quarta-feira, 4 de abril de 2018

88ª sessão: dia 6 de Abril (Sexta-Feira), às 21h30


Tido como o mais francês dos cineastas franceses, Jacques Becker começou a carreira como assistente de Jean Renoir (escola frequentada também por Luchino Visconti, Henri Cartier-Bresson, Satyajit Ray ou Paulo Rocha, para citar apenas alguns), assinando a primeira longa-metragem como realizador em 1942, Dernier atout. Como esse primeiro filme, a nossa próxima sessão na velha-a-branca, Ne touchez pas au grisbi, também é um policial, mas como sempre em Becker, trata-se apenas do pano de fundo que abriga as suas personagens, que é com o que mais se importa, à moda de Hawks.

Quando Jacques Rivette e François Truffaut lhe perguntaram se ainda o consideravam um "cineasta social", Becker respondeu-lhes que "Acredito que ainda há uma espécie de verdade. Fez-se mal em acreditar sem rodeios que eu tinha procurado ser «social» a todo o custo. Essa impressão é causada pelo facto de que nos meus filmes, geralmente, nos interessamos bastante nas personagens. É o lado um bocado entomologista que posso ter: isto passa-se na França, eu sou francês, trabalho sobre franceses, olho para os franceses, interesso-me nos franceses. Mas interesso-me nas personagens por um certo número de lados, que não são apenas os que são indispensáveis para a compreensão a acção. Max o Mentiroso, no Grisbi, por exemplo, é um senhor que também adora os discos e a música, e sentimos que também pode gostar de carros. Porque as pessoas são assim, no fundo, não acham? Acho que somos um bocado grosseiros, de forma geral, não sabemos nada de... - Não sei porque é que falo de La Dame aux Camélias a toda a hora; é um filme que vi recentemente e que acho notável, bem melhor do que a crítica disse; quando voltei a ler certos artigos depois de ter visto o filme, fiquei indignado pela injustiça de alguns jornalistas. No entanto, por causa de Dumas filho, que Raymond Bernard foi forçado a respeitar, ninguém sabe ao certo quem é Marguerite Gauthier: sabe-se que ama Armand, mais ignora-se o resto; ignoramos por completo a sua verdadeira personalidade."

Como escreveu João Bénard da Costa no Independente, "roubos, ajustes de contas, até o espectro da velhice tão poderosamente trazido a primeiro plano, são o "macguffin" de Becker. Porque Touchez Pas au Grisbi (e ignoro se a expressão em calão pode ter outros sentidos) é o filme sobre o amor entre dois homens: Max e Riton (René Dary), esse a quem Gabin chama tantas vezes, tocando-o, "tête d'hérisson". Há vinte anos que trabalhavam juntos, há vinte anos que não se largavam. Como o bando diz, Max "quando il aime quelqu'un c'est la vie à la mort". E quelqu'un não vale para quelqu'une, pois que a Max conhecemos muitas mulheres e todas efémeras. Mas será que Max amou alguma vez alguma mulher?

"De Riton não sabemos. Mas sabemos, quando o filme começa, que está perigosamente embeiçado por Josy, uma putazinha traidora, interpretada por Jeanne Moreau em começo de carreira. Max tem medo daquela história que lhe cheira mal (os olhares que lança ao amigo) e dá-lhe como exemplo velhos senis.

"Até que Riton fala de mais e Josy ouve de mais. Até que Josy conta a Angelo (Lino Ventura), novo amante dela, que Riton e Max roubaram as barras de ouro. Numa inolvidável noite - o pão e o paté - Max diz a Riton que Josy lhe pôs os cornos e o traiu. É de espantar na idade deles? E, como um espelho, mostra-lhe ruga a ruga e papada a papada. Depois, diz a Riton que ele nem sonhe em vingar-se e que se afaste de Angelo. Despem-se, lavam os dentes (gestos simétricos, sequências paralelas) e deitam-se. Riton não consegue dormir."

Já Jacques Lourcelles escreveu que "numa história policial, o minucioso Becker põe em prática o mesmo descentramento de interesses - discretamente revolucionário - que Huston tinha posto em prática, três anos antes, em Asphalt Jungle. As personagens, os seus traços de carácter, as suas manias, os seus sentimentos e as relações que existem entre elas passam claramente a primeiro plano quando comparados à acção propriamente dita. Isto é ainda mais claro em Touchez pas au Grisbi que em Asphalt Jungle. A partir desta tomada de posição, a originalidade do filme é dupla. Em primeiro lugar, a acumulação dos apontamentos sobre os personagens aparece dentro de uma trama extremamente linear e contínua, e a este respeito quase hawksiana. (Touchez pas au grisbi é indubitavelmente o mais hawksiano dos filmes franceses). Nós seguimos Max (Gabin) durante uma noite, um dia e depois outra noite – decisiva – da sua vida. A personagem está presente em todas as cenas e a história, sem deixar de ser objectiva, sem flashbacks nem desvios, sem pitoresco nem artifícios, dá-lo a ver por inteiro nessas poucas horas da sua existência. Num momento da acção, o filme precisa de fazer referência ao passado para sublinhar quantas vezes Max já teve de ajudar o seu camarada corajoso e imprudente. Becker resolve a dificuldade recorrendo, com uma segurança tranquila, a um monólogo em voz off muito simples e muito eficaz (em Rue de l'Estrapade, ele já tinha feito a velha doméstica Paquerette monologar em «directo» e de forma muito saborosa). Outra originalidade, ligada à anterior: o retrato de Max (amigo fiel e às vezes cansado de o ser, Don Juan desiludido mas ainda verde, bandido fatigado que aspira ao descanso, etc.) é dado com um laconismo raríssimo no cinema francês da altura. Reserva, pudor, sobriedade e como que uma preguiça de grande senhor que não insiste em nada caracterizam não só o protagonista mas sobretudo o estilo de Becker. É inútil lembrar que o filme foi um triunfo, mas pode valer a pena notar que nessa altura Becker demonstrou que, mesmo em França, o grande público se podia mostrar sensível ao classicismo mais exigente e mais natural. Sem dúvida que também teve sorte porque outros além dele tentaram-no e espalharam-se ao comprido. Seja como for, Touchez pas au grisbi continua, hoje como na sua estreia, um dos melhores filmes policiais franceses e, muito simplesmente, talvez o melhor."

Até Sexta-Feira!

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