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quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Pai Natal (2010) de José Oliveira



por Alexandra Barros

Por onde começar a falar do José Oliveira? Pela primeira sessão do Lucky Star, cineclube que fundou com João Palhares, em Braga, em Janeiro de 2016. Nesse dia, pensei que nascia ali qualquer coisa excepcional. E não só porque a abertura oficial consistia numa sessão dupla preparada e apresentada pelo realizador Pedro Costa (O Nosso Homem de Pedro Costa + Monsieur Verdoux de Charles Chaplin). Comecei a guardar as maravilhosas folhas de sala do José Oliveira e do João Palhares como preciosidades. Ensinaram-me (e continuam a ensinar) a ver em cada filme mais cinema do que aquele que eu era capaz de ver. Mas mais do que isso, ao falar dos filmes falam para lá dos filmes, falam de todos os sítios onde os filmes os levam, entrelaçam as suas paixões, revoltas, dores, alegrias, amizades, dificuldades, dias e noites, sem nunca ficarem neutros e sem nunca se preocuparem com poses, modas e tendências. 
 
O José diz gostar do escuro, no autobiográfico Pai Natal, mas o cineclube que fundou tem uma estrela no nome e é totalmente sobre preservar a LUZ. 
 
“[...] o cinema que mais me disse foi o de John Ford ou o de King Vidor, nunca baixar os braços, dar tudo, e meter certas coisas no devido lugar de onde jamais deviam ter saído. Mesmo que a violência seja necessária, em correspondência com o amor desmedido. É seguindo essa demanda e essa cepa que os filmes se podem por milésimos de segundo aproximar da incomparável e selvática aventura da vida.” em Conversa com José Oliveira por Manuel Pinto Barros (Jornal dos Encontros Cinematográficos 2016) 

Em Pai Natal, José vai a Lisboa para ir buscar livros, ver filmes e vaguear, mas sente-se perdido porque não consegue deixar de andar sempre pelos mesmos sítios. Em Sem Abrigo também anda perdido, mas talvez essa desorientação seja afinal a forma de chegar ao que mais importa. Quando se encontra com uma outra perdição, as palavras que não são ditas, ou pelo menos não ouvidas, poderiam ser talvez: “que estranho caminho tive que percorrer para chegar até ti”[2]. Ir e Vir, cruza-se com idênticas inquietações às de Pai Natal e de Sem Abrigo, numa canção cantada e tocada por José Lopes, no filme A Pena Perdida (também de José Oliveira). Deste seu grande amigo e mestre, diz: 
 
“Conheci o Zé Lopes em 2010. No centro do centro da cidade de Lisboa. Juntamente com os meus melhores amigos, ficámos mais de uma hora na conversa. Tudo parou e a brutal movimentação do Rossio suspendeu-se. Senti uma violência tal, uma fúria e uma ternura que só conhecia das pessoas simples e complexas da minha aldeia minhota. Trabalhadores do campo e criaturas perdidas da noite que te tratam como igual. Depois, passei horas e horas e anos com ele. Frente a frente num banco do jardim ou a quatrocentos quilómetros de distância. Quase sempre a escutar, os seus medos e as suas raivas, as suas certezas e a sua inexorável liberdade. A sua companhia continua para mim vital e indecifrável, fonte de todas as dádivas e segredos. Se pudesse fazer mais um filme, ou muitos, à maneira da Hollywood clássica ou das fábricas genuínas, gostaria que fossem todos com ele. Assim, em Lisboa ou em Braga, como no Mississipi ou em Monument Valley. Naturalmente, sem contratos, nem princípio, nem fim. O que gostava mesmo era de fazer filmes que fossem entendidos aqui e na China, por uma criancinha ou por um velho sabido.” em Conversa com José Oliveira por Manuel Pinto Barros (Jornal dos Encontros Cinematográficos 2016) 
 
Ir, vir, talvez não voltar, chegar, partir, retornar, errar, vadiar, flanar, deambular, procurar, encontrar, recomeçar. “Estamos sempre de chegada, estamos sempre de partida. Donde a eternidade ou a perfeição sempre almejada pode estar no mais efémero momento. [...] Do mais frágil e intenso dos realizadores que o cinema já conheceu, Nicholas Ray, surge essa busca, talvez perpétua, pelo centro, pelo pleno, pela casa, pela comunidade. Não sei se Ray lá chegou, [...] mas acredito que seja a mais importante das lutas.” em Conversa com José Oliveira por Manuel Pinto Barros (Jornal dos Encontros Cinematográficos 2016) 

