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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Ogin-sama (1962) de Kinuyo Tanaka



por Alexandra Barros

No século XVI, o Japão vive um período de grande instabilidade política. Dividido em centenas de territórios feudais (daimiados[1]) o país está mergulhado em guerras entre dáimios[2]. O xogum Toyotomi Hideyoshi procura unificar o país, mas os dáimios convertidos ao cristianismo representam uma ameaça à hierarquia social tradicional, fortemente ligada à religião xintoísta e cuja figura suprema (equivalente ao “Papa” cristão) é o Imperador. 

Takayama Ukon, dáimio e samurai cristão, é um nobre ostracizado pelo xogum e tornado alvo da sua perseguição. Ukon mantém uma forte e longa amizade com Sen Rikyû, famoso mestre da Cerimónia do Chá, com quem estudou as sofisticadas artes do ritual. Nessa altura, conheceu Ogin, filha adoptiva de Rikyû. Ogin alimenta desde então uma intensa e obstinada paixão por Ukon, mas ele é casado e muito devoto. 

A história do amor proibido entre Ogin e Ukon é o fio condutor do filme, mas nessa história cruzam-se outras linhas: a própria História do Japão, questões de fé e a identidade e cultura nipónicas. Tal como em filmes anteriores, a presença de elementos culturais e históricos da sociedade japonesa não é mera decoração. É através destes elementos que a realizadora expressa reflexões, preocupações, posicionamentos e estados de alma, tanto das personagens como próprios. Aliás, Tanaka está entranhada nas mais notáveis personagens dos seus filmes. O que é da primeira derrama-se nas segundas; interligam- se, confluem, confundem-se. 

Em Para Sempre Mulher, filme que fechou o primeiro ciclo que dedicámos a Tanaka, a realizadora deu um lugar central à poesia tanka, estilo clássico da literatura japonesa. Agora, neste seu sexto e último filme, esse lugar cabe à Cerimónia do Chá, ritual de grande importância na cultura tradicional japonesa. Kinuyo Tanaka respeita os tempos da cerimónia e dedica grande atenção às suas particularidades: gestos, objectos, significados. Serve-se dessa tradição para colocar em confronto duas visões e formas de estar no mundo. De um lado, o humanismo, simplicidade e sintonia com as leis da natureza de Rikyû; do outro, o despotismo, crueldade, presunção e vaidade ostensiva do xogum. A opulenta sala de chá de ouro de Hideyoshi ou a escolha criteriosa de convidados para a cerimónia do chá de Rikyû são particularmente eloquentes. 

Senhora Ogin contém, além do olhar para a identidade nipónica, outros assuntos recorrentes nas obras da realizadora: a condição e (sobretudo) a sexualidade feminina, casamentos arranjados, romances proibidos, mulheres que recusam conformar-se às convenções sociais e procuram viver de acordo com as suas convicções ou vontade individual. Partilha ainda, com o já referido Para Sempre Mulher, a atenção aos detalhes e o simbolismo associado a objectos, gestos, lugares e paisagens. Além dos objectos envolvidos na Cerimónia do Chá, uma cruz e um leque expressam, em diversos momentos, sentimentos não verbalizados ou acções que adivinhamos, mas a que não assistimos. A cruz, que vemos inicialmente no pescoço de Ukon, será transferida pelo mesmo para Ogin, “amarrando-a” à abstinência sexual e à fidelidade aos mandamentos cristãos. Ogin, porém, reiteradamente rejeitada por Ukon, virá a arrancar violentamente a cruz do pescoço. Mais do que às boas-venturas celestiais, Ogin aspira à felicidade terrena. Mais tarde, uma outra cruz caída no chão, revelará o que Kinuyo Tanaka decide deixar fora de campo. 

Tal como os objectos, também a luz, as cores e os trajes estão carregados de forte simbolismo, espelhando emoções ou antevendo destinos. Visualmente, o filme é belíssimo: admiráveis cores e efeitos de luz, paisagens notáveis, jardins meticulosamente concebidos, interiores minimalistas sofisticadamente apurados, esplêndidos quimonos. 

