Não há necessidade de elogiar a obra que é Pixote, um filme que relata a vida num reformatório juvenil em São Paulo, centrado no protagonista de onze anos que lhe dá o título - o filme já possui todos os louros que merece, tendo sido abundantemente premiado e inclusivamente considerado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como um dos melhores 100 filmes brasileiros de todos os tempos. E, se na altura da sua estreia teve um impacto enorme, hoje, passadas quatro décadas, ver esta obra é uma experiência completamente diferente, mais deslocada da realidade atual e por isso talvez mais intensa, pois as qualidades realistas que na altura o tornaram um documento fiel da sociedade brasileira no final da ditadura militar são hoje o que fazem deste filme, para nossa sensibilidade atual, uma obra de tal brutalidade que pode até parecer romantizada: um testemunho de que a realidade é muitas vezes mais surpreendente e chocante do que é possível imaginar.
Apesar de Héctor Babenco ter comprado os direitos de adaptação do livro Infância dos Mortos, de José Louzeiro, o realizador admite que a matéria prima do filme, mais do que o livro, foram as duzentas horas de entrevistas conduzidas com crianças de reformatórios em São Paulo. Inicialmente pensado como documentário centrado na vida de crianças em reformatórios, a ideia foi rapidamente abandonada uma vez que filmar em tais instituições seria impossível: o reformatório que aceitasse tal exposição estaria a revelar os abusos sistemáticos que eram a prática comum.
Babenco teve então de recorrer a contar a realidade através da ficção. Fê-lo de forma objetiva e, portanto, brutal. Para tornar o filme o mais fiel possível à realidade, o realizador recrutou os atores das ruas de São Paulo, através de oficinas com centenas de crianças. Num desfecho irónico do destino, o ator protagonista Fernando Ramos da Silva, depois do sucesso do filme e de uma breve e falhada tentativa numa carreira de ator, voltou à vida das ruas e foi morto com 19 anos; segundo a sua esposa, pela polícia.
A história começa com o momento em que Pixote e os companheiros são apanhados das ruas de São Paulo, levados à esquadra e consequentemente confinados num reformatório. Aí assistimos ao quotidiano destes rapazes que jogam futebol, matrecos e se divertem de
formas relativamente inocentes. Há até uma banda. Mas vamos também sendo introduzidos, gradualmente, à realidade subjacente de abuso, corrupção e crueldade por parte da administração, cada vez mais presente e que leva os personagens ao ponto de ruptura quando um jovem inocente é espancado até à morte por se revoltar, e a culpa é impingida na amante transexual que o segura tragicamente entre os braços no momento da sua morte, consolando-o em vão. É nesse ponto que o desespero leva os rapazes a escapar do reformatório. A partir daí seguimos Pixote e o seu grupo, ou tribo, na luta pela sobrevivência nas ruas da cidade, vivendo a princípio de furtos, passando pela venda de droga e juntando-se por fim a uma prostituta num esquema de assaltos planeados, à medida que o grupo se desmorona, um a um, até que Pixote tem de seguir a sós, sem rumo e sem futuro.
Se despirmos o filme das fortes pressões que movem os personagens na sua luta pela sobrevivência e liberdade, esta é uma história sobre crianças que não tiveram direito a infância e sobre as relações de amizade, ternura, amor e sexualidade que surgem naturalmente, por efémeras que sejam, mesmo nas condições mais hostis.
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