por Joaquim Simões
Terra em Transe é um flashback na hora da morte de Paulo Martins escritor e idealista de
uma ferocidade tal que a desilusão trágica é o único destino possível para ele. É assim que o
filme começa, na iminência de um golpe de estado, o falhanço espetacular do seu projeto, a
queda da única esperança política de Eldorado - cidade fictícia que Rocha criou como
símbolo da esperança, do sonho inalcançável. E Paulo atira-se a uma morte que podia
evitar, ignorando as palavras Brechtianas da companheira Sara, que lhe diz “não precisamos
de heróis”. Ele grita “eu preciso cantar” e atravessa uma barreira policial, sendo
inevitavelmente atingido. Na areia, moribundo, mas gracioso, aponta a metralhadora para o
céu; o seu último poema são as memórias que vemos em filme.
Desiludido primeiro pela tirania da direita e depois pela fraqueza da esquerda, Paulo
atravessa o espetro político sem encontrar nele um lugar, mas a sua alma poética é incapaz
de se resignar ou de viver cinicamente: é um homem que tem de ir até ao fim. Ao
acompanharmo-lo nessa viagem exaltada, por vezes febril, passamos por danças, tumultos e
rituais, uma mistura única de religião, política, pobreza e tropicalismo, o caldeirão
tumultuoso que era o Brasil na década de 60.
O privilégio da memória na montagem é a liberdade absoluta. E o filme flui como uma
associação livre que nos lembra dos sonhos de Fellini cortados com a brusquidão de Godard,
num violento frenesim sociopolítico em que singram apenas como idealistas os
temperamentos ferozes como o de Paulo Martins, talvez semelhante ao de Glauber Rocha.
Apesar desta fluidez, nunca ficamos muito tempo sem ouvir o som de disparos e explosões,
normalmente em off, que são um despertar constante para o artifício do filme e ao mesmo
tempo para a realidade angustiante que Eldorado, ou seja, o Brasil, atravessa.
Um filme marcante no seu tempo, e ainda hoje, Terra em Transe foi, como não é
surpreendente, censurado na altura do seu lançamento por “denegrir a imagem do Brasil” e
por ser considerado subversivo e irreverente com a igreja, acabando por ser exibido em
Cannes depois de protestos por parte de cineastas franceses e brasileiros, e no Brasil apenas
na condição de ser dado um nome ao personagem do padre representado por Jofre Soares.
Em Portugal manteve-se censurado até ao 25 de Abril. E hoje é apresentado no cineclube.
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