O uso da luz é especialmente simbólico numa cena premonitória do filme. Ogin assiste ao “calvário” de uma rapariga, que será crucificada por não se ter submetido aos desejos de um dáimio. A serenidade que transparece no rosto da rapariga impressiona Ogin que, num momento de epifania, decide tomar o controlo do seu próprio destino. A morte de Cristo na cruz é denominada Paixão e é vista como um exemplo supremo de amor altruísta. Jesus escolheu voluntariamente sofrer e morrer na cruz para salvar a humanidade e reconciliá-la com Deus, seu Pai. Morte voluntária, paixão, e amor altruísta fecham a história de Ogin. Ela escolhe a morte para salvar o pai; para não se submeter a um homem que não deseja e que despreza; para se manter fiel a uma inabalável, ainda que impossível paixão. Ogin morre, enfim, sob o signo da sua audaz fúria de viver[3].

[1] Daimiado - território governado por um dáimio.
[2] Dáimio - Senhor feudal, possuidor de terras e líder de hostes militares. Os dáimios, sob a dependência do xogum, controlaram grande parte do território do Japão, num modelo de governo que se manteve vigente entre cerca do século X até à segunda metade do século XIX. (Fonte: infopedia.pt)
[3] Fúria de Viver – Filme de Nicholas Ray, já apresentado pelo Lucky Star, sobre um grupo de jovens à procura do seu lugar num mundo de grande violência física e psicológica e, principalmente, absurdo. Voltamos a este grande realizador no próximo mês, com um ciclo que lhe é inteiramente dedicado.



quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Onna bakari no yoru (1961) de Kinuyo Tanaka



por Estela Cosme

Como se pode escapar ao passado quando ele é ilegal? Como se pode refazer uma vida que o estado considera imoral? As mulheres que lideram o centro de reabilitação de Shiragiku parecem pensar que é através do trabalho árduo, submetendo as ex-prostitutas a tarefas domésticas e manuais que visam transformar as suas vidas, afastando-as assim da profissão que estão agora proibidas de exercer. A lei implementada em 1957 surgiu do boom que a atividade teve no Japão durante a Segunda Guerra Mundial, levando à pressão da sociedade para legislar medidas de proteção e reabilitação para as trabalhadoras, evitando a sua persistente exploração. Contudo, ao perder a sua única forma de sustento, estas mulheres não têm alternativa a não ser submeter-se a estes centros corretivos e aprender a distanciar-se de uma vida criminal. Mas a adaptação não é minimamente fácil pois fora do seu reformatório a sociedade continua a julgá-las e a desdenhar as suas tentativas de conversão. É Kuniko, a protagonista de Mulheres da Noite, quem descobre isso repetidamente, levando-a a um destino turbulento e amargo. 

A profissão mais velha do mundo é também aquela que mais dá que falar. Debatida pela sua moralidade (ou falta dela), não é de surpreender que seja retratada no cinema de forma tão variada, do mais banal ao mais sóbrio (isto quando não é adereço para as mulheres na vida de protagonistas masculinos). A romantização da prostituta Vivian em Um Sonho de Mulher (1990) e a glamourização de Satine em Moulin Rouge! (2001) em nada representam as realidades das profissionais do sexo. A inocente Iris de Taxi Driver (1976) existe quase apenas para alimentar o delírio do protagonista que decide salvá-la. Já Séverine de A Bela de Dia (1967) leva uma vida dupla, na qual encontra na prostituição uma libertação das suas fantasias sexuais e dos seus problemas matrimoniais. Bella Baxter no recente Pobres Criaturas (2023) vê na atividade uma continuação da sua exploração do mundo e do seu interior feminino. No anterior ciclo de Fassbinder, vimos como a protagonista de Lola (1981) aproveita a sua profissão para manipular as pessoas à sua volta. Quase todas elas apresentam algum grau de influência que as permite progredir social ou economicamente ou até ter algum proveito pessoal, romântico ou sexual. Perante estas representações ilusórias, as mulheres de Tanaka surgem como uma verdadeira antítese e talvez por isso seja um filme tão doloroso de presenciar, embora seja um antecessor a todos os aqui mencionados. 

