quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Watashi ga suteta onna (1969) de Kirio Urayama



por Alexandra Barros

A Mulher que Eu Abandonei abre com uma máscara Noh, mas passa-se num Japão ocidentalizado, no final da década de 60. É uma história de sufocos sentimentais, centrada em Yoshioka, um estudante universitário. Tem como pano de fundo as convulsões sociais da altura, incluindo movimentos estudantis de protesto e revoltas no mundo laboral. 

Embora Yoshioka tenha uma relação intensa com Mitsu - uma rapariga carinhosa e devotada - abandona-a devido às suas ambições de ascensão social. Mitsu é substituída por Mariko, a sobrinha do presidente da fábrica onde Yoshioka trabalha. Apesar de Mariko estar apaixonada por Yoshioka, ele não consegue viver com ela um amour fou como o que viveu com Mitsu. Yoshioka e Mariko têm um namoro “formal”, com forte presença e compromissos com o clã familiar de Mariko. Ela desempenha o seu papel de acordo com as convenções sociais, menorizando a paixão. A máscara Noh, que veremos por diversas vezes ao longo do filme, reforça essa ideia de representação que é a vida em sociedade. “Todos têm as suas próprias circunstâncias.” diz Mariko, quando Yoshioka se mostra desiludido por ela privilegiar os desejos da família relativamente aos desejos dele. 

Sem o amor devotado e incondicional de Mitsu, Yoshioka murcha. Embora aparentemente tenha ficado indiferente ao fim da relação, ficou, de facto, desamparado. Apesar dos esforços de Mariko para reforçar a união sentimental entre os dois, a solidão interior de Yoshioka contamina o casamento. O desapego de Yoshioka condena Mariko, por sua vez, à solidão. 

Quando Yoshioka reencontra Mitsu, torna-se impossível manterem os sentimentos enclausurados e caem numa teia preparada para capturar Yoshioka. Mitsu enfrenta a “aranha” para salvá-lo e este acaba por perdê-la para sempre. Confrontada com a devastação de Yoshioka, Mariko compreende finalmente porque é que nunca se sentiu amada e, desesperada, quer perceber “Quem é Mitsu?”. “Mitsu sou eu! E tu também és Mitsu!”, é a resposta de Yoshioka, que, por fim, vê com clareza o triângulo de sofrimento que criou em nome do “sucesso”. Caídas as máscaras, a paleta cromática do filme passa do preto e branco para a cor.



quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Onna no isshô (1962) de Yasuzô Masumura



por Alexandra Barros

A Vida de uma Mulher é a vida de Kei, uma jovem orfã que vive em casa de uns tios pobres que a maltratam e sobrecarregam de trabalho. Por representar um encargo financeiro, ela acaba por ser expulsa de casa. O que poderia ser uma libertação será a entrada para uma nova prisão. Numa imagem premonitória, filmada a partir do interior gradeado da casa dos tios, Kei, de frente para a câmera, parece enjaulada por essas grades que a separam do lar, apesar de se encontrar do lado de fora das mesmas. Ao longo do filme, veremos, uma e outra vez, imagens em que é vista através de gradeamentos ou em cantos onde aparenta estar enclausurada. 
 
A prisão de onde nunca conseguirá sair é o compromisso feito com a matriarca da família que a acolheu, quando vagueava sem destino, após ter ficado desalojada. As mais belas imagens do filme, situam-se nessa deambulação nocturna. O Desfile das Lanternas - um rio de luz que corre no sentido inverso ao de Kei até se transfigurar em longínquas bolas de luz flutuantes - e a sombra negra de Kei, secundada pela sua silhueta, recortada contra o casario, são memoráveis. 
 
Amada pelos dois filhos da matriarca, casa com Shintarô, para honrar o seu compromisso, apesar de ser Eiji quem ama. É também para honrar esse compromisso, que sacrifica a sua natural gentileza e humanidade, não olhando a meios para garantir a prosperidade de Tsutsumi, a empresa familiar pela qual se tornou responsável. Ao fazer desse empreendimento a sua prioridade, não consegue atender às necessidades pessoais dos diversos membros da família, os quais outrora muito acarinhou. Os mais gravemente afectados são o marido e a filha, para quem nunca tem tempo ou disponibilidade, e que muito sofrem devido à consequente falta de afecto. Por causa da promessa que fez à sua falecida “mãe”, não cumpre as promessas com que tenta apaziguar a sua sempre negligenciada (e revoltada) filha. 
 
