sábado, 21 de abril de 2018

91ª sessão: dia 24 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


Na véspera de feriado da próxima Terça-Feira, nas salas de cinema do Braga Shopping, entraremos no mundo tão encantado como desencantado de Jacques Demy, autor do filme em que se atraca numa cidade costeira onde toda a gente canta e seus males espanta, onde um café serve de plataforma para todos os encontros e desencontros, para o que há de fortuito e de trágico na nossa vida. As Donzelas de Rochefort é a nossa próxima sessão, na companhia de Demy, Catherine Deneuve, Françoise Dorléac, Michel Piccoli e Gene Kelly, movidos à música de Michel Legrand.

Em entrevista a Gérard Grugeau, para a revista 24 images, em 1989, Demy disse que "os meus filmes são muito diferentes das comédias musicais americanas. É mesmo uma questão  de cultura. Tive uma discussão com Gene Kelly na altura das  Donzelas de Rochefort. Gene ficou impressionado com Os Chapéus de Chuva de Cherbourg. «Nós nunca podíamos ter feito isso nos USA», disse-me ele. Foi o espírito francês  que seduziu os americanos neste filme. Nunca é preciso tentar imitar quem quer que seja. Temos que ser nós próprios. Tentar ser honesto e contar uma história dentro da nossa própria cultura. Eu, nos meus filmes, conto a história do meu país, o que se passa. Falo das pessoas  que lá moram, o que são, o que fazem. Veja-se a livraria em Trois places pour le 26. Eu disse a mim próprio: «Era divertido ter uma livraria gerida por duas mulheres». Na altura da repérage, entro nesta livraria que existe mesmo em Marselha e... eram duas mulheres que a geriam. Tinha ultrapassado a realidade. Fiquei estupefacto. «Que maravilha», disse a mim mesmo. Num universo que tem sempre um ar sofisticado e fabricado, eu tento permanecer verdadeiro. Seja a loja de guarda-chuvas em Cherbourg, o casino de La baie des anges ou a livraria do meu último filme, eu tento sempre apanhar o lado verdadeiro das coisas... O que é muito diferente nos «musicais» americanos dos anos 50."

Luís Miguel Oliveira, para o Público, escreveu que "Jacques Demy não é um nome tão consensual nem tão intocável como outros da sua geração, e que há uma certa dificuldade em encaixar, integrar, a confluência entre um cinema que é, pela prática, bastante moderno e bastante consciente do momento histórico em que é feito, mas que parece ter os olhos postos numa ideia de espectáculo mais popular, mais vetusta, menos sofisticada. Se há indícios disso em Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, a forma absolutamente "inteira" como Demy concebe as suas personagens e as suas tragédias pessoais disfarçam-no muito bem. Mas em As Donzelas de Rochefort essa procura duma "ingenuidade" quase kitsch está muito mais estampada. 

"Se o Inverno de Cherburgo estava carregado de pathos, o sol de Rochefort (outra cidade portuária, o cenário preferido do cineasta sempre à procura da Nantes da sua infância) é uma grande feira popular; se os papéis de parede de Cherburgo rimavam, ou contrapunham, os estados de alma das personagens, aqui é a cidade inteira (as cores das fachadas, das janelas) que faz rima (e quase nunca contraponto) com as indumentárias e a alegria das personagens; se as personagens de Cherburgo estavam, sem saber, a correr para um embate com o destino, as de Rochefort têm plena consciência do destino e absoluta confiança de que ele acabará por arranjar as coisas (como a personagem do muito louro e muito jovem Jacques Perrin, sempre com um optimismo de sorriso aberto que tem tanto de tocante como de ligeiramente enervante); e se as personagens de Cherburgo viviam como que manietadas dentro das canções (não havia danças, a coreografia era a inerente à mise en scène, e portanto "bailados" só em sentido figurado e muito slow motion) as de Rochefort libertam-se a todo o momento, em explosões de movimento "em dançado" que têm tudo a ver com a tradição do musical americano propriamente dito (e do musical americano chegam a Rochefort um símbolo maior, Gene Kelly, e uma starlet, George Chakiris, de fama breve por via do West Side Story). 

"É um filme de alegria, tanto quanto o de Cherburgo é um filme de tristeza – e talvez tenhamos mais dificuldades para lidar com a alegria nos filmes do que com a tristeza nos filmes. Em todo o caso, há ecos e premonições, ecos e premonições dentro do filme (como sempre em Demy e ainda para mais neste, espécie de "teoria geral do Destino segundo Jacques Demy"), ecos e premonições de outros filmes do realizador, então já feitos ou ainda por fazer – Michel Piccoli encerrado na sua loja de instrumentos musicais antecipa o mesmo, e muito mais trágico, Piccoli, encerrado na sua loja de televisores em Um Quarto na Cidade. Mas esse é outro filme, de facto, e bem distante – aqui, em Rochefort, é o tempo da alegria e o tempo de um destino que se acredita trabalhar a favor da felicidade. Com o filme de Cherburgo, fica uma espécie de díptico. Ou melhor, de 45 rotações. Ao espectador decidir o lado A e o lado B."

Em L'Exercice a été profitable, Monsieur, colectânea de textos inéditos publicada pela P.O.L., Serge Daney detém-se sobre Les Demoiselles, concluíndo que "a melancolia é instantânea como uma sombra. As coisas tornam-se melancólicas imediatamente, graças à música e à música do diálogo. É a boa disposição com que as personagens falham em tudo (além do essencial, talvez) que é terrível e comovente ao mesmo tempo. Não falhamos nas coisas por não as vermos mas por encontrarmos uma forma demasiado rápida de as esvaziar de todo o conteúdo, de circular à volta delas, de dançar. Darrieux descobre quem é o sádico e diz: "E ele a fazer-se de esquisito enquanto cortava o bolo!" 

"O essencial era o amor mas ele continuava a perder as suas cores. A beleza do 'último minuto', já neste filme, porque todos os finais felizes são voluntarismo puro. Mas depois (Peau d'âne, etc.), range cada vez mais. E o voluntarismo é precisamente o tema de Um Quarto na Cidade

"A força absoluta de Demy é referir tudo de volta a um ponto de vista perfeito: o da mãe. A mãe que nunca cresceu, que é frívola, que se esqueceu de deixar de ser uma rapariga. O mundo é ordenado a partir desta tarefa cega."

Até Terça!

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