Escolhi esta conversa para a folha de sala, mas poderia ter escolhido qualquer entrevista ou qualquer um dos textos do José encontrados em diversas publicações (Ípsilon, À Pala de Walsh, Raging-b, ...) ou no livro Uma Viagem Pelo Cinema Americano (co-escrito com João Palhares). Os seus filmes, os seus heróis, a escrita, o pensamento e a vida estão amalgamados. Como num fractal, olhar para uma parte é olhar para o todo. A conversa termina com uma citação de Nicholas Ray, um dos heróis do José: “Take care of each other. It’s your only chance of survival. All the rest is vanity.” Remain In Light[3], acrescento, citando heróis dos meus.

[1] Nessa cena lembrei-me do prelúdio da canção “Carne Eléctrica”, dos Um Zero Amarelo: “Como é que ocupas o teu tempo? / A dormir e a passear. / A passear por onde? / Por todos os sítios. Os sítios que eu não conheço.” Falo disto porque sim e porque ofereci Um Zero Amarelo, dos Um Zero Amarelo ao Pedro Costa quando esteve pela primeira vez em Braga, para a “abertura oficial” do Lucky Star e porque não perco uma oportunidade de falar deste maravilhoso e subestimado disco.
[2] Pickpocket, de Robert Bresson, 1959.
[3] Álbum dos Talking Heads, Sire Records, 1980.



sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Água (2010) de Eva Ângelo



por Alexandra Barros

Água é um documentário sobre a montagem do espectáculo coreográfico e musical Vale, de Madalena Victorino, com música de Carlos Bica. O projecto Vale foi inspirado pela região do Vale do Tejo e envolveu catorze intérpretes, vindos da dança, do teatro e da música, e quarenta pessoas de comunidades locais, com diversas idades e modos de vida. 

Além de acompanhar os ensaios dentro de portas, Eva Ângelo filmou os encontros dos artistas com trabalhadores de - e em - diversos espaços emblemáticos do Vale: uma coudelaria, campos de pastagem de gado, uma praça de touros, um olival, ... A coreografia do bailado alimenta-se destes encontros: das conversas, dos ensinamentos recebidos de mestres locais, das observações, dos gestos apre(e)ndidos participando nas actividades que nesses lugares decorrem. 
 
Durante os ensaios, Eva Ângelo captou as orientações e as interpretações, os movimentos e as expressões, as dificuldades e as sintonias, os risos e as tensões, as brincadeiras e as irritações, as cumplicidades. Tudo isso nos entrega e dá a ver, ora de forma demorada e com pinceladas precisas ora de forma fugidia, subtil, evitando o voyeurismo, o drama e a afectação. 
 
Madalena Victorino, trajada com vestidos estampados com fabulosas cores e padrões, voz doce e tom sereno, exerce uma liderança forte e assertiva. Dirige os trabalhos, dando indicações aos bailarinos como: “avançam como senhoras, não como pata chocas”; “respiramos para dentro do fundo da Terra”; “não sorri, os cavalos não sorriem”. Ela faz da dança um ponto de encontro entre movimento e emoção, e é esse entrelaçamento que Eva Ângelo tão bem traz para o filme. Visualmente o filme é lindíssimo, mas encantador é o lugar comum da criação e esforço conjunto, do entusiasmo, empenho e gozo no trabalho de grupo. 

Madalena explica aos participantes que ”este trabalho é um trabalho sobre estarmos uns com os outros, mas é também um trabalho sobre estarmos connosco”. A dança é, possivelmente, sempre um trabalho sobre estarmos connosco, pois “ensina-nos a aceitar os nossos erros, porque fazemos tantos que a única possibilidade de progresso é a aceitação”[1]. 