Kei mantém a ilusão do controlo, mas o seu destino é determinado pelos conflitos no interior da família e pelas guerras em que o Japão se vai envolvendo. O contexto histórico dos diversos períodos da saga familiar, da era Meiji ao pós 2ª Guerra Mundial, é dado pelos cabeçalhos dos jornais de época, através dos quais vamos saltando no tempo. Uma guerra trouxe fortuna à família Tsutsumi, uma guerra a derruba. É só quando Kei perde tudo, a empresa e a família, que a vida finalmente lhe parece sorrir, com o regresso de Eiji a casa. Mas o final redentor é boicotado pela própria Kei, ao tomar uma decisão que a mantém refém do que resta da casa e da família pela qual se sacrificou, prefigurando uma espécie de caso de Síndrome de Estocolmo. No final do filme, Kei surge encurralada entre um duplo arco: o arco do portão dos Tsutsumi, pelo qual entrou furtivamente na noite em que os tios a expulsaram, e um arco de luz projectado nas ruínas do casarão onde, nessa noite, foi acolhida.



sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Perceval le gallois (1978) de Éric Rohmer



por João Palhares

Chrétien de Troyes, cujo livro «Perceval ou le Conte du Graal» é a inspiração para este filme de Éric Rohmer, é considerado o pai da literatura arturiana e dos cavaleiros da Távola Redonda. E a lenda do Rei Artur sempre interessou o cinema directa ou indirectamente, para o provar basta mencionar alguns títulos como Parsifal de Edwin S. Porter, de 1904, Prince Valiant de Henry Hathaway, de 1954, The Sword in the Stone de Wolfgang Reitherman, de 1963, Camelot de Joshua Logan, de 1967, Lancelot du Lac de Robert Bresson, de 1974, Excalibur de John Boorman, de 1981, ou Parsifal de Hans-Jürgen Syberberg, de 1984. O próprio Rohmer, num documentário feito para a televisão em 1965, abordou a temática, a personagem de Perceval e a obra de Chrétien de Troyes antes de realizar o Perceval, o Galês que hoje vamos ver. 

Sem ver a Idade Média como um circo de variedades e pirotecnia da ordem dos King Arthur ou King Arthur: The Legend of the Sword desta vida, o cineasta francês compõe o filme em cenários pintados e versos cantados ao longo das excursões dos cavaleiros Perceval e Sir Gawain. Há um coro a pontuar todas as aventuras, às vezes intromete-se na narrativa e às vezes são as próprias personagens a servir de coro a si próprias e a personagens com quem falam. Sem aceitar isto, não vale a pena ver o filme, que é uma transposição virtuosa dos escritos fundadores de Troyes, Thomas Mallory ou Geoffrey Saucer. Aceitando, pode-se apreciar a candura e a violência desses relatos, a realidade possível dentro de um mundo sonhado. O cinema. 

Num acumular de pequenos absurdos, como um rapaz destinado a ser cavaleiro não saber o que é um cavaleiro porque a mãe assim o quis para o desviar dessas aventuras mas sem sucesso, cavalos e cavaleiros a entrar dentro de castelos sem proporcionalidade aparente, tinta vermelha a servir de sangue e de vinho, duelos e combates que as narrações nos dizem durarem horas serem mostrados em poucos segundos, cantoria e poesia por todo o lado, um rapaz que não parece ser capaz de levantar um escudo conseguir derrubar cavaleiros que aterrorizaram exércitos, homens sinistros no aspecto mostrarem ser os mais justos do mundo. Depois de tudo isto, encenado no maior dos classicismos, uma encenação elaboradíssima da Paixão de Cristo, intercalada com um coro que descreve os acontecimentos enquanto os vemos a acontecer, a uma velocidade demencial e com grande violência. Coisas que nos fazem lembrar que Rohmer deu uma entrevista aos Cahiers du Cinéma a que se deu o nome de “O Antigo e o Novo”, e é também o realizador de Louis Lumière, ou A Inglesa e o Duque, variações documentais e ficcionais sobre a modernidade ancoradas no mais antigo e nas fundações do cinema, sempre. Ou então, e como não se fartava de gritar um amigo uma noite, há muito tempo, “os católicos são os mais fodidos.”



quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Ginza no onna (1955) de Kôzaburô Yoshimura



por João Palhares

Como já referido em folha de sala anterior (Sessão nº 264: Johnny Coração de Vidro), há “mestres japoneses desconhecidos” a descobrir para além dos mais famosos Kenji Mizoguchi, Yasujirõ Ozu, Akira Kurosawa ou Mikio Naruse. Estão disponíveis no nosso mercado e no nosso mapa de estreias graças à The Stone and the Plot, distribuidora fundada por Daniel Pereira em 2017, e à curadoria de Miguel Patrício, grande entusiasta de cinema japonês - ao qual tem dedicado alguns artigos e palestras. Assim, em 2021 estrearam-se em Portugal O Menino da Ama de Tomotaka Tasaka (exibido por nós há duas semanas), Cada um na sua Cova de Tomu Uchida e o Mulheres de Ginza que nos ocupa esta semana. Este ano e este mês, estreou-se o segundo ciclo, composto por Johnny Coração de Vidro de Koreyoshi Kurahara, A Vida de uma Mulher de Yasuzô Masumura e A Mulher Que Eu Abandonei de Kirio Urayama, e que é exibido integralmente pelo cineclube este mês. Para o ano de 2023, espera-se uma retrospectiva integral da obra como realizadora de Kinuyo Tanaka, uma das mais célebres actrizes japonesas, que esperamos poder também exibir. Muitos parabéns, portanto, à The Stone and the Plot. 
 
O realizador de Mulheres de Ginza é Kôzaburô Yoshimura. Nasceu em Ôtsu, na prefeitura de Shiga, a 9 de Setembro de 1911 e arranjou trabalho no estúdio Shõchiku em 1929. Apesar de se estrear como realizador cinco anos depois, em 1934, continuou a trabalhar como assistente de realização de cineastas como Yasujirõ Ozu ou Yasujirõ Shimazu. A partir de Anjō-ke no butōkai, com Setsuko Hara, inicia uma colaboração de vários filmes com o argumentista e realizador Kaneto Shindo, que é também autor do argumento de Mulheres de Ginza. Em 1957, realiza Osaka monogatari, projecto planeado e iniciado por Kenji Mizoguchi mas terminado por si. E foi a Mizoguchi que Yoshimura foi mais comparado, certamente por situar a sua obra em casas de gueixas e fazer das mulheres o centro dos seus filmes. 
 
Ginza é um bairro em Tóquio, onde vivem as classes mais abastadas. É uma escolha óbvia para abrir e manter uma casa de gueixas e é aí que vivem e trabalham Ikuyo e as suas gueixas. Ludibriadas e traídas por homens, recusam-se a dar por vencidas e vão sorrindo e vão fazendo pela vida como podem. Yoshimura toma a perspectiva delas e isso resulta num tom leve e irónico que talvez impressione ou choque mas é perfeitamente justificado. Os homens são todos caricaturas, desde o pai que só pensa no leite ao escritor que só pensa em si próprio, passando pelo irmão que credita a si e aos seus contactos todos os clientes da irmã e pelo detective que lê as “tragédias de X” e as “tragédias de Y” sem se aperceber que há bastantes tragédias a ocorrer sob a sua jurisdição, e as mulheres parecem os únicos seres lúcidos e práticos. Inocentemente, elas iniciam uma revolução, e tentam mudar de vida. Incendeiam o sistema. Talvez o tom leve fosse a única forma de fazer passar uma mensagem tão perigosa como essa, nos anos cinquenta no Japão, mas a verdade é que ainda há conformismo e cobardia nos tempos que correm, e as coisas não devem ter mudado assim tanto. Riamos ou choremos, todos estes anos passados.



sábado, 12 de novembro de 2022

Le Journal d'une femme de chambre (1964) de Luis Buñuel



por António Cruz Mendes

Na sequência do ciclo “A Literatura e o Cinema Francês”, exibimos hoje Diário de Uma Criada de Quarto, a adaptação de Luis Buñuel do romance de Octave Mirbeau. 

