quinta-feira, 24 de maio de 2018

97ª sessão: dia 25 de Maio (Sexta-Feira), às 21h30


Para Sexta, no estaleiro cultural da velha-a-branca, temos encontro marcado com François Truffaut, que com o seu texto Une certaine tendance du cinéma français fez catapultar a Nouvelle Vague sobre os destroços da velha ordem instituída pela tradição de qualidade. Com Disparem sobre o Pianista, a nossa próxima sessão, Truffaut adaptou David Goodis, filadelfiano de mil personalidades que nos deu dos mais belos livros sobre o fogo interior de todos os seres humanos, dentro ou fora do policial.

Num conjunto de citações reunidas pela Cinemateca Francesa, Truffaut admite que "o sucesso dos 400 Golpes foi uma surpresa total para mim. Estava livre como o vento e, portanto, escolhi a restrição para não ficar maluco. Coloquei-me na situação do cineasta ao qual impõem uma encomenda: um romance da Série noire, americano, a transpor para a França. Escolhi Disparem sobre o Pianista por admiração pelo autor desse romance, David Goodis, de quem os cinéfilos talvez conheçam Dark Passage, que no cinema se torna O Prisioneiro do Passado de Delmer Daves, e O Ladrão, adaptado por Paul Wendkos sob o título de Perfume e Violência. Como queria muito rodar um filme com Aznavour, depois de ter visto La Tête contre les murs, podia conciliar dois sonhos ao reunir Goodis e Aznavour. Além disso, Disparem sobre o Pianista deu-me a oportunidade de mostrar que tinha sido formado pelo cinema americano. 

"Com Disparem sobre o Pianista, tentei fazer um filme que não parecesse nem francês, nem americano. Isso começou com a escolha de Aznavour e dos seus irmãos arménios. Queria tentar fazer um filme que não se passasse em nenhum lugar preciso, num país imaginário. E Aznavour é o mesmo tipo de emigrante e artista. É inadequado socialmente. Aznavour é vulnerável sem ser uma vítima. A sua fragilidade permite ao público identificar-se com ele. Ao reler o livro, apercebi-me que não tinha sido escrupuloso de todo, exigindo o livro uma personagem mesmo muito forte, uma personagem corpulenta do género de Sterling Hayden. Isso entrava tudo em colapso por causa da escolha de Aznavour. Isto atormentou-me alguns dias até à maré virar. Foi por isso que chamei a Marie Dubois para o papel de Léna, porque disse a mim mesmo: vamos fazer o contrário, vamos pegar numa rapariga que vai ser mais forte, que o vai levar quase às costas, e depois num tipo que vai ser praticamente um trapo, e vamo-nos desembaraçar com isso."

No oitavo número da Présence du Cinéma, em que o editor da revista faz um mea culpa em relação à crítica do número anterior ao filme de Truffaut (onde é que isto ainda acontece?), pedindo a dois redactores que lhe fizessem justiça, Jean Wagner escreveu que "François Truffaut deve estar contente: Louis Chauvet não gostou de Disparem sobre o Pianista. É a prova mais evidente, se houvesse alguma dúvida, que o seu filme é bom. É a prova que é inteligente e que é novo*. Claro, é a prova menos estabelecida mas a mais imediata. Depois de Os quatrocentos Golpes, François Truffaut devia dar-nos pedaços de quatrocentos golpes, de crianças delinquentes queres, aqui tens, ou afinal, porque não, a continuação do seu primeiro filme. Truffaut fez muito melhor: fez uma obra autobriográfica em profundidade, uma obra muito mais pessoal por ser mais distanciada dos seus temas.

*Boris Vian, acho eu, disse essencialmente que o Figaro era rico o suficiente para insultar um imbecil por dia e uma pessoa inteligente por semana.