O espectáculo fecha com imagens de uma mó a rodar, uma metáfora do círculo, símbolo de movimento, expansão, tempo, perfeição, eternidade. Mas neste círculo há um buraco no meio, em representação “do abismo, do desconhecido, do futuro”[2]. Sabe-se hoje que muitas galáxias têm um buraco negro no seu centro, como se a luz só pudesse existir acompanhada dessa escuridão que tudo tenta devorar. Matéria e antimatéria, cargas positivas e negativas, atração e repulsão. As dualidades estão entretecidas no mundo microscópico, em nós, no espaço cósmico. Serão essas forças opostas, afinal, os mais prevalecentes LUGARES COMUNS?

[1] Ian Crewe, professor de dança.
[2] Madalena Victorino.



quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Cave of Forgotten Dreams (2010) de Werner Herzog



por João Palhares

Werner Herzog interessou-se pela caverna de Chauvet através de um artigo de Judith Thurman, «First Impressions», escrito para a New Yorker em 2008. Esse grupo de túneis e grutas no sul de França deve o seu nome a Jean-Marie Chauvet, um dos três espeleologistas que o descobriram em Dezembro de 1994. No seu interior estão as pinturas rupestres mais antigas do mundo que, graças a um deslizamento de terra que vedou a entrada principal, se mantêm num estado de conservação pouquíssimo habitual para o que é esperado para este tipo de achados arqueológicos. Herzog teve acesso limitado ao local (quatro horas por dia, durante seis dias) e, apesar de não o irmos ver dessa forma, decidiu filmar o documentário em 3-D. “O 3-D era imperativo,” disse ele à revista Archaeology, “porque eu ao início pensava que havia paredes e pinturas planas na caverna. Mas não havia áreas planas. O drama dos arqueamentos e das cavidades foi mesmo utilizado pelos artistas. Fizeram-no com uma habilidade fenomenal, com grande habilidade artística, e havia algo de expressivo nisso, um drama de rocha transformado e utilizado no drama das pinturas. É por isso que era imperativo filmar em 3-D.” 
 
Com esse tempo e essa decisão tomada, além de questões de acesso e limitações de movimento explicadas no próprio documentário, muito do material de filmagem teve que ser improvisado no sítio. “Levamos connosco o equipamento espelhado tosco fornecido pela British Technical Films,” escreveu o director de fotografia Peter Zeitlinger[1]. “Tinha sido utilizado antes em vários anúncios em condições de estúdio. Depois de apenas alguns metros no interior da gruta decidimos deixá-lo para trás, porque não era possível encaixá-lo pelo túnel estreito. 
 
“Uma vez que só tínhamos umas horas para rodar o filme todo tivemos que rodar fosse como fosse. O Werner disse, "Pega em fita adesiva e cola ou qualquer coisa do género. Põe as câmaras lado a lado e vamos a isso.” “Consegui construir uma macro-extensão com um rolo de papel higiénico numa tenda no Antárctico para filmar dentro de um microscópio científico,” respondi eu, “mas devíamos voltar e tentar no dia que vem.” 
 
“Passado um momento, o Werner passou-me dois suportes de braços mágicos para a câmara. "Não consegues usar isto?" Arranquei as câmaras do equipamento espelhado e fixei-as lado a lado nos braços mágicos. 10 minutos depois começámos a rodar as pinturas secretas da caverna. Filmei da anca sem visor. Passámos por cima do alinhamento complicado das câmaras 3-D e resolvemos o assunto à noite em Cineform (Software).” 
 
É possível que o 3-D acrescente muito a esta Gruta dos Sonhos Perdidos, até porque foi assumidamente a única e última vez que o realizador de Aguirre e Fitzcarraldo rodou nesse formato, para mostrar ao mundo uma caverna totalmente inacessível ao público em geral e para respeitar os traços de movimento pensados pelos nossos antepassados mais remotos, os jogos entre superfícies e protuberâncias, as camadas sobrepostas de pintura ou as sombras primordiais que nos levam a Fred Astaire mas também a Platão, só que a beleza e o deslumbramento também passam na versão mais reproduzida que vamos ver. Não é nada comum ver um filme dos nossos tempos que nos garanta que ainda não sabemos tudo, que há um mundo a ser desbravado e que precisa de pessoas para o desbravar, que nos traga de volta a aventura, a descoberta e o maravilhamento, e que proponha timidamente que a meta e o fim da estrada estão no princípio de todas as coisas. Ou que para sair da caverna talvez tenhamos que lá entrar.

[1] in «3D in the 21st Century. On Shooting Cave of Forgotten Dreams», 2 de Maio de 2015, Notebook, MUBI.

terça-feira, 8 de junho de 2021

Ok-hui-ui yeonghwa (2010) de Hong Sang-soo



por António Cruz Mendes

“A vida é feita de pequenos nadas”, diz a canção. E, embora os seus “pequenos nadas” não sejam exactamente aqueles a que Sérgio Godinho se refere, o mesmo se poderia dizer dos filmes de Hong Sang-soo. Num festival de Cannes, inquirido por jornalistas sobre neles se beber muito e de muitas das suas personagens serem realizadores, respondeu dizendo que “só falo do que sei”. Ou seja, de álcool e de cinema. De facto, não é bem assim. É verdade que nos seus filmes se come e bebe muito, mas as suas personagens, sobretudo, conversam e procuram conhecer-se e relacionar-se. Procuram um amor que desejam eterno, mas que se revela fugitivo, provavelmente inalcançável. Hong Sang-soo parece contar-nos sempre a mesma história. Com pequenas, subtis diferenças, situações e personagens repetem-se de filme para filme. O conjunto da sua obra obedece ao modo musical do “tema e variações”. 

Trata-se de um realizador prolífico. Entre 1996 e 2021, realizou vinte e cinco longas-metragens e três curtas. São filmes de baixo orçamento, escritos, realizados e, na sua maioria, produzidos por si. Idealmente, o último deveria financiar a próximo. O seu ponto de partida é um esboço sumário do argumento, os diálogos são muitas vezes escritos pouco antes das filmagens e estas admitem facilmente o improviso. O resultado final são filmes enxutos, algo palavrosos – e muito bonitos. 

O Filme de Oki, é um filme sobre a vida e os amores de uma jovem estudante que faz um filme sobre a vida e os amores de uma jovem como ela. Mas, isso só nos é revelado no quarto e último episódio – que se chama também “O filme de Oki”. Nele, a protagonista, em voz off, conta-nos a sua história. Hesita entre o amor de um “homem velho”, um professor de cinema, e o amor de um “homem novo”, um estudante como ela. Entretanto, vai alimentando uma relação com os dois. Na verdade, já conhecíamos dos episódios anteriores as figuras que encarnam estas três personagens, Oki, Jongu e Song. 

O primeiro episódio, “Um dia de encantamento” serve-nos de introdução. O protagonista é Jingu, jovem realizador e professor assistente numa escola de cinema. Inseguro, mas tentando esconder a sua fragilidade sob uma aparente arrogância, interroga-se sobre a fidelidade da sua mulher, sobre a honestidade do seu antigo tutor, sobre a valia do seu trabalho. 

Na sala semi-deserta onde apresenta a sua última obra, uma curta-metragem, a moderadora questiona-o: “O seu filme tem muitas histórias. Que mensagem quis transmitir?” A resposta de Jingu poderia ter sido dada por Hong Sang-soo: “Eu só fiz o filme, não tinha nenhum tema em mente. O meu cinema é similar ao processo de conhecer pessoas, mas é menos complicado do que as pessoas. Conhecemos alguém e ficamos com uma impressão, fazendo um juízo baseado nessa impressão. Mas, no dia seguinte, voltando a ver essa pessoa, não poderá dar-se o caso de notarmos outros aspectos distintos e ajuizarmos a partir deles?”. 
 
A única pergunta que se segue é a de uma aluna que o acusa de ser responsável pelas consequências desastrosas de uma aventura amorosa. Na sua opinião, a questão é pertinente porque o filme de Jingu é apenas e só sobre a sua pessoa. 

No segundo episódio, “O rei dos beijos”, voltamos a encontrar Jingu, ainda estudante, e ficamos a saber da sua paixão por Oki, uma colega, possivelmente, amante do professor Song. 

No terceiro episódio, “Depois da tempestade de neve”, encontramos Song que, perante uma sala vazia – todos os alunos faltaram à sua aula, humilhado, reflete sobre a hipótese de se demitir. Mais tarde, chegam Oki e Jingu que lhe colocam uma série de perguntas incómodas às quais apenas consegue responder com evasivas. Sabemos que Hong Sang-soo foi professor nessa mesma escola. Até que ponto não será Song um seu alter-ego? 