Logo nas primeiras linhas do romance, lemos uma entrada do Diário de Célestine: “Hoje, 14 de Setembro, às três da tarde, por um tempo ameno, cinzento e chuvoso, dei entrada no meu novo emprego. Em dois anos, é já o décimo segundo. Já não falo dos que tive nos anos anteriores. Não tinham conto possível. Bem me posso gabar de ter visto por dentro muita casa, muita cara... muita alma imunda...”. Em Paris ou na província, em casas aristocratas ou burguesas, Célestine experimenta o menosprezo dos patrões, que tratam a “criadagem” como coisas, e testemunha as perversões e ódios dos abastados, numa França onde o reacionarismo monárquico, o nacionalismo revanchista e o anti-semitismo fazem o seu caminho. A França do “caso Dreyfus”. 
 
Luís Buñuel, adapta o romance permitindo-se algumas alterações. Os acontecimentos já não se passam na viragem do século, mas trinta anos mais tarde, concentra-os numa só casa e acrescenta-lhes os episódios do velho fetichista e da violação e assassinato da pequena Claire. Mas, o propósito de denúncia social do romance de Mirbeau, continua presente, ainda que tratado sob a óptica singular do cinema de Buñuel, com a sua ênfase particular na feição erótica dos acontecimentos narrados. 

A casa dos Monteil é um microcosmos que a lupa de Buñuel nos vai desvendando. Monteil dedica-se à caça e compensa a frigidez da sua esposa assediando e engravidando as criadas que passam por lá. Madame Monteil, que se dedica a velar pelos seus preciosos objectos decorativos, não tem ciúmes do marido. De facto, as suas aventuras têm até a vantagem de ele, “demasiado forte e vigoroso”, a deixar mais facilmente em paz. O diálogo com o padre esclarece-nos acerca da moral sexual da Igreja. Porém ela exige que elas não lhe tragam despesas. O seu pai é um velho “encantador”, apenas tem os botins das mulheres como fetiche sexual. E Joseph, cocheiro e guarda-caça, é um militante da Action Française que aspira à condição de dono de um botequim. 

Pelo meio, uma criança é violada e morta. A tentativa de incriminar Joseph engendrada por Célestine não resulta. Falhado o assalto a Célestine, Monteil contenta-se com a pobre Muni. E Célestine emancipa-se da sua condição de criada, substituindo a velha Rose na cama de um caricatural capitão, de quem aceita um pedido de casamento. 

Na sequência final, uma manifestação da Action Française desfila pelas ruas, passando à porta do botequim de Joseph, bradando contra os “metecos” – os judeus e os imigrantes. Às suas palavras de ordem, Joseph acrescenta uma outra, desde logo adoptada: “Viva Chiappe!” Buñuel não quis deixar escapar esta oportunidade para se vingar do prefeito da polícia de Paris que, em 1931, a instâncias da extrema-direita, mandou fechar a sala de cinema onde se exibia o seu segundo filme, A Idade do Ouro

O filme termina com uma imagem de um céu ameaçador, carregado de nuvens negras. É difícil ignorar a sua actualidade.



quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Garasu no Jonî: Yajû no yô ni miete (1962) de Koreyoshi Kurahara



por António Cruz Mendes

Todos conhecemos Mizoguchi, Ozu ou Kurosawa, Alguns dos seus filmes foram já aqui exibidos pelo Lucky Star - Cineclube de Braga. Mas, evidentemente, o cinema japonês não se reduz aos filmes desses autores e a The Stone & The Plot decidiu que essa lacuna no nosso conhecimento devia ser preenchida, distribuindo dois ciclos de filmes de “mestres japoneses desconhecidos”. Cinco dos filmes desses dois ciclos vão ser exibidos por nós. 

O filme de hoje tem sido comparado a La Strada, de Fellini. Podemos, de facto ver em Mifune algo de Gelsomina, também ela vendida a um brutamontes que a maltrata. Ambas, Mifune e Gelsomina, são personagens cândidas, ingénuas, perdidas num mundo brutal onde o poder do dinheiro impera. Aparentemente, os dois filmes parecem inserir-se na tradição neo-realista. A opção pelo preto e branco no filme de Kurahara, o protagonismo de pessoas pobres, o realce dado à relação entre as suas atribulações e as condições sociais da sua existência, apontam nesse sentido. Mas, o registo sentimental de Johnny coração de vidro, afasta-o dos cânones do neo-realismo italiano. Aliás, de resto, também La Strada, foi criticada pelo seu tom melodramático. 
 
No filme que hoje exibimos, Mifune, frágil e ingénua, reparte o protagonismo com Akinoto e “Joe”, dominados pelas suas poderosas obsessões, as corridas de bicicletas e um amor traído. As relações entre estes três desvalidos da sorte, são, simultaneamente, de atracção e repúdio. Primeiro, Mifune persegue, literalmente, “Joe”, procurando a protecção e o amor de que carece. E acaba por ser vendida por ele à dona de um prostíbulo. Depois, tenta conquistar Akinoto, o perseguidor, que a tinha comprado aos pais, com a mesma finalidade, e de quem fugia. Nos dois, procura o seu “Johnny coração de vidro”, a figura fantasmática e redentora que lhe foi apresentada por um poeta suicida, e que povoa os seus sonhos. Os dois acabam por reconhecer nela uma inocência perdida, a promessa de uma vida fundada sobre o amor. 

O filme conta-nos uma história de traições, de pecado e de redenção, aqui simbolizada pela água. A água que cai sobre o corpo de "Joe", deitado à chuva numa varanda, finalmente livre da sua obsessão; a água do mar onde, por fim, Mifune vai procurar o seu amor.



sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Le plaisir (1952) de Max Ophüls



por João Palhares

Quando, em 2016, se abordou o grande crítico norte-americano Tag Gallagher para uma pequena apresentação em vídeo sobre Samuel Fuller, que acabou por ser exibido apenas em Janeiro do ano seguinte com White Dog no ciclo dos anos oitenta dentro do grande ciclo dedicado ao cinema americano, reparou-se que ele se despedia sempre com um enigmático “max”, seguido do seu primeiro nome. Quando lhe perguntámos o que é que isso queria dizer, ele respondeu-nos que “as pessoas normalmente despedem-se com "all the best," ou apenas "best," que é mais ou menos o mesmo que "max," que mais ninguém diz a não ser eu, que o comecei a fazer em 2002 em honra de Max Ophüls, cujo centenário se celebrou em 2002.” 
 
Max Ophüls é um cineasta franco-alemão que começou por trabalhar na Alemanha, onde nasceu Maximillian Oppenheimer, e depois em França, com uma pequena passagem pelos Estados Unidos nos anos quarenta. Além deste O Prazer, é autor de filmes como Carta de Uma Desconhecida, com Joan Fontaine e Louis Jordan, Caught e The Reckless Moment, ambos com James Mason, La Ronde, com Simone Signoret e Simone Simon, e Madame De…, com Charles Boyer, Danielle Darrieux e Vittorio De Sica, já exibido por nós no ciclo que dedicámos aos amores cinéfilos de João Bénard da Costa em 2019, ainda na Casa do Professor. 
 
James Mason, que trabalhou com o cineasta em dois filmes, escreveu um poema sobre ele em que descreve o seu amor por grandes e sofisticados movimentos de câmara, dizendo que “I think I know the reason why / Producers tend to make him cry. / Inevitably they demand / Some stationary set-ups, and / A shot that does not call for tracks / Is agony for poor dear Max, / Who, separated from his dolly, / Is wrapped in deepest melancholy. / Once, when they took away his crane, / I thought he’d never smile again…”[1] Também Stanley Kubrick e Paul Thomas Anderson não se fartaram de elogiar os movimentos de câmara do franco-alemão, tentando a sua sorte em homenageá-lo com as suas câmaras nos seus próprios filmes. 
 
Em O Prazer, vemos a câmara de Ophüls no seu máximo esplendor, sem interferência de qualquer produtor, a descrever as cambiantes da paixão e do amor. Três episódios: o primeiro uma espécie de prelúdio in finis res em que um casal idoso luta contra os seus próprios impulsos em lamentação da sua juventude perdida, com a câmara a seguir o homem nas suas deambulações nocturnas por clubes de dança. De máscara, até ao paroxismo, depois um sem fim de idas e vindas dos bastidores para a pista de dança e da pista de dança para os bastidores para tratar o velho que não quer acreditar que é velho; o segundo, o corpo essencial da estória, descreve a viagem de uma madame e das suas prostitutas a uma primeira comunhão no campo, onde se comovem imenso e fazem também outros comover-se, em tom solar e alegre, como anuncia o narrador-Maupassant a negro, antes do sol nascer. A casa Tellier apresentada em plano-sequência do exterior: movimentos rotineiros observados com pudor ou voyeurismo. No final, a festa com o regresso das mulheres, até ao torpor dos sentidos; o terceiro uma elegia conclusiva, a felicidade e a alegria, o efémero e o eterno, com o narrador presente no quadro. Corpos que dançam, corpos que caem, corpos que se aproximam e repelem até à lição derradeira, aprendida a sangue e lágrimas. 
 
O narrador arrepende-se de o amigo se ter afastado dele na sequência dos acontecimentos trágicos que marcaram o seu grande amor. “Errou, ele,” diz o escritor a outro amigo. “Encontrou o amor, glória e fortuna. A felicidade não é isso?” 
 
“Mesmo assim, tens de admitir que isto é tudo muito triste,” diz o amigo. 
 
“Mas, meu caro, a felicidade não é alegre,” conclui o narrador. 
 
Max, meus amigos. 
 
Max.

[1] Tradução possível, mas sem as belas rimas do original: “Penso saber a razão / porque os produtores tendem a fazê-lo chorar. / Inevitavelmente exigem / montagens de planos fixos, e / um plano sem trilhos / é uma agonia para o pobre Max, / que, separado da sua dolly, / se embrenha na mais profunda melancolia. / Uma vez, quando lhe tiraram a grua, / pensei que nunca mais iria sorrir…”



Jochukko (1955) de Tomataka Tasaka



por Duarte Mata

Se o relógio não me enganou, o meu enquadramento favorito de Jochukko (O Menino da Ama, 1955) encontra-se no minuto 46. Trata-se de um plano de conjunto em picado que reúne uma mulher e um homem. Ela é a sobrinha da dona da casa que é o espaço central do filme, ele um visitante externo que não voltaremos a ver após esta cena. Ela ocupa o centro da composição, ele a zona próxima da margem direita. É uma conversa tranquila? A forma como o plano está filmado é o suficiente para nos indicar que não. Como? Neste enquadramento, está colocado graficamente um corrimão de escadas sobre o homem, este último visível à audiência apenas por entre as hastes verticais de madeira do dito elemento doméstico decorativo. A singularidade imagética deixa o espectador em estado de alerta: “Porquê um plano picado?”, “Porquê o corrimão sobreposto ao visitante?”, “Porquê esta imagem com o seu quê de incomodativo?” Um cineasta que sabe o que faz nunca filmaria um plano destes aleatoriamente, e é bom que Tomotaka Tasaka tenha uma razão para fazê-lo. 
 
E Tasaka tem essa razão. Como o decorrer da cena demonstrará, este visitante é, na realidade, um embusteiro, andando de casa em casa com manobras de intimidação para forçar a venda de produtos inúteis. O corrimão sugeria, então, já um antagonismo entre as duas personagens, tanto pela rejeição em ambas compartilharem um enquadramento visualmente desobstruído, como pelo facto de as hastes dificultarem qualquer espécie de identificação com a figura masculina. Ao mesmo tempo, o ângulo de câmara é sugestivo de uma certa opressão ou vulnerabilidade, neste caso, aquela sentida pela figura feminina. A desconsolação imagética inicial ver-se-á, deste modo, confirmada pela narrativa, associando-se a inquietação espacial da imagem ao desconforto emocional da jovem. Momentos entusiasmantes de analisar como este há muitos em Jochukko, mas referir a perfeita sintonia de forma e substância não é dizer tudo (nem, provavelmente, o mais importante) sobre aquele que é definido por Donald Richie e Joseph L. Anderson, em The Japanese Film: Art and Industry, como “o retrato definitivo das milhares de jovens raparigas que vêm das áreas agrícolas deprimidas do Norte, todos os anos, para se tornarem no novo suprimento de empregadas domésticas de Tóquio.” 
 
Trata-se de um filme do género shomin-geki – “sobre as vidas de pessoas comuns, particularmente as de classe média-baixa” (Richie/Anderson outra vez) – onde, não mostrando mais do que eventos quotidianos, Tasaka é capaz de traçar cuidadosamente um retrato psicológico e afectivo das personagens, assim como sociológico e económico de um país (o Japão do pós-guerra, no caso). É um universo íntimo a espelhar, na sua modesta escala, um outro mais abrangente, o particular como reverberação do geral, transformando uma casa num observatório de questões classistas com as suas dicotomias campo/cidade, tradição/modernidade, sempre de maneira simples, leve e justa. 
 
