por Luís Miguel Oliveira
O Outro Lado da Esperança também é o outro lado de Le Havre, o filme anterior de Aki Kaurismäki. Recorde-se: Le Havre era o filme inicial de uma anunciada “trilogia portuária” (é assim que tradicionalmente Kaurismaki pensa a sua obra, em grupos de três filmes), e estando-se nessa altura em 2011 vinha já dominado por aquilo a que mediaticamente se chama a “crise dos refugiados”. O “Havre” de Kaurismäki era um ponto de passagem, um porto de abrigo temporário: tudo andava à volta de um miúdo africano que, “clandestinamente” é claro, precisava de atravessar a Mancha para ir ter com a família ao Reino Unido. Depois de 2011 aconteceram coisas que agudizaram essa “crise”, nomeadamente a guerra civil na Síria, e lançaram pela Europa fora a paranóia xenófoba. Kaurismäki, na sequência das manifestações finlandesas dessa paranóia (por exemplo o partido dos “verdadeiros finlandeses” ou lá como se chamava), chegou a declarar-se zangado com os seus compatriotas – e é difícil não concordar com ele sobretudo se pensarmos na geografia finlandesa, país de densidade populacional mínima com vastos segmentos de milhares de quilómetros quadrados onde só há renas, pinheiros e a ocasional sauna para madeireiros.
Portanto, e abreviando, depois da incursão francesa este é o filme de Kaurismäki para os seus compatriotas, e o porto é o porto lá de casa, o de Helsínquia. Não é um ponto de passagem, é um destino, o destino escolhido por Khaled (que nas primeiras imagens vemos a levantar-se das lamas e dos lodos, como o Martin Sheen do Apocalypse Now ou como uma criatura da lagoa negra), que atravessou meio continente desde a Síria, perdeu a irmã pelo caminho algures nos Balcãs (o resto da família morreu em casa, em plena refeição, atingida por um míssil não se sabe se disparado “pelo Assad, pelos rebeldes, pelos russos, pelos americanos ou pelo Daesh”), e achou Helsínquia um sítio simpático e acolhedor. E como não? A Helsínquia de Kaurismäki não é bem Helsínquia, de que ele aliás tinha pintado um retrato gélido em Luzes do Crepúsculo, o seu último filme finlandês; é uma versão de cinema, uma terra idealizada, um mundo onde praticamente toda a gente preservou um sentido fundamental de decência e solidariedade, onde a nobreza é uma questão de carácter, e onde por cada “skinhead” apostado em fazer mal ao herói Khaled se levantam quatro ou cinco em sua defesa (muito bonita, a cena em que os meliantes que atacam Khaled são corridos à pancada por um grupo de estropiados e sem-abrigo).
É aí que a história de Khaled se cruza com a história de Wikstrom, interpretado por um velho kaurismäkiano, Sakari Kuosmanen. Wikstrom é um homem à procura de uma vida nova – farto de vender camisas, farto da mulher (fabulosa sequência inicial aquela em que ele sai de casa,
numa série de planos rápidos e expressivos onde ninguém, nem ele nem a mulher, diz uma palavra, e percebemos tudo o que há a perceber sobre o casal), resolve juntar às economias os ganhos de uma noite no poker e comprar um restaurante. Será ele a acolher Khaled entre os seus empregados e, com a ajuda de um miúdo “hacker”, a garantir-lhe a documentação correcta depois de o pedido de asilo ser recusado. Porque também Kaurismaki podia ter como moral que “quando a lei não é justa a justiça passa antes da lei” (como se dizia no Filme Socialismo de JLG), e porque Wikstrom reconhece em Khaled um tipo de clandestinidade, ou de marginalidade, semelhante à sua: é um homem de outro tempo desencantado com os “tempos modernos”, o “retro” nos filmes de Kaurismäki não é uma questão de decoração mas antes a expressão de uma “filosofia” (e o restaurante serve para uma série de gags gourmet, oscilando entre o sushi, a comida indiana e o que quer que esteja na moda e sirva para os clientes irem aparecendo), e porque o carácter policial e metediço do “estado” ameaça um e outro da mesma maneira, como se vê na visita ao restaurante da espécie de ASAE lá do sítio. É sempre esse “o lado da esperança” em Kaurismäki, o lado dos que estão à margem, e por isso também não faltam os vários números de “rock” interpretados por velhos “rockers” finlandeses de rostos que hesitamos como descrever, se tristes se abençoados por uma espécie de felicidade “zen” que consiste no alheamento total, na absoluta marginalidade. Este é o humanismo de Kaurismäki, muito básico, muito idealista. E uma vez garantido, até pode brincar com os estereótipos da xenofobia e da islamofobia: “vamos lá beber uma cerveja ou lá que raio bebem estes infiéis”, diz a certa altura Khaled ao seu amigo iraquiano.
in «Tempos Modernos», Ípsilon, 26 de Outubro de 2017.
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