No cinema de Hong Sang-soo, a arte e a vida enredam-se num novelo difícil de desembaraçar. Afinal, não será o cinema apenas uma forma de, com “pompa e circunstância”, nos dar a ver, amplificados, os pequenos e grandes dramas da nossa existência? Só por um exercício de auto-ironia se compreende que cada um dos quatro episódios de O Filme de Oki, sejam anunciados pelos acordes da Marcha de Elgar.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Wolfram, a Saliva do Lobo (2010) de Joana Torgal e Rodolfo Pimenta



por João Palhares

1
 
Entre os anos de 2008 e 2009, Joana Torgal e Rodolfo Pimenta receberam um apoio da Fundação Minas da Panasqueira para gravar um banco de sons dessas famosíssimas explorações mineiras situadas entre o Fundão e a Covilhã, na região da Beira Interior. Mais de doze mil quilómetros de túneis e subterrâneos foçados pela mão humana, até aos trezentos metros de profundidade, fundados alguns anos depois de um carvoeiro ter descoberto uma pedra negra e brilhante no século XIX e se terem suscitado os interesses e as explorações de variadas companhias, nacionais e estrangeiras, com os picos de actividade e procura situados pela altura da Segunda Guerra Mundial, estando hoje tudo nas mãos da Almonty Industries do Canadá. Torgal e Pimenta confessaram ter lá estado bastante tempo, viveram entre os mineiros, assistiram aos processos de extracção, transporte, filtragem automática, filtragem manual, moagem automática, moagem manual, embalagem automática, embalagem manual, mistura química e transformação dos cristais de volframite durante meses sem sequer ligar uma câmara, ficando apenas de ouvidos bem atentos e olhos bem abertos. Terão tirado as suas notas, percebido todo o processo, assistido às rotinas diárias de homens e mulheres do raiar da aurora ao cair da noite, provavelmente entrevistado essas pessoas, apanhado chuva, neve e bastante sol, entre os picos dos dois solstícios que são tão pronunciados e extremados nessa zona do país. “Sempre fomos forçados a desenvolver projectos com poucos meios,” disseram ainda os realizadores a Mário Fernandes, em 2013, “de outra forma estaríamos em casa sentados à espera do subsídio. É claro que o apoio de amigos e familiares foi fundamental para a nossa permanência nas Minas da Panasqueira e para eles vai o nosso eterno agradecimento.” 
 
2 
 
Já com a câmara, parecem esquecer esse trabalho todo (“parecem,” porque a rodagem foi preparada de forma minuciosa, envolveu invenção de equipamento e talvez faça falta uma entrevista ou um artigo de fundo sobre o processo de Joana Torgal e Rodolfo Pimenta, que vêm do cinema de animação e são criadores muitíssimo pacientes) e deixam-se levar pela estranheza e pela intensidade mágicas do processo até às últimas consequências. E em vez de prepararem um documentário didáctico cheio de diagramas, legendas, documentos, testemunhos e vozes off explicativas preferem jogar com as poucas luzes humanas e a escuridão tenebrosa das minas (há momentos no filme em que se não nos soubéssemos na mais pura e dura das realidades, nos acharíamos num filme de terror ou de ficção científica), põem a câmara perigosamente perto e primorosamente longe, em planos que se parecem com os quadros mais negros e desesperados do pintor britânico John Martin (sendo outros sem parentesco traçável), atiram-na para cima de transportadoras e deixam-na vibrar violentamente com mecanismos enormes e esmagadores enquanto filmam, forçam ao máximo o reconhecimento visual dos movimentos rapidíssimos das engrenagens, enchem-na de terra e de água tornando-a também parte dos elementos. “Ao filmar-se certos planos não se sente medo,” dizem no entanto os realizadores na mesma entrevista, “mas antes respeito e alguma adrenalina. Tal como filmares em cima dos vagões, com o tecto a meio palmo da testa, ou confinados num buraco onde só cabíamos nós e uma pá escavadora para recolher os escombros, ou ainda, quando te encontravas em cruzamentos sonoros de máquinas escavadoras a aproximarem-se na escuridão. Tanto a mina como a lavaria são lugares labirínticos onde nos podemos “perder ou encontrar”.” 
 