Um exemplo para o parágrafo anterior? Numa cena onde a já referida sobrinha e a ama do título, Hatsu, vão passear ao mercado, estas dialogam brevemente sobre o preço das salsichas e dos rabanetes, nomeadamente o facto de o das primeiras ser dez vezes mais caro que o dos segundos. “Não é justo para o rabanete! E os pobres dos agricultores? Têm tanto trabalho a cultivá-los.”, comenta indignada a criada. Resposta da sobrinha: “A salsicha é uma comida modernamente preparada e o seu valor é naturalmente diferente do rabanete, onde só é preciso arrancá-lo do solo.” Neste curto diálogo estão colocados, de jeito espirituoso e sem discursos pregadores, todos os contrastes previamente referidos, abordando metaforicamente como o cidadão “moderno” (e, por consequência, “urbano”) é ilusoriamente encarado como superior ao mais “tradicional” (e, por consequência, “rural”) por beneficiar de uma educação mais sofisticada e de uma aparência que envolve mais “preparação”. É uma das várias exibições da condescendência cosmopolitana que, como o realizador mostrará numa das últimas cenas (aquela na neve), de nada vale quando os cidadãos citadinos se confrontam com a força da Natureza no campo, esse espaço onde o ser humano está despido das comodidades e aparências para melhor descobrir o seu verdadeiro valor. 
 
Estas dinâmicas sociais estão presentes, em maior ou menor grau, desde a primeira cena, decorrida no interior de um metro com Hatsu a observar admirada uma passageira à sua frente, uma mulher adulta enfeitada com um colar, brincos e outros adereços (“modernamente preparada”, portanto), anunciando já o ponto-de-vista do filme inteiro: o olhar exterior da província sobre a metrópole. A câmara da Tasaka está, então, a partir do começo, do lado da criada, e é nele que explorará as várias microdinâmicas dentro do lar, sendo a mais importante aquela estabelecida com a criança mimada, irascível e egoísta da família dos patrões, de quem Hatsu se tornará a genuína figura didáctica. Um exemplo: uma birra provocada pelo rapaz para obter uma pressão de ar (cuja origem está numa outra cena de exposição exclusivamente visual e montagem de efeito kuleshoviano, com o rapaz a contemplar atentamente as balas, espingarda e aves abatidas de um caçador) só será resolvida pela intervenção da ama ao apresentar um método mais arcaico para capturar passarinhos. Comprar uma arma letal para matar animais? Não. Ao invés, construir uma armadilha segura com as suas mãos e escolher cuidar deles. A agressividade masculina, infantil e urbanita é, assim, vencida pela gentileza feminil, matura e campestre. É em instantes como este que melhor se enaltecem a cumplicidade silenciosa, confiança mútua e proximidade discreta entre educadora e educando (e não é por acaso que as sequências entre eles são aquelas onde a câmara está mais perto dos sujeitos). 
 
Há muito mais que se poderia discutir. A forma quase ozuiana (sem o rigor composicional tão característico do colosso nipónico) como a câmara estuda as personagens, adereços e objectos por entre as portas internas e divisões mais ou menos vazias desse componente fulcral narrativo que é o espaço doméstico; a batalha entre as crianças com o uso expressionista do som de um avião em pleno voo sobre elas; a conversa amarga final entre criada e patroa, com uma sucessão de curtos travellings rumo à face magoada da protagonista enquanto esta atravessa um dilema moral: revelar a verdade à matriarca ou manter a lealdade junto do petiz; e a última cena, descendente quase certa da do Modern Times (Tempos Modernos, 1936) de Chaplin (a caminhada determinada rumo a um futuro incerto) e ascendente totalmente impossível da de Le notti di Cabiria (As Noites de Cabíria, 1957). “Totalmente impossível” porque, dada a relativa obscuridade da obra de Tasaka no Ocidente, é pouco provável que Fellini a tenha visto. E, no entanto, ambas têm nos seus desfechos um plano fechado do rosto da heroína e do seu sorriso resignado passadas as provações, uma imagem consoladora e esperançosa que anuncia a superação sobre o que veio e há-de vir. Que dois finais pareçam tão semelhantes sem nunca um ter influenciado o outro é qualquer coisa como um milagre. O tipo de milagre misterioso de que só filmes como Jochukko, Cabiria, Modern Times e outras obras-primas são feitas.

in «"O Menino da Ama": a cidade e as serras nipónicas», À Pala de Walsh, 15 de Novembro de 2021.