quarta-feira, 16 de julho de 2025

A Máquina de Matar Pessoas Más (1952) de Roberto Rosselini



por Alexandra Barros
 
A Máquina de Matar Pessoas Más arranca com uma belíssima cena em que vemos o cenário do filme a ser montado: “Eis o que precisamos: um dia e um mar calmos, com nuvens brancas no céu. Depois, uma montanha de cartão, deserta, muda e triste, que vou tapar com casas. Aqui, é a Câmara Municipal, com a sua fonte, e as belas casas, em que vivem os ricos. Agora que já expliquei a cena, irei apresentar as personagens: trapaceiros, intrujões e canalhas, inúteis, dissimulados, tolos, espezinhados e prepotentes, resmungões e descontentes. Sejam belos ou feios, todos se parecem um pouco connosco.” Com um passe de magia, a maquette de cartão é transformada no seu modelo real, Amalfi, uma pequena aldeia piscatória, situada aos pés de uma montanha íngreme, na costa sudoeste de Itália, não longe de Nápoles.
 
Suspeitamos que o dia calmo anunciado no prólogo não vai durar quando dois amigos americanos explicam às mulheres que os acompanham como planeiam ficar ricos, transformando o cemitério local num resort turístico. O cemitério é vendido aos americanos, secretamente, pelo próprio presidente da Câmara. “Meus senhores, isto é uma comédia.”, fora anunciado no prólogo deste filme, rodado entre 1948 e 1950. Em 2025, o presidente dos Estados Unidos anuncia, com orgulho e grande pompa, um plano para transformar Gaza na Riviera do Médio Oriente, e partilha nas redes sociais um vídeo criado com recurso a IA desta idealizada “estância balnear com hotéis, estátuas douradas, dinheiro a cair do céu, iates, bailarinas exóticas, Elon Musk a comer iguarias locais e Donald Trump e Netanyahu deitados numa espreguiçadeira a beber cocktails”[1]. A realidade supera sempre a ficção.
 
Alegando interesses públicos, o presidente da Câmara tenta apropriar-se também da herança de D. Amália, a usurária a quem toda a comunidade deve dinheiro. Essa tentativa coloca-o na lista negra de Celestino, o fotógrafo da aldeia, a quem um estranho forasteiro (que Celestino crê ser Santo André, o padroeiro de Amalfi) deu o poder de matar através da fotografia. Inicialmente reticente em usar tal poder, rapidamente este o inebria e pequenos ou grandes egoísmos, ganâncias e prepotências passam a ser castigados sem qualquer reflexão. A solução para os problemas do mundo vem a revelar-se mais complexa que a simples eliminação dos “maus”. A própria distinção entre “maus” e “bons” começa a ser difícil de efectuar. A máquina de matar pessoas será divina ou demoníaca?
 
O filme levanta várias questões morais e filosóficas. O bem e o mal são entidades absolutas e facilmente distinguíveis? A quem cabe decidir quem são os bons e os maus? Que consequências tem o fazer justiça pelas próprias mãos?
 
Por outro lado, o filme evoca o papel da fotografia como instrumento de poder e manipulação, ou o conceito de fotografia como arma letal, ideias exploradas por pensadores como Susan Sontag[2] e Roland Barthes[3], e realizadores como Michelangelo Antonioni[4] e Michael Powell[5], entre outros. Para o bem e para o mal, uma imagem tanto é capaz de expor como de distorcer a realidade, ao congelar um momento ou mostrando pessoas e acontecimentos a partir de perspectivas específicas. O fotojornalismo, através da denúncia de situações, pode determinar a mudança de percepção sobre acontecimentos e circunstâncias pouco visíveis ou distantes (como a fotografia da “menina do Napalm”). A exposição de fotografias privadas quer por paparazzi, quer por fugas de informação ou cyberbullying pode revelar mentiras e hipocrisias, destruir reputações, causar danos psicológicos e financeiros, por vezes em nome de causas nobres e boas intenções, outras assumidamente por lucro, vinganças pessoais, chantagem emocional, etc.
 