Este filme foi escrito por Sumie Tanaka (adaptando um romance de Masako Yana) e certamente não será surpresa descobrir que também foi a guionista de Para Sempre Mulher (1955) de Kinuyo Tanaka, talvez o filme mais perturbador da realizadora até este. Todas as suas obras são centradas em mulheres, com vertente feminista, mas os dois filmes que fez com Sumie Tanaka são-no de forma mais vincada. Já tínhamos também assistido ao retrato de prostitutas em Carta de Amor (1953), mas este é apenas o ponto de partida para explorar o trágico romance entre os protagonistas. Certamente não é tão gráfico e realista na forma como retrata as trabalhadoras, sendo o seu contexto histórico muito diferente. Mulheres da Noite surge uns meros quatro anos após a implementação da lei anti-prostituição japonesa e tanto realizadora como escritora certamente detetaram uma urgência em retratar a nova realidade. O resultado é ferozmente comovente e talvez seja a lição mais empática que Tanaka nos ilustra. 

Kuniko não é uma personagem livre de defeitos. Afinal, ela reverte para os seus velhos costumes como forma de escapar à humilhação da sua primeira patroa, seduzindo sem remorsos o seu marido influenciável. Cansada de se esconder, no seu seguinte emprego decide assumir quem foi, uma honestidade que a aliena das suas novas colegas de trabalho. Kuniko rejeita os seus pedidos de prostituir-se e como tal vingam-se nela fisicamente. A violência ilustrada é de tal magnitude que se torna um tormento assistir à sua brutalização, sendo o momento de mutilação para além de agonizante. A agressão é ainda perpetrada por outras mulheres semelhantes a ela, que se julgam dignas de imputar e executar a Kuniko o castigo mais horrendo. Numa cena realizada de forma sucinta mas altamente eficaz, Tanaka roga-nos que não sejamos indiferentes aos infortúnios que acodem a mulheres como Kuniko. 

Já as cenas em que vemos Kuniko no seu terceiro emprego parecem etéreas, como se estivéssemos a ver outro filme, aliviados de ver Kuniko rodeada por filas e filas de flores na qual surge um novo amor, delicado e fugaz após tanto sofrimento. Contudo, é bom demais para durar e o passado volta a assombrá-la mais uma vez quando descobre que ela e o seu amado não podem casar, uma vez mais pelos seus crimes imorais. Por momentos pensamos que isto a levou a regredir para o lugar onde começou mas respiramos de alívio quando a vemos numa praia, com uma rede às costas, bem longe do seu passado, quer recente quer distante. Ela agora é uma ama, profissão japonesa de pescadores de pérolas e mariscos, uma humilde profissão para quem ainda anseia recomeçar outra vez. Esta é a sua quarta tentativa. 

Talvez seja aqui que o seu passado possa ser finalmente lavado, expurgado, um renascer assegurado como o sol que nasce todas as manhãs sobre o mar em que agora mergulha. Talvez aqui se aperceba que uma mulher tem sempre o poder de se reconstruir, uma e outra vez. E a vontade de uma mulher resiliente nunca ninguém pode ilegalizar.



sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Ruten no ôhi (1960) de Kinuyo Tanaka



por João Palhares

Três ideias na retina enquanto as semanas nos vão desafiando a sair de casa para às vezes fazer coisas que não temos grande vontade de fazer ou ouvir coisas que não queremos ouvir. “Podem dizer o que quiserem da ditadura, mas desde que eu tenha o meu dinheiro tanto me faz se vivo numa democracia ou numa ditadura.” O estado do mundo também não ajuda, os temas parecem invadir tudo e o facto de uma melodia nos dizer alguma coisa ou um plano nos deixar boquiabertos pode parecer para os outros a coisa mais insignificante do mundo. Uma das reacções possíveis talvez seja ir gritar “DARIO ARGEEEENTO!” para o meio da rua, só que convertidos nem vê-los. A ideia de que se partilha um segredo ou se vislumbra um mistério também pode ser suficiente, mas se calhar é um bocado perigoso. Por sabermos por exemplo que às vezes se anuncia cinema às segundas-feiras, mas o cinema infelizmente não sai à rua connosco. Por concordarmos ainda com Manoel de Oliveira, que quando foi acusado de reaccionário pelos colegas de profissão por se ter fechado num estúdio durante o 25 de Abