por João Palhares
Quem foi Jacques Tourneur? Entre as muitas formas que existem para tentar responder a essa pergunta, a melhor, no caso do franco-americano, talvez seja mesmo dar-lhe a palavra. “Eu fui assistente primeiro,” disse ele a Patrick Brion e Jean-Louis Comolli[1], “depois montador. Percebi depressa que mesmo que se seja um bom assistente, temos poucas hipóteses de nos tornarmos realizadores. Aprendi então montagem em Berlim porque me queria absolutamente tornar cineasta, e é bem mais fácil passar de montador a realizador do que virar cineasta depois de se ter sido assistente. Sabem que um assistente muito bom não é necessariamente um bom cineasta e, vice-versa, um realizador não tem as qualidades de organização e precisão de um bom assistente. Um cineasta deve ser sempre um bocado um... inventor. Eu montei quatro ou cinco filmes, os maiores filmes do meu pai: Les Gaités de l’Escadron, As Duas Órfãs, Accusée... levez-vous! e mais uns quantos de cujos títulos me esqueci. Emile Natan, que nessa altura era o chefe, propôs-me então (com uma «cunha» do meu pai) o meu primeiro filme. Eis como comecei.”
O pai de Jacques Tourneur, nascido Jacques Thomas, era Maurice Tourneur, cineasta francês nascido em 1876 e que trabalhou também na Alemanha e nos Estados Unidos durante a era do cinema mudo, terminando a carreira de novo em França. Viveu quase noventa anos e tem perto de cem créditos em seu nome, tendo sido considerado por Clarence Brown, seu assistente de realização e montador em inúmeros filmes, tão importante para os cineastas americanos como D.W. Griffith. “O meu pai tinha uma particularidade que não estava muito disseminada na altura,” disse Tourneur a Bertrand Tavernier[2], “era apaixonado por todas as investigações científicas, médicas e filosóficas. A biblioteca dele era inacreditável. Ele seguia de forma muito minuciosa todas as descobertas da psicanálise. Foi em casa dele que eu descobri Freud, Jung, Adler ou Havelock Ellis. Eu nunca leio romances. Apenas ensaios, tratados científicos. É muito mais apaixonante.”
Foi graças a pessoas como Brion, Comolli e Tavernier, mas também Chris Wicking, Pierre Guinle, Simon Mizhari, Philippe Bernert, Charles Higham, Joel Greenberg, Joel E. Siegel, Eric Leguèbe, Jacques Manlay e Jean Ricaud, que hoje sabemos que Tourneur, para se proteger dos produtores e dos técnicos, cortava totalmente o som quando os actores deixavam de falar e se dirigiam para algum sítio abrindo uma porta ou subindo escadas, para haver silêncio completo nessas situações, que iluminava as cenas de forma muitíssimo cuidada e deliberada para permitir que os actores interpretassem sem distracções e quase intimamente, quase em segredo, induzidos pela luz baixa, levando-os às vezes para os locais mais sossegados dos estúdios para poderem ensaiar, que sonhou com um cinema sem estúdios, sem teatro, sem cenas, sem quarta-parede, planos gerais, planos médios “e essa porcaria toda”[3], que achava que os melhores filmes que tinha realizado eram I Walked with a Zombie, Stars in My Crown e O Arrependido, com menções ainda para A Pantera, A Noite do Demónio, O Facho e a Flecha, O Expresso de Berlim, Canyon Passage e Wichita, e que quis a dado momento que a Hammer lhe produzisse “o verdadeiro filme de terror”, que para ele nunca tinha sido feito, sobre a guerra entre os vivos e os mortos.
Este filme, nunca realizado por ele, fosse em Inglaterra, na França ou nos Estados Unidos, iria chamar-se “Whispers in a Distant Corridor”, e numa das fases de desenvolvimento contava com o magnata Howard Hughes, o terceiro homem mais rico do mundo, e um poeta galês chamado Richard Burton como personagens. Depois de contactar o M.I.T., a Duke University, o Cal Tech e outras universidades americanas e europeias, Hughes incumbia Burton de procurar uma casa assombrada na Escócia para lhe provar que os fantasmas não existiam. Com quatrocentos homens de batas brancas, equipados com computadores de última geração, aparelhos de infra-vermelhos, microscópios acústicos, geradores, gravadores e casas-de-banho portáteis, eles conseguiam finalmente contactar fantasmas e descobriam que esses fantasmas queriam ajudar a humanidade. Abriam também, no entanto, uma brecha e o mundo a três dimensões e de uma só realidade como o conhecemos era invadido por mundos paralelos e pelo “exército dos mortos”.
Jacques Tourneur acreditava no sobrenatural. Como acreditou Victor Hugo, depois de participar em sessões espíritas organizadas pela Madame Delphine de Girardin, durante o seu exílio na ilha de Guernsey, no Canal da Mancha. “There are more things in Heaven and Earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy,” responde o príncipe dinamarquês ao amigo na quinta cena do primeiro acto de Hamlet, de William Shakespeare, precisamente quando Horatio lhe diz que não acredita em fantasmas. Em A Noite do Demónio, Dana Andrews interpreta um psicólogo céptico e muito prático que é testado e contradito em todas as ocasiões durante a sua investigação e que só mesmo perto do final do filme é que se convence e se consegue livrar do pergaminho amaldiçoado e espoletar outro dos finais sintéticos e fabulosos de Tourneur, para juntar aos de Canyon Passage, Anne of the Indies, Encontro nas Honduras, Wichita, Os Fabricantes do Medo ou Timbuktu, e que só por si mereciam um grande estudo, tal como os de Alfred Hitchcock, Michelangelo Antonioni e John Carpenter. Quantas vezes ou por quanto tempo é que temos de olhar para um corredor até começar a vislumbrar o abismo, esse tal que se diz que nos olha de volta mesmo nos olhos? Dana Andrews, perdido nos seus pensamentos enquanto procura o seu quarto de hotel, imagina ou ouve mesmo uma canção antiga enigmática e fundadora, olha uma e várias vezes para os corredores e até nós pensamos ver sombras ou ouvir sussurros distantes. Pensamos numa epígrafe encontrada no livro fundamental de Chris Fujiwara sobre Tourneur, atribuída a René Descartes. “Não há indicações conclusivas de que a vida acordada possa ser distinguida do sono.” Faz-nos lembrar o mais poético e desesperado “Is all that we see or seem / but a dream within a dream,” de Edgar Allen Poe. As luzes apagam-se e ficamos sozinhos, a fitar as imagens que criámos para nos atormentarmos a nós próprios sob o doce encanto dos pesadelos e que não conseguimos deslindar: um puxão inesperado para dentro duma sala pequena e lotada. Carne solta, pele e músculos saídos. Um crânio a descoberto. Visões em relâmpagos e pouco nítidas que nos fitam quando avançamos num corredor enorme e desolado. E recuamos, sem querer saber se há lá alguma coisa ou não. Sim, “maybe it's better not to know.” E os fantasmas não existem.
[1] in «Cahiers du Cinéma» nº 181, Agosto de 1966.
[2] in «Positif» nº 132, Novembro de 1971.
[3] «Cahiers du Cinéma» nº 181.
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