Rossellini não ficou satisfeito com este filme em que se afastou do neorrealismo engajado e crítico dos célebres Roma, Cidade Aberta (1945) ou Alemanha, Ano Zero (1948). No entanto, a combinação de comédia, sátira, fantasia e fábula moral, com elementos característicos do neorrealismo, como: cenários reais, cenas documentais e actores não profissionais, seria considerada ousada e inovadora, por parte da crítica. O filme é visto actualmente como uma obra significativa dentro do seu trajecto, um ponto de transição entre o Rossellini neorrealista e o Rossellini filosófico e espiritual. Apesar da aparente leveza do filme, ele prenuncia, através do microcosmo amalfitano, desenvolvimentos culturais e políticos globais (o poder das imagens; a desigualdade crescente no acesso e distribuição de riqueza; os excessos, bizarrias e non-sense de projectos turísticos; a tendência para o uso abusivo do poder mesmo pelos mais bem-intencionados, ...) e explora questões que têm hoje uma relevância acrescida, face a esses desenvolvimentos. 
 

[1] Fonte: https://www.dn.pt/internacional/dinheiro-a-cair-do-céu-e-luxo-trump-divulga-filme-de-faixa-de-gaza-transformada-em-destino-turístico

[2] Susan Sontag, Sobre a Fotografia (1977)

[3] Roland Barthes, A câmara clara (1980)

[4] Blow-Up, Michelangelo Antonioni (1966)

[5] Peeping Tom, Michael Powell (1960)
 
 
 
   
 

domingo, 13 de julho de 2025

407ª sessão: dia 15 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


“A Máquina de Matar pessoas Más” de Roberto Rossellini, esta terça no Lucky Star – Cineclube de Braga

Em Julho, o Lucky Star- Cineclube de Braga promove a alegria e a boa disposição (muito riso), com critério (muito siso), com a segunda edição do ciclo “Muito Riso, Muito Siso”, que reúne filmes clássicos e contemporâneos de comédia. As sessões deste ciclo ocorrem, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30. 

Nesta terça-feira, 15 de Julho, exibimos o filme A Máquina de Matar Pessoas Más (1952), de Roberto Rossellini. Na pitoresca vila costeira de Amalfi, um modesto fotógrafo chamado Celestino leva uma vida pacata, eternizando turistas e moradores com sua antiga câmara. Um dia, um misterioso estrangeiro oferece-lhe um novo equipamento fotográfico que, segundo ele, revelará a verdadeira essência das pessoas. Ao testar o aparelho, Celestino descobre que aqueles que ele fotografa e julga como “maus” morrem misteriosamente pouco depois. Intrigado e aterrorizado, o fotógrafo sente-se o poder de julgar e de brincar de Deus. À medida que a vila se transforma sob o peso das mortes inexplicáveis, Celestino é forçado a confrontar os limites da moralidade e da justiça humana.

Roberto Rossellini foi um dos nomes centrais do neorrealismo italiano e uma figura incontornável do cinema europeu do século XX. Nascido em Roma em 1906, destacou-se por uma abordagem crua da realidade, procurando retratar a vida quotidiana com simplicidade e profundidade humana. A sua obra-prima Roma, Cidade Aberta (1945), filmada logo após a libertação de Itália, marcou o início do neorrealismo, ao lado de filmes como Paisà (1946) e Alemanha, Ano Zero (1948). A sua filmografia percorre fases distintas: do realismo pós-guerra à introspecção filosófica da fase com Ingrid Bergman, em títulos como Stromboli (1950) e Viagem a Itália (1954). Rossellini via o cinema como uma ferramenta de conhecimento e transformação social, rejeitando o artifício em favor da verdade. 
 
A Máquina de Matar Pessoas Más foi exibido fora de competição no Festival de Cannes de 1952 e suscitou reacções díspares entre os críticos que esperavam uma obra mais realista e os que aplaudiram a ousadia surreal e satírica da narrativa. A história foi parcialmente inspirada em reflexões filosóficas sobre o bem e o mal, que interessavam profundamente Rossellini na época, especialmente após a sua colaboração com Ingrid Bergman. O filme contou com um elenco maioritariamente amador e foi rodado em localidades reais da costa italiana, mantendo a estética simples do neorrealismo, mas aplicada a uma fábula moral. Apesar de não ter tido grande sucesso comercial, A Máquina de Matar Pessoas Más foi mais tarde reavaliado como uma obra singular e pioneira na filmografia de Rossellini, influenciando cineastas que explorariam o absurdo e o fantástico no cinema europeu.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça-feira!


quinta-feira, 10 de julho de 2025

O Sol do Futuro (2023) de Nanni Moretti



por António Cruz Mendes
 
A electricidade chegou, finalmente, a um bairro popular e, na sequência inicial do filme, os seus moradores reúnem-se, à espera de que, nas ruas e nas casas, as luzes se acendam. No centro dos festejos, dirigentes do PCI. A comunidade une-se em torno do partido a quem devem esse novo salto para a modernidade.
 
