sábado, 11 de setembro de 2021

202ª sessão: dia 14 de Setembro (Terça-Feira), às 21h00


Na segunda semana do nosso ciclo, somos conduzidos até ao Nordeste brasileiro pelas câmaras de Eduardo Coutinho, em busca de pistas sobre os destinos da viúva e dos filhos de João Pedro Teixeira, líder camponês assassinado pelas costas por latifundiários em 1962. Cabra Marcado para Morrer, interrompido nos anos 60 e retomado nos anos 80, é a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Em entrevista a Francisco Frochtengarten em 2009, Coutinho disse que "(...) o documentário nasceu com várias maldições. A palavra “documentário” é infeliz, a palavra “documento” é infeliz, a palavra “didático” é infeliz. Para muita gente, documentário é para ensinar, educar. Isso é uma tragédia. A National Geographic tem a sua função, mostra a vida dos peixes, a vida de Cleópatra. No que eu faço não tem nada disso. Eu não estou interessado no grande tema. O que é O fim e o princípio? É um filme para denunciar o latifúndio? O que eu encontrei foi um repositório de mitos, de sintaxes e de vocabulário que reflete um mundo patriarcal que acabou. 
 
"Perguntam muito por que eu só filmo os excluídos. Mas eu achei ótimo fazer um filme como o Master, sobre a classe média baixa. Eu tento desconsiderar o problema da classe ou da categoria à qual a pessoa pertence e fazer filmes que não sejam estereótipos. Então, se eu filmo em uma favela ou gente pobre no Nordeste, que são universos afastados do meu, não há o menor problema. Meu problema seria fazer um filme em um país do qual eu não falo a língua. Eu teria que fazer um filme tematizando o fato de que eu não sei a língua. Eu nunca fiz filmes com índios. Se um dia eu fizer – e vai ter um intérprete – eu vou tematizar a dificuldade de comunicação. Isso não tem nos filmes. Então eu acho que a diferença é um trunfo. Eu não faço um papel. Tenho um filme que chama Santa Marta, duas semanas no morro. É claramente um cara que vem de fora para fazer um filme. E o fato de declarar que é de fora faz, de certa forma, ficar de dentro. Um metalúrgico entrevistado por um metalúrgico dá coisas que eu não consigo, mas às vezes produz o mesmo do mesmo. Por isso é que sou contra o politicamente correto americano: só o gay pode filmar o gay, só o negro pode filmar o negro, só o anão pode filmar o anão. Sou pelo poder das minorias, mas jamais sem tratar do diferente. Meu sonho é que houvesse negros filmando o mundo dos brancos – aliás, filmando em geral já seria bom –, favelados filmando o mundo do asfalto e camponeses filmando cineastas. Eu não consigo fazer filmes sobre pessoas próximas a mim. 

"Numa relação de conversa há uma procura de uma igualdade utópica e provisória. Quando fui filmar o Cabra, um dos camponeses chamou: “Vamos tomar uma cachaça?”. Eu disse: “Não quero”. Seria o mesmo se o cara chamasse pra comer uma buchada. Eu não gosto de buchada."

Num texto escrito em 2013 para a Folha de S. Paulo, Eduardo Escorel, o montador do filme, escreveu que "entre as inúmeras decisões a serem tomadas na montagem de todo documentário, duas são cruciais – como começar e como terminar o filme. A primeira sequência sinaliza o rumo, e a última atesta se a trajetória percorrida chegou a bom termo. Jean Rouch dizia que “na montagem começamos pelo início, depois tentamos saber aonde vamos”. 
 
No caso do Cabra não foi diferente. Os dois planos iniciais se impuseram por si mesmos, estabelecendo de imediato que há uma projeção em preparo ao anoitecer, no terreiro de uma casa isolada entre morros, sem que seja identificado onde e quando isso ocorre. Ao protelar a identificação do local e da época dessa primeira cena, os preparativos para a projeção ganharam sentido genérico, abstrato, independente da situação real em que foram filmados. Conforme Jean-Claude Bernardet viria a definir mais tarde com absoluta precisão, “o espetáculo vai começar, e será ele que, até o final, guiará todo o trabalho de resgate da história”.

Já Jean-Claude Bernadet, em Vitória sobre a lata de lixo da História, escreveu que "nada mais distante do projeto de Eduardo Coutinho em Cabra Marcado para Morrer do que historiar os últimos vinte anos. Nada de enfileirar fatos no espeto da cronologia e amarrá-los entre si com os barbantinhos das causas e dos efeitos. Que filmes históricos, no Brasil, escaparam às ilusões do historicismo? Bem poucos, se tantos. Mas, com certeza, Cabra Marcado para Morrer.

"Que história nos propõe este filme? Talvez devido à idade - aproximadamente a mesma de Coutinho -, vejo um projeto histórico preocupado em lançar uma ponte entre o agora e o antes, para que o antes não fique sem futuro e que o agora não fique sem passado. Entre o antes e o agora, uma ruptura: 1964. Com a ruptura, o projeto ideológico e cultural anterior a 64 corre o risco de ficar "parado no ar", sem sentido, jogado na "lata de lixo da história"* Assim como o presente corre o risco de não ter sentido se não se enraizar numa anterioridade significativa. Cabra resgata os detritos de uma história rompida, de uma história derrotada. Mais do que isso: Cabra é o duplo resgate de uma dupla derrota. O primeiro Cabra, o de 64 e de que sobram apenas vestígios, já era o resgate de um fracasso: o assassinato de um líder das Ligas Camponesas, João Pedro. Dele vivo, não sobrou nem uma fotografia; o filme de então, sob a forma de um espectáculo, o fazia reviver e o fixava na história. O Cabra de hoje resgata o filme interrompido - e, dessa forma, também João Pedro - e resgata a viúva do líder e sua família."

* Alusões a peças de teatro de Gianfrancesco Guarnieri e Roberto Schwars.

Até Terça!

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