quarta-feira, 5 de abril de 2023

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) de Glauber Rocha



por João Palhares

Glauber Rocha nasceu e morreu algures, é certo. Cruzou, confundiu e desmistificou os hemisférios. Quis fazer o mesmo com o primeiro e o terceiro mundo, com a riqueza e a pobreza, com deus e o diabo, com a vida e com a morte. Será para sempre a presença nunca descansada, nunca satisfeita, nunca pacificada e maior que a vida que caiu de pára-quedas na revolução dos cravos e se pôs a espicaçar os populares e os militares com enérgicos “acriditá ná révulução?”, “Há quanto tempo você lútá?”, “O sénhô sofreu com á ditadura?”, “O quê achá dá situação atuau?” “Porque é qui não foram ao primeiro di Maio, porqui não estão ná Práça?” Pela mesma altura no congo, em cuba, no peru, em itália, na frança, no chile, em todas as revoluções e em todas as frentes, quem é que o alcança? Também foi ele que, em 1976, aterrou sem cerimónias e sem aviso no velório e no funeral do amigo Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo, com uma câmara na mão e como um poeta apaixonado que usa uma caneta, ou um pintor um pincel. Na curta Ninguém Assistiu ao Formidável Enterro de sua Quimera, Somente a Ingratidão, Essa Pantera, Foi Sua Companheira Inseparável. (1977), que foi o resultado dessas filmagens ainda infames para alguns, diz que aprendeu a filmar com Rossellini, que fazia o mesmo, fazia da câmara uma extensão do próprio corpo e da própria cabeça, dos neurónios criativos (“… fui destacado para entrevistar o Roberto Rossellini, e lá conheci o Di Cavalcanti que me apresentou o próprio Roberto, com a caméra de dezésseis milímitros, saindo pela rua na Bahia e filmando rapidamente lá um sarcófago e outros batuques das ruínas portuguesas barrocas da Bahia com uma rapidez impressionante. Nunca vi ninguém filmar tão rápido, aliás, ali eu saquei o que é que era realmente o negócio de “ideia na cabeça e caméra na mão”. Quer dizer, o Rossellini realmente fazia com a caméra de dezésseis o que Di Cavalcanti faria com um pincel.”), da parcela redentora do ser humano, aquilo que o pode projectar na eternidade. Mas entrou no velório, escrevemos, e fez daquilo um carnaval celebrando a vida e a obra do amigo Di Cavalcanti nem lhe faltando trazer o morto para a festa também (“Agora dá um close na cara dele… barba por fazer, calça Benim azul-marinho, casaco azul claro, camisa esporte quadriculada, sapatos marrons… o cineasta Glauber Rocha está parado ao lado do caixão de Di Cavalcanti no velório no museu de Arrrrr-ti Moderna.”). Realizou treze longas-metragens e seis curtas-metragens ao longo duns meros vinte anos, viveu quarenta e dois, escreveu certamente milhares de textos e foi uma personalidade fogosa, apaixonante, instigadora e imprescindível para as décadas de 60 e 70. 
 
Também foi ele, claro, que nos anos 60 decidiu partir para o sertão brasileiro com pouquíssimos meios para encenar uma alegoria política e religiosa fundadora, uma mitologia nova para o terceiro mundo. Plena de fúria e de sangue, como nos mitos que se conhecem da bíblia sagrada ao sagrado capital, chamou-lhe Deus e o Diabo na Terra do Sol e deu-lhe forma de western para se apropriar doutro mito, o do cinema. E assim dois fazendeiros incautos, um homem e uma mulher como no paraíso, encontram um deus negro e um diabo louro e são perseguidos por um carrasco de cangaceiros chamado António das Mortes. Pontuado por comentários escritos por Glauber Rocha e cantados à guitarra por Sérgio Ricardo, nos termos mais directos possíveis, o filme torna-se um grito primordial de revolta desde muito cedo. “Vou contar uma estória, na verdade é imaginação. Abra bem os seus olhos, para prestar bem atenção. É coisa de deus e diabo, lá nos confins do sertão.” À medida que avançamos assistimos aos pecados e aos sacrifícios que se cometem para tentar erigir uma ideia de civilização, a sociedade atrás de homens e mulheres que se tornam criminosos por não se contentarem nem terem de se contentar com o quinhão que lhes é alotado por meia dúzia de iluminados privilegiados. Deus e o diabo acabam por não parecer assim tão diferentes e os homens descobrem que têm de lutar por si próprios para transformar o sertão em mar e para o paraíso lhes ser devolvido. Como em qualquer epopeia ou mito, há algo de verdadeiro, de factual, e a acção situa-se na época de Corisco e Dadá, cangaceiros conhecidos por esses nomes mas que em tempos se chamaram Cristino Gomes da Silva Cleto e Sérgia Ribeiro da Silva. São personagens do filme e fizeram parte das fileiras do rei do cangaço, Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Lampião. Foram todos o pesadelo das autoridades brasileiras, entre as duas grandes guerras, mas para um povo fustigado e cansado representaram um sonho e a esperança de que algo mudasse nas suas vidas. Projectando as suas mordaças e as suas amarras nas que tentavam pôr nos cangaceiros, livres no sertão, seguiram as suas aventuras e torceram por eles como libertadores anunciados. Como quem percebe que as coisas não estão bem, ainda hoje, líderes mundiais sempre a gerir um equilíbrio talvez impossível entre a ordem e a liberdade, quando não é a mera subsistência, milhões de pessoas presas ao trabalho e ao dinheiro podem gritar com Corisco quando chega António das Mortes e lhe diz para se entregar: “Eu não me entrego, não. Não me entrego ao tenente, não me entrego ao capitão. Eu me entrego só na morte de parabelo na mão.” E a ambição de contar uma Odisseia ou uma Ilíada do século XX, realiza-se, não se sabe se os séculos não transformarão Manuel em Ulisses e Corisco em Aquiles, perdendo-se o filme e os seus negativos mas sustendo-se o mito. Dezenas de decanos e decanas perdidos no deserto em peregrinação num fim do mundo longínquo qualquer a debitar de memória emprestada os planos e os versos de Glauber Rocha, que viveu e morreu como um cangaceiro e deu novos mundos ao mundo. E nem na morte descansou ou nos deixa a nós descansar.



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