"A cobertura preta e amarela da N.R.F. é um álibi fácil: quem diz «série noire» diz «um romance qualquer...». Se os senhores sérios estudassem um bocado estas pequenas obras, teriam descoberto algumas pérolas: «O Pão da Mentira», «The Diamond Bikini», «L'excommunié», alguns McPartlands e as obras de David Goodis. Por mais estranho que possa parecer, Goodis tem um universo que lhe é próprio, universos de obsessões, de complexos, de repressões (frequentemente muito menos artificiais que em Tennessee Williams, por exemplo) e já que estamos no domínio da música, sobre ele não vou citar Erroll Garner ou Art Tatum, como Aznavour, mas um pianista que desapareceu, de quem pessoalmente gostava muito e que se chamava Tadd Dameron (falo aqui do tom das duas obras. Seria absurdo fazer uma comparação entre o valor dois dois homens.).

"Isto tudo para dizer que Disparem sobre o Pianista não é um romance qualquer da série noire. Não foi por acaso que Truffaut escolheu este em vez de qualquer um dos outros 500 (além disso, ele também é capaz de o imaginar: cf. o argumento de À bout de souffle). Foi por ter encontrado lá o material mais adequado para se exprimir. Não discorremos durante anos sobre a política dos autores nem examinamos séries B ao microscópio para ignorar que o tema não é o essencial. (Um homem como Dassin nunca foi tão grande como nos policiais de encomenda: pense-se no abismo que separa Night and the City do seu último filme.)

"Em suma, ele fez do livro de Goodis o seu conteúdo. Contou-se a si mesmo mas com a distância que personagens impostas lhe deram. Digo eu que esta distância nos faz conhecê-lo melhor que Os quatrocentos Golpes? A verdade sobre um ser não está em dois detalhes históricos ou realistas mas numa maior acuidade de olhar, numa profundidade mais completa. O facto de ter estado menos próximo do seu tema permitiu-o descrever-se de forma mais completa, mais profunda."

João Bénard da Costa, que foi dos que mais amou a obra de Truffaut, escreveu que "o azar que, ao longo dos 78 minutos que este filme dura, se abate sobre o protagonista, parece ter-se comunicado ao filme do pianista. Vindo após o grande êxito que coroara a primeira longa-metragem de Truffaut - Os quatrocentos Golpes - , e antes do sucesso idêntico a esse - Jules et Jim, de 1961 - o opus 2 de Truffaut esteve longe de despertar favores. O filme teve uma carreira discreta, como discreto foi o acolhimento feito pela crítica. Exemplo típico o caso português: Disparem sobre o Pianista foi ante-estreado duas vezes, com um intervalo de dez anos: em 1965 e em 1975, em Festivais. De nenhuma das vezes o distribuidor (que adquirira, titulara e legendara a cópia) passou da potência ao acto (ou seja, da ante-estreia à estreia) e este filme é a única longa-metragem de Truffaut inédita comercialmente entre nós (embora tantas vezes exibida em sessões especiais como esta e tantas vezes mostrada em reprodução televisiva). 

"O que pode ter contribuído para este relativo “desfavor” de um filme tão importante? Em primeiro lugar, ele veio contrariar a imagem que se formara do realizador após o “confessionalismo” de Os quatrocentos Golpes. Sem, de forma alguma, se pretender diminuir esse notável ponto de partida da carreira de Truffaut, pode-se dizer que essa era uma obra que se prestava a ser apreciada por maus motivos: a lágrima fácil que as histórias dos enfants sauvages sempre despertam, a inserção numa tradição do filme francês (em que se viu Vigo revisitado e domesticado), o citado “confessionalismo” (ou se se preferir autobiografismo), a novidade duma abordagem “à flor da pele”, etc. 

"Disparem sobre o Pianista, aparentemente, nada disto tinha. O argumento do filme era um romance policial americano e Truffaut transpôs o décor do livro (o bairro louche de Skid Row, em Filadélfia) para uma Paris só genericamente reconhecível, sem nada do ambiente típico que tanto se insinua na maior parte dos filmes franceses, inclusive nos da Nouvelle Vague (pense-se no quase contemporâneo À bout de souffle, de Godard)."

Até Sexta-Feira!

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