quarta-feira, 12 de abril de 2023

O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) de Glauber Rocha



por António Cruz Mendes

António das Mortes começou por se chamar O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. Este título, que se diz ter sido aquele que Glauber Rocha preferia, remete- nos para a lenda do combate entre S. Jorge e o Dragão. Sylén, uma cidade na Líbia, vivia sob a chantagem de um dragão que, sob a ameaça de a aniquilar, todos os anos exigia o sacrifício de uma donzela. A próxima vítima seria a própria filha do rei. Mas, S. Jorge resgata-a, enterrando a sua lança nas goelas do monstro, e desposa-a, trazendo-a com ele para a Inglaterra. 

O sentido alegórico da lenda é evidente. A própria iconografia da vitória de S. Jorge sobre o Dragão, consagrada por inúmeras pinturas, está presente no filme de Glauber Rocha na cena da morte do coronel, o “Dragão” personificado na figura de um homem cego ao sofrimento que provoca e à miséria que o rodeia. Corisco, o cangaceiro de Deus e o Diabo na Terra do Sol, já se identificava como um “S. Jorge”. E, em António das Mortes, um filme que se encontra na sequência daquele que vimos na passada semana, aquilo que está em causa continua a ser a revolta dos trabalhadores sem terra do sertão brasileiro contra a ganância dos “coronéis” que a exploravam como pastagens para a criação de gado. 
 
A associação da mitologia cristã à luta de classes não se esgota, aliás, nessa representação alegórica, mas encontra-se presente em todas as manifestações do grupo de “beatos” que resistem à opressão animados por uma confusa fé redentora. De resto, há sequências do filme que foram encenadas como se de rituais religiosos se tratassem. Veja-se, por exemplo, a cena do duelo entre António das Mortes e Coirana, presos por um lenço que os dois seguram com os dentes, empunhando as suas catanas e defrontando-se no meio de um semicírculo de beatos e cangaceiros, ao som de batuques e melopeias. 

A presença asfixiante da paisagem nordestina à qual o colorido vibrante do filme oferece um relevo particular, associado a uma revolta metafísica contra a pobreza, aos cânticos e danças extasiantes e às cenas de extrema violência a que assistimos (a sequência da denúncia da infidelidade de Laura e do assassinato de Mattos é particularmente impressiva) pode, por vezes, dar-nos uma impressão de excesso. No entanto, tudo isso é consentâneo com a dimensão quase operática do filme, onde a música assume um protagonismo evidente, comentando os acontecimentos e oferendo-nos um guião narrativo indispensável ao seu entendimento. Veja-se, como exemplo, o longo plano-sequência onde o coronel, transportado numa espécie de andor e seguido pelos seus jagunços, se dirige ao lugar onde se travará a luta final, enquanto se ouve uma canção que nos fala dos feitos do lendário Lampião. 

Os recursos convocados para nos contar a história de António das Mortes, “matador de cangaceiros” que, com a morte de Corisco julgava ter acabado com essa laia de bandidos, mas que acabou por seguir o caminho desses “ladrões de honestidade”, são os mais variados. Glauber Rocha fala-nos, por exemplo, da influência de Eisenstein. Penso que ela é particularmente evidente na montagem paralela das cenas patéticas do funeral de Mattos e da eufórica reunião dos beatos e cangaceiros. A elas, seguir-se- á, por um lado, a matança executada pelos jagunços do Mata-Vacas e, por, outro, a adesão de António das Mortes à causa da Dona Santa e dos miseráveis. Mas, a “síntese” daquela contradição, o duelo final que culmina com a morte de Mata-Vacas e do Coronel bem que podia ter sido filmado por Sam Peckinpah. 

No final, António das Mortes segue um caminho que não sabemos onde o conduzirá. A luta dos beatos há-de prosseguir, mas a dele é de outra ordem. Porque, se “negócio de pobre é com o senhor”, o dele “é só com Deus”.



Sem comentários:

Enviar um comentário