“O sol do futuro” é uma metáfora da utopia comunista. Como, “a nova aurora”, “os amanhãs que cantam” ou “o horizonte vermelho”. Num mundo de injustiças, de alienação, de pobreza, a vida será suportável sem o sonho de um novo mundo? E se ele se esvai depois dos acontecimentos que ensombraram a Hungria em 1956, esmagada a revolução democrática por aqueles que, até então, eram vistos como os arautos da libertação? A Ennio, dirigente do Partido Comunista de Itália, tantos anos dedicados a uma causa que agora vê traída, resta-lhe uma saída: o suicídio.
 
Este seria o tema do novo filme que Giovanni se propõe realizar. Giovanni é um alter ego de Nanni Moretti e as angústias e os dilemas do pós-comunismo tinham sido já tratadas por ele em Palombella Rosa e em A Coisa. É, portanto, um tema muito “morettiano”.
 
A acção passa-se em Itália, num município governado pelo Partido Comunista Italiano (PCI), onde a convite das autoridades locais, um circo húngaro monta o seu espectáculo... Porém, esse é apenas um filme dentro de outro filme, onde o protagonista é o próprio Giovanni e o seu tema são as dificuldades e as dúvidas que o assaltam durante a realização.
 
Todos nos lembramos de filmes que têm o próprio cinema e os seus bastidores como tema. , de Fellini, ou A Noite Americana, de Truffaut, por exemplo. Nanni Moretti retoma à sua maneira essa tradição. Ou seja, num registo habitualmente designado como comédia dramática.
 
A sua mulher e produtora quer separar-se dele, uma actriz improvisa e afasta-se do guião e até mesmo entre os animais selvagens do circo surgem incompatibilidades “nacionais”. O seu co-produtor faliu e não há dinheiro para prosseguir as filmagens. As demandas do mercado deixaram de ser compatíveis com a sua ideia de cinema. Tudo e todos parecem conspirar contra os propósitos de Giovanni. Mas, é impossível ver sem um sorriso a cena do jantar com o namorado da filha, a da entrevista com os potenciais financiadores da Netflix ou aquela onde ele intervém nas filmagens de um outro filme produzido pela sua mulher para discutir o lugar da violência no cinema.
 
As reflexões metalinguísticas estão, aliás, estão sempre presentes em O Sol do Futuro e remetem-nos para uma série de referências cinéfilas. Fala-se de Cassavetes, de S. Miguel tinha um Galo, dos Taviani, de Apoclipse Now, do Copolla... A dada altura a câmara filma uma plateia que observa, extasiada, a sequência final de La Dolce Vita. Mas, esse momento mágico, é logo interrompido pelo discurso crítico de um jovem que questiona a sua namorada acerca da natureza de classe dos seus protagonistas e da dimensão política do filme.
 
Os problemas pessoais, profissionais e artísticos de Giovanni confundem-se e tudo concorre para uma catástrofe. Mas, afinal, uma equipa de analistas ao serviço de produtores coreanos reconhece a excelência do argumento. Filmada em posição frontal, encarando os espectadores, uma jovem dá-nos o seu veredicto: “É um filme sobre a morte da arte e do comunismo. A morte do amor e da moral. É, sem dúvida, um filme sobre a morte de tudo”. “Certo”, reage Giovanni. Mas, deverá, terá de ser assim?
 
A cena final, a do suicídio de Ennio, é revista e, embora sem o timing que as regras da Netflix aconselhariam, pode dizer-se que o filme termina com um momento WTF, uma festiva manifestação onde a infidelidade à História é assumida, todos os anacronismos e inverosimilhanças são permitidos – mas a vida, a liberdade e a esperança triunfam. 
 
 

domingo, 6 de julho de 2025

406ª sessão: dia 8 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


“O Sol do Futuro” de Nanni Moretti, esta terça no Lucky Star – Cineclube de Braga

Em Julho, o Lucky Star- Cineclube de Braga promove a alegria e a boa disposição (muito riso), com critério (muito siso), com a segunda edição do ciclo “Muito Riso, Muito Siso”, que reúne filmes clássicos e contemporâneos de comédia. As sessões deste ciclo ocorrem, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30. 

Nesta terça-feira, 8 de Julho, o ciclo prossegue com o filme O Sol do Futuro (2023), de Nanni Moretti.
 
