quarta-feira, 16 de maio de 2018

Boy Meets Girl (1984) de Leos Carax



por João Palhares

Há uma raiva ensurdecedora e insuportável que atravessa Boy Meets Girl: a dos personagens, a de Alex e Mireille, uma vontade imensa de viver e amar, de largar tudo e “ser” para o outro, sem concessões. É vontade que fere, é vontade que mata, pulsão que vem de Ray, Murnau e doutros, pensando em influências, mas que acima de tudo, vem do próprio Carax. Repare-se como tudo se passa à noite e em como há tanto de belo e destrutivo, de primitivo, de como essas coisas andam de mãos dadas, em Carax. Tudo isto, colorido (pode parecer estranho, visto ser um filme a preto-e-branco) por um experimentalismo desbravado e corajoso. Jovem. A forma como Leos Carax dispõe os corpos de Alex e Mireille entre sombras e luzes até haver só luz, naquele plano longo, à mesa, e em toda essa sequência: um rapaz e uma rapariga, numa cozinha, o momento em que o boy meets the girl e em que conversam, noite adentro, horas a fio... 

Um rapaz conhece uma rapariga, tema e ponto de partida dos três primeiros filmes de Leos Carax, nada de original, nada de novo, não há um gimmick ou um qualquer truque narrativo que permita o realizador subestimar o espaço narrativo e o campo de emoções - de batalha - no filme (como fazem Lars von Trier e Gaspar Noé, constantemente). As novidades maiores no filme de Carax são a insistência e a obsessão pelos sons e imagens que o estado de espírito do par do filme permite, e que se convertem em devaneios fantasiosos e poéticos belíssimos. É procurar o que há de antológico no quotidiano e preferir o sonho à realidade. Os cenários artificiais e as ruas não vistas de Paris. A noite em vez do dia. Decisões práticas de trabalho que permitem construir um mundo alternativo e fantástico, quase com ambiência de filme de gênero, e não será por acaso que se possa pensar não só em Murnau, Borzage, Vidor (um preferido do francês) mas também em Berkeley e Fuller, ao mesmo tempo. 

O primeiro filme, como diz Pedro Costa - e Carax talvez concorde - é como pagar uma dívida. Ao que se gosta, ao que nos transforma e vocaciona, aos heróis de infância e de adolescência. Aos álbuns que se ouviu, aos filmes que se viu, às raparigas por quem se sonhou acordado, às partidas da vida, aos desenhos, às cartas, aos poemas e à Literatura. 

Mas voltemos à mesa e à cozinha, a Alex e Mireille, à caneca partida. Ao vinho. Aos corações e olhares despedaçados dos dois, à sinceridade cortante e demolidora daquela conversa nocturna. São a entrega e o amor louco os motores de tudo, e se Alex e Mireille são culpados de alguma coisa, é de sentir demais, de sentir tudo à flor da pele e não deixar nada dentro. De querer tudo, de querer, só, e a todo o momento. Amores e quereres incendiários, adolescentes e mortais. A culpa é da vontade, a culpa é da pulsão, uma pulsão de morte, de não querer estar só e por que haja corpos, corações, a ansiar por eles. É este o dínamo emocional que impulsiona o cinema de Leos Carax, mas que ainda assim, pouco explica do enigma Boy Meets Girl. Fabulosa primeira obra. 

texto publicado no quarto número da revista FOCO

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