Em 1985, houve um massacre de índios na Gleba Corumbiara, no estado brasileiro de Rondônia. Terá sido executado pelos fazendeiros locais, para evitar que as “suas” terras fossem demarcadas pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio) como área protegida. Os ataques terão sido tão bárbaros que ganharam o estatuto de mito e foram esquecidos. Os fazendeiros tentaram apagar as marcas dos crimes e negam sistematicamente que tenham ocorrido.
O indigenista Marcelo Santos, para evitar a continuidade dos crimes e punir os responsáveis, inicia uma expedição para encontrar sobreviventes e recolher vestígios dos massacres. As autoridades exigem prova visual para reconhecer a existência de indígenas e cabe ao realizador Vincent Carelli, que acompanha Marcelo, captar as imagens da expedição.
Ao longo de vinte anos, a equipa de Carelli regressa repetidamente a Corumbiara para reunir evidências dos crimes, encontrar/reencontrar os sobreviventes, protegê-los, evitar que os territórios por eles habitados sejam ocupados por fazendeiros e tentar entender o que aconteceu em 1985.
No entanto, tudo se vem a revelar muito mais complexo do que a ingenuidade com que partiram para o projecto permitiu entrever. Embora inicialmente o projecto fosse essencialmente político e humanitário, ao longo dos anos vai-se transformando num meta-projecto, na história das suas dificuldades e impossibilidades.
No início, surge a dificuldade de estabelecer contacto entre pessoas que se receiam mutuamente (os indígenas e a equipa de indigenistas) por não conhecerem as intenções uns dos outros e não terem uma linguagem comum. Depois, após o contacto, existem dificuldades de comunicação, dado que as línguas indígenas são desconhecidas. Ao longo dos anos, a equipa de Carelli debate-se com a oposição cerrada dos fazendeiros ao seu trabalho. Os fazendeiros, sempre que podem, negam o acesso aos territórios onde se suspeita que existem indígenas escondidos. Boicotam também o trabalho que a equipa consegue realizar, através de campanhas para desacreditar as provas da existência de tais indígenas recolhidas pela equipa.
Finalmente, são também problemáticas as dúvidas dos próprios “salvadores” sobre os métodos que utilizam nos “salvamentos”, particularmente quando o contacto é recusado por quem é suposto “ser salvo”. A equipa reflecte sobre a sua abordagem: será legítimo impor a sua presença a quem nitidamente não a deseja? Será legítimo filmar quem não quer ser filmado, mesmo com a melhor das intenções?
Duas décadas depois do massacre, é finalmente lançado um documentário sem conclusões definitivas. Não há história com princípio, meio e fim. O que se mostra é um puzzle com muitos buracos, seja por ser impossível encontrar algumas das peças, seja por que outras, ao longo dos anos, perderam a sua nitidez.
O filme, mais do que uma história de sucesso ou de metas alcançadas (descobrir e punir os culpados pelos crimes, por exemplo), é uma história sobre as lacunas da própria história, sobre a incapacidade de atingir os objectivos propostos e sobre as implicações éticas dos métodos utilizados. No entanto, essa aparente fragilidade é uma das grandes forças do filme, levando-o para territórios que ultrapassam o activismo em prol de uma causa específica.
É também um filme sobre o Brasil (teias de poder, pobreza e estratégias de sobrevivência, ocupação de território, indigenismo, ambientalismo e sustentabilidade, ...) e um filme sobre adversidade e a superação possível, sem mistificação. No fim, não há heróis, há homens que fizeram o melhor que sabiam e que cometeram erros, mesmo tendo as melhores intenções. E é aí que todos nos poderemos identificar. Sem incluir as histórias dos problemas, falhanços, crises e impasses, não haveria filme, não haveria história. Para além de outros pontos de contacto com Cabra Marcado Para Morrer (filme já exibido neste ciclo dedicado ao cinema brasileiro), esta estratégia de composição é talvez o que mais aproxima os dois filmes. Impossibilidades transformadas em possibilidades, fraquezas feitas forças, histórias que afinal são História.
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