A narrativa do filme centra-se em Giovanni, um cineasta veterano e idealista, que está determinado a concluir o seu novo filme — uma obra sobre um grupo de comunistas italianos nos anos 1950 que luta pelos seus ideais, mas que se vê confrontado com contradições históricas e políticas. No entanto, enquanto tenta dar vida a essa narrativa utópica, sua própria vida pessoal começa a desmoronar. O seu casamento com Paola, sua produtora e parceira de longa data, entra em crise, e o próprio cinema que sempre amou parece estar em ruínas. Alternando entre a ficção do filme dentro do filme e os dilemas do presente, Giovanni confronta a difícil tarefa de conciliar a nostalgia política com as urgências do mundo atual. 

Estreado mundialmente, em 2023, no Festival de Cannes, O Sol do Futuro foi calorosamente aclamado pela crítica internacional, recebendo uma ovação ininterrupta durante 13 minutos na sua estreia oficial, a 24 de maio. O mais recente filme de Nanni Moretti — em competição pela prestigiada Palma de Ouro em 2023 — rapidamente se destacou entre os títulos europeus desse ano.

A obra foi nomeada para sete prémios David di Donatello, o equivalente italiano aos Óscares, e já arrecadou dois Nastri d'Argento: Melhor Atriz Coadjuvante para Barbora Bobuľová e o Prémio Guglielmo Biraghi, atribuído à jovem Valentina Romani. Uma confirmação do vigor criativo de Moretti, nome incontornável do cinema de autor.

O Sol do Futuro é uma comédia dramática, melancólica e autorreflexiva, em que Nanni Moretti revisita seu estilo inconfundível para questionar o passado, rir do presente e imaginar, com ternura e ironia, um futuro ainda possível.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça!


quinta-feira, 3 de julho de 2025

Loucamente (2016) de Paolo Virzi



por Jessica Sérgio Ferreiro
 
Loucamente (La pazza gioia), realizado por Paolo Virzì, é um filme que se move entre a comédia dramática e o road movie. A narrativa acompanha duas mulheres, Beatrice (Valeria Bruni Tedeschi) e Donatella (Micaela Ramazzotti), internadas numa comunidade terapêutica e instituição psiquiátrica na Toscana. As duas escapam da clínica numa fuga à procura da felicidade e que rapidamente se transforma num percurso de autodescoberta.
 
Paolo Virzi constrói uma narrativa onde a linha entre loucura e normalidade é constantemente posta em causa. A escolha do realizador em não estigmatizar as personagens, mas antes em humanizá-las, dá ao filme uma dimensão crítica ao que comummente entendemos como “loucura” e “normalidade”. Beatrice, com a sua tagarelice aristocrática, delírios de grandeza e conexões políticas imaginárias, contrasta com a introspectiva, depressiva e melancólica Donatella, marcada por um passado traumático. Juntas, formam um duo improvável, cuja cumplicidade cresce à medida que os segredos de ambas vêm ao de cima.
 
Mais do que uma narrativa bem-humorada sobre a doença mental, Loucamente é uma ode à empatia e, acrescentaria, aponta para a necessidade de “políticas da vulnerabilidade”, como defendido pela filósofa Marie Garrau que vê a vulnerabilidade como uma condição comum (condição colectiva) que precisa de respostas políticas justas e inclusivas, rompendo com a ideia liberal do indivíduo (e da sua pretensa autossuficiência). É um filme que desafia preconceitos, sublinha a importância do afecto e propõe que, por vezes, é no desvio à norma que reside a lucidez.
 
Visualmente, o filme mescla as cores vivas das paisagens italianas com o realismo poético de uma aventura na estrada (road movie). A câmara de Virzi, ora agitada, ora contemplativa, parece dialogar com o próprio estado mental das protagonistas: o mundo visto por elas é simultaneamente vibrante e dissonante.
 
A clínica psiquiátrica, apesar de acolhedora em aparência, simboliza um sistema de controle. Virzi faz eco à crítica institucional patente no clássico One Flew Over the Cuckoo's Nest (1975), de Miloš Forman, e pode nos remeter para os trabalhos de Michel Foucault, tal como História da Loucura (1978 [1972]) e O Corpo Utópico, Heterotopias (2013 [1966]) e O Nascimento da Biopolítica (2023 [1979]). Nos quais a loucura é tida como construção sócio-histórica e problema social e não como defeito individual ou mácula biológica. A reforma psiquiátrica italiana de 2015 (contexto em que este filme surge) alinha-se à crítica de Foucault às heterotopias e ao poder institucional. Ao fechar as Unidades de Saúde Mental (OPGs) e substituí-las por comunidades terapêuticas, a reforma procurou desmantelar espaços fechados de exclusão e de controle (“prisões”), enfatizando a reabilitação e a dignidade humana.
 
Assim, o filme problematiza o tratamento psiquiátrico, os paradigmas epistemológicos e os preconceitos sociais que o regem, visto como mecanismo de gestão biopolítica, ou forma de controlo repressivo, que expulsa os “indesejáveis” da pólis e os confina nas margens da sociedade. Embora, Loucamente não critique diretamente a reforma psiquiátrica de 2015, aborda temas que apontam para os desafios da transição do atendimento institucional para modelos comunitários. O filme destaca as complexidades do atendimento em saúde mental, incluindo o estigma social e a necessidade de medidas de apoio que contemplem dimensões individuais, políticas e sociais, preocupações cruciais que deveriam ter sido consideradas no contexto da reforma em psiquiatria como a italiana.
 
O realizador, ao centrar a narrativa do filme em duas mulheres internadas por questões que envolvem não somente o sofrimento mental, mas também a rejeição social, toca ainda noutro ponto essencial: a “patologização” do comportamento feminino. Beatrice é “louca” porque fala demais, sonha alto, é desajustada. Donatella carrega a culpa de uma maternidade fracassada e é punida com o isolamento. Ambas encarnam figuras femininas que, em vez de serem compreendidas, foram “silenciadas” e afastadas da sociedade. O filme mostra como o diagnóstico pode ser um modo de censura e “encarceramento” do desvio ao normativo e/ou ao ideal. Assim, a “loucura”, tida como desvio, surge como o nome que se dá ao “excesso” feminino num mundo de convenções e normas patriarcais.
 
Em suma, é através da amizade improvável entre Beatrice e Donatella que o filme propõe outra cura: a empatia. Neste sentido, Loucamente afasta-se dos estigmas vulgares da loucura, construindo uma visão afectiva e política da saúde mental. Trata-se de um cinema humanista, que não nega o sofrimento, mas o inscreve dentro de uma estrutura social composta por desigualdades sociais. 
 
 

domingo, 29 de junho de 2025

405ª sessão: dia 1 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


“Loucamente” de Paolo Virzi, esta terça no Lucky Star – Cineclube de Braga

Em Julho, o Lucky Star- Cineclube de Braga promove a alegria e a boa disposição (muito riso), com critério (muito siso), com a segunda edição do ciclo “Muito Riso, Muito Siso”, que reúne filmes de comédia clássicos e contemporâneos. As sessões deste ciclo ocorrerão, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30. 

Nesta terça-feira, 1 de Julho, o ciclo arranca com um filme de Paolo Virzi, Loucamente (2016). A história acompanha duas mulheres internadas numa instituição psiquiátrica – Beatrice (Valeria Bruni Tedeschi), excêntrica e aristocrata, e Donatella (Micaela Ramazzotti), jovem mãe marcada por um passado traumático. Ambas decidem fugir numa viagem inesperada por Itália. Uma fuga que se revela como um grito de liberdade contra a marginalização e o estigma associados à doença mental.

Estreado na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes em 2016, Loucamente (La pazza gioia) conquistou aplausos pela forma como alia humor, drama e crítica social. O filme valeu a Paolo Virzì o Nastro d’Argento de Melhor Realizador, além de arrecadar cinco prémios David di Donatello, incluindo Melhor Atriz (Valeria Bruni Tedeschi) e Melhor Cenografia. Em Cannes, embora fora de competição, foi calorosamente recebido pela crítica, consolidando o estatuto internacional do realizador. 

Virzì nasceu em Livorno, em 1964, e formou-se no Centro Sperimentale di Cinematografia, em Roma. A sua carreira começou como argumentista antes de se estrear na realização com La bella vita (1994). Desde então, construiu uma filmografia centrada nas tensões sociais e nas contradições da Itália contemporânea, com títulos como Ovosodo (1997), La prima cosa bella (2010) e Il capitale umano (2013), vencedor de sete David di Donatello e selecionado como candidato italiano aos Óscares.

Virzì concebeu Loucamente como um “road movie” que critica não só a reforma psiquiátrica italiana de 2015, mas também o sistema de saúde mental em geral. Para o realizador, o filme é ainda uma metáfora da “loucura essencial da Itália”, evidenciada pelo contraste entre a beleza das paisagens e a indiferença da sociedade.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. 

Até terça-feira!