3 
 
Finda a aventura, então, estes choques encadeados de sons e de imagens. Entre as embalagens metódicas do pó trabalhado antes de ser enviado para os laboratórios, que marcam um abrir e fechar de ciclo. A partir de certa altura, quando os mineiros já estão lá dentro e as máquinas carburam e sugam, furam e ardem, arrastam e rebentam, acontece um milagre. Enquanto a matéria mineral se transforma, também os planos se sucedem numa reinvenção constante, alcançando por vezes a abstracção pura e criando a sua própria música, ritmos constantes, hipnóticos e alucinatórios que alimentam as máquinas e que, como em Vertov, não dependem das outras artes para descrever ou deixar em testamento o seu século, os seus vultos e os seus heróis. Um fio amarelo e vermelho a rasgar a escuridão, um camião a atravessar o céu azul e a despejar uma nuvem negra pela encosta clara e frágil de um monte, um buraco iluminado com um homem em silhueta e como arquétipo a dominar um engenho mecânico e o seu meio, representado num enquadramento e num claro-escuro sintéticos. As metáforas são infindáveis, dos homens como autómatos, presas do trabalho e do complexo militar e industrial responsável pelos massacres do nosso mundo à figura reversa ascética e resiliente que pode significar a justiça derradeira e o alívio de todas as penas: continuam cá, como colossos a oscilar ao vento sem nunca tombar. 1895-2010, a história das indústrias mineiras e cinematográficas em cinquenta e cinco minutos sem diálogos, peripécias narrativas ou sopas do audio-visual. Para lá e para cá do tempo, para lá e para cá do espaço, a garantir-nos como D. Quixote, Al Jolson ou Alain Resnais e através das décadas e dos séculos que por mais que tenhamos visto, “ainda não vimos nada”. Bem hajam, Joana e Rodolfo.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Tobis Portuguesa (2010) de Pedro Efe e Manuel Mozos



pelo Núcleo de Toponímia do Departamento de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa

Tobis, a fábrica do cinema português, numa Rua do Lumiar

A Tobis Portuguesa, desde 1932 instalada no Lumiar, na Quinta das Conchas, também passou a ser um topónimo dessa freguesia da cidade, desde a publicação do Edital municipal de 6 de janeiro de 1993. 

O arruamento onde tinha sede a Tobis Portuguesa, a Praça J da Urbanização da Tobis Portuguesa, passou em 1985 a ter topónimo: Praça Bernardino Machado. Oito depois anos depois foi atribuída a Rua da Tobis Portuguesa, no arruamento que antes era identificado como Rua A à Rua Luís Pastor de Macedo. 

No século XX, a zona da Quinta das Conchas foi a mais utilizada pela então nascente indústria cinematográfica portuguesa. Em 1920 foi nela fundada a Caldevilla Film, que produziu por exemplo, Os Faroleiros (1922) e As Pupilas do Senhor Reitor (1924), ambos de Maurice Mariaud. Doze anos mais tarde, em 1932, a Tobis Portuguesa adquiriu parte da Quinta das Conchas para aí edificar os seus estúdios. Esta companhia cinematográfica nasceu em 3 de junho de 1932, com sede no n.º 141 da Avenida de Liberdade e estúdios em construção na Quinta das Conchas. 

Tobis é acrónimo de Ton-Bild Syndikat (Sindicato do Som e Imagem) e a fábrica do cinema português tinha como nome completo Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros Tobis Klangfilm. Foi criada para gerar e apoiar cinema nacional, bem como para garantir uma uniformidade de processos com a Europa, ao nível do som e da imagem, e assim também combater o poderio norte-americano na indústria cinematográfica. A empresa contou com um capital inicial de 1 milhão de escudos, dividido em 20.000 ações de cinquenta escudos cada uma, tendo sido inteiramente subscrito.

Nas suas instalações da Quinta das Conchas foi criado o 1º estúdio de cinema sonoro em Portugal e produzidos alguns dos mais emblemáticos filmes portugueses das décadas de 30, 40 e 50 do século XX, com inesquecíveis atores como António Silva, Vasco Santana, Ribeirinho ou Beatriz Costa, sendo de salientar, por ordem cronológica, os seguintes filmes produzidos pela Tobis cujos direitos são propriedade sua (o chamado Catálogo Tobis): A Canção de Lisboa (1933) de Cottinelli Telmo; As Pupilas do Senhor Reitor (1935), Varanda dos Rouxinóis (1939) e Ala-Arriba (1942), de Leitão de Barros; João Ratão (1940) de Jorge Brum do Canto; O Costa do Castelo (1943), A Menina da Rádio (1944), O Leão da Estrela (1945) e O Grande Elias (1950), todos de Artur Duarte, assim como Benilde ou a Virgem-Mãe (1970) de Manoel de Oliveira. O último filme produzido pela Tobis foi A Crónica dos Bons Malandros (1984), realizado por Fernando Lopes. 

O conjunto de instalações da Tobis seguiram o traçado ao Arqtº Jacinto Bettencourt para o edifício do laboratório – o dos serviços administrativos e da revelação das películas cinematográficas – e o do Arqtº Jorge Segurado para o estúdio de filmagens. 

Refira-se ainda que em 1939 a Lisboa Filmes – outra empresa cinematográfica- transfere as suas instalações para a Quinta dos Ulmeiros, também no Lumiar e, em 1955, acaba por se fundir com a Tobis Portuguesa. 

Os cineastas Pedro Efe e Manuel Mozos realizaram em 2010 um documentário sobre esta fábrica do cinema português, intitulado Tobis Portuguesa. 

in «Toponímia de Lisboa», 3 de Dezembro de 2008 (não assinado).

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Angelitos Negros (2010) + Erupção (2001) de Manuel Mozos



por Manuel Mozos

Linguagem cinematográfica: o jogo das múltiplas condicionantes 

Existem diversas condicionantes práticas e muito concretas que delimitam e condicionam o uso das ferramentas e dos instrumentos do cinema. A experiência é uma delas, embora ache que nada impede alguém sem grande experiência de fazer um filme. Mas conhecer a História do Cinema, conhecer os meios técnicos com que se trabalha (quer se trate de suportes digitais ou película, material de som), ter noções de montagem, saber o que é um plano, e o que é um plano colado com outro, o que é que isso proporciona, são tudo conhecimentos que funcionam eventualmente como mais-valias. A relação humana tem também a sua importância: em cinema nunca se trabalha sozinho, trabalha-se em equipas, mais pequenas, maiores, e tem que haver uma relação honesta e concertada com as pessoas que estão envolvidas no que se pretende filmar, e que posteriormente resultará num filme. A relação com o produtor, por exemplo, pode imediatamente fechar um bocadinho aquilo que o realizador idealizou, porque é nesta relação que se evidenciam as questões que têm a ver com meios de produção, onde se decide o nível de disponibilidade para a persistência, para ir mais fundo num determinado assunto. Mesmo o momento e o modo da difusão e exibição podem condicionar o trabalho de fazer um filme. Rapidamente o realizador se vai apercebendo que existe uma série de condicionantes que limitam aquilo que inicialmente pretendia fazer. Mas claro que também pode surgir o contrário, que é ter momentos mágicos em que aparece uma coisa inesperada e que realmente dá outra força ao filme. 

Tudo isto se convoca e altera no momento em que se filma, e está dependente daquilo que cada um escolhe como assunto a tratar (em documentário ou ficção). Se se pretende filmar um determinado acontecimento ou um episódio, ou se se quer ir filmar uma fachada de um prédio e o passar do tempo sobre essa fachada, a linguagem cinematográfica é convocada de maneira totalmente diferente. Ao mesmo tempo, se a 10 realizadores diferentes fosse dado o mesmo tema, e se eles nunca se encontrassem, provavelmente resultariam 10 filmes completamente diferentes. São coisas muito difíceis de definir.



O jogo das condicionantes aplicado a um caso concreto: o documentário e a televisão 

No caso do documentário há um assunto que acho importante discutir a este nível: o facto de hoje em dia, para mim, ele estar demasiado formatado a modelos televisivos. Como tem pouca divulgação comercial e no cinema, os canais televisivos são a sua possibilidade de divulgação. E esses canais impõem certas regras, que podem ter a ver com a duração do filme, com formatos, até mesmo com a escolha do próprio suporte, que condicionam a realização do filme. Mesmo os próprios assuntos: os canais televisivos interessam-se talvez muito mais por coisas da actualidade, ou com contornos mais sociológicos. Lembro-me por exemplo de ter assistido a certas sessões de pitchings onde era óbvio que alguns projectos eram barrados porque não eram interessantes no contexto actual, do ponto de vista das televisões que a este nível funcionam como centros decisórios. 

Eu percebo que realmente se calhar não é possível toda a gente estar a filmar, mas acho que deste modo também se limitam em excesso algumas coisas que aparentemente podem não ser importantes num determinado momento, mas que um dia poderão vir a ser. O próprio filme considerado sem “interesse” – porque não é pertinente, ou actual – pode ser bem mais interessante em termos cinematográficos, do que aquele que se achou importante produzir, mas que nada tem de cinema. Acho que no documentário isto às vezes é um pouco confuso. Há muitas coisas tomadas como documentários que mais se parecem com reportagens ou com os antigos jornais de actualidades, que não têm um cunho daquilo que, na minha opinião, deveria ser o documentário cinematográfico. 

Mas acho que isto não se passa só ao nível do documentário, acontece também na ficção: há produtos que se percebe que são de televisão. E são feitos até com imensa qualidade, e têm méritos, mas são coisas de consumo imediato. São entretenimento, e terão o seu valor por isso mesmo, mas também não são mais do que isso. Não entram na categoria da obra de arte. 

excerto de «Um Cinema de Verdade», texto inserido no catálogo do Panorama – Mostra do Documentário Português de 2008.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Luz Teimosa (2010) de Luís Alves de Matos



por Luísa Soares de Oliveira

Em Luz Teimosa há uma fotografia que ressurge em diversos momentos, acentuando a circularidade das histórias que se cruzam ou afastam durante os 75 minutos do filme: o retrato de uma rapariguinha, tirado numa romaria do Norte pouco antes de Fernando Lemos, o fotógrafo (mas que foi também pintor, desenhador, poeta e ilustrador) partir para o Brasil, em 1953. É uma imagem a preto e branco, que se afasta do experimentalismo processual pelo qual a obra fotográfica de Lemos se tornou conhecida. Onde antes haveria sobreposições, impressões em negativo, solarizações à maneira de Man Ray, há agora uma imagem quase documental, directa, um desses objectos que, na fotografia, guardam a aura benjaminiana do desaparecido. 

Luz Teimosa, o filme documentário sobre Lemos, que ganhou o Prémio Melhor Filme Português sobre Arte no festival Temps d'Image de 2011 e uma menção honrosa na categoria de longas-metragens no festival Iberoamericano de Cinema de Sergipe – Curta-se, no mesmo ano, chegou agora à edição DVD, depois de também ter passado pelo DocLisboa de 2010 onde o público teve a possibilidade de o ver. Realizado por Luís Alves de Matos, a partir duma ideia do mesmo e de Pedro Aguilar, evita, e bem, os escolhos da recriação biográfica para se concentrar numa abordagem emotiva e intimista da vida presente do artista, a partir da qual momentos decisivos do passado são evocados. O realizador tenta mesmo recuperar algo do 'cadavre-exquis' surrealista ao intercalar excertos filmados em Super8 e fragmentos de poemas ou críticas escritas na própria montagem do filme, quase como didascálias. 

Lemos, que expôs com outros surrealistas portugueses na Casa Jalco, em Lisboa, em 1952, surge assim na sua casa de São Paulo, como no Castelo de São Jorge a evocar a vida em Lisboa na década de 50, no Porto, numa praia de Ubatuba. Clara fica a razão do seu interesse pela fotografia: é que ela 'já nasce com o seu próprio registo', e deve sempre ser a preto e branco, porque o artista gosta cada vez mais do preto e branco em tudo, 'mesmo no cinema'. Mais importante, considerava que 'a luz era o nosso desenho', e que a fotografia analógica, no processo químico que a permite revelar, se assemelha a um combate entre a luz e a sombra, ou mesmo, a qualquer coisa que parece o acto de pescar (entrevista a Sérgio B. Gomes em Público, 4.12.2009). 

in «O artista das duas pátrias», Ípsilon.