanto ouve o mestre e se olha ao espelho. Assumir a nudez da cara com que ficámos é assumir a nudez da imagem que o espelho nos reflecte dessa cara.

O grande prodígio de Sommarlek – um dos grandes prodígios – é a dissolução de tudo em tudo, do tempo para amar no tempo para morrer e do tempo para morrer no tempo para amar.

Pelo tempo – badaladas de um relógio – começa o filme. E a imagem do relógio funde-se com a de girassóis e pássaros, barcos e mar. Do tempo, passamos ao templo – a Ópera, o Ballet –, na noite em que foi devolvido o diário de Henrik e em que alguém diz que há um cheiro esquisito no teatro. Quando o espectáculo vai começar, o bailado mágico de Tchaikowski é magicamente interrompido por «um problema de electricidade». As bailarinas falam do envelhecimento (caras de 45 anos em corpos de 18) e começam os grandes planos tácteis de Maj-Britt Nilsson, ela também a mais mágica de todas as actrizes de Bergman.

E os sinais continuam a acumular-se. A zanga com David, o padre do passado em cima de uma bicicleta, o regresso de Marie à ilha, o vento na banda-sonora, uma nuvem negra a tapar o sol. Depois, o primeiro flash-back.

Uma história de frutos e flores, de sol e águas transparentes. Uma história de sítios secretos, de pássaros de verão, de nuvens e rochas. Pavões, Chopin, a casa dos tios, a primeira noite de amor feito, uma bola de sabão, uma profundidade de campo ilimitada, uma paz mizoguchiana. E, sobre tudo e todos, a afirmação carnal, irradiante, dos jovens corpos de Marie e Henrik. Tão depressa tudo se ilumina como tudo se obscurece, manchas de adultos e claridades de adolescentes, pagando-se e despegando-se.

Mas do que eu mais gosto é da passagem do primeiro flash-back ao «presente», quando Marie regressa à casa de verão, agora deserta e com móveis tapados com panos, ouvindo o mesmo Chopin que ouviu na primeira noite e repara que as mãos do tio são belas e horríveis e lembra-se que as mãos de Henrik o eram também. Tudo é belo e horrível. Tão belo e tão horrível.

Mas do que eu mais gosto (segundo flash-back) é da sequência, na última noite de Marie e Henrik, em que eles ouvem discos de 78 rotações e vêem desenhos animados num projector de 8mm. E é do fim dessa sequência com o beijo. Os anéis, as juras, «tremer de frio e de medo».

Mas do que eu mais gosto é da elipse da queda e da morte de Henrik e do longuíssimo plano da longuíssima vigília dela, junto do corpo dele no hospital, até o médico lhe fechar os olhos.

Mas do que eu mais gosto é da duração infinita desse plano fixo da cara dela, da revolta rouca dela. É o fim do filme, não é o fim do filme.

O resto vemo-lo num espelho. Entre O Lago dos Cisnes e Copélia. Tudo se passa entre dois bailados, duas danças. Como Godard dizia, «l'éternité au secours de l'instantané».

Sommarlek é o mais belo dos filmes. Sabe tão bem voltar a dizê-lo com a boca cheia. 

in «Os Filmes da Minha Vida – 2º volume», Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2007, pp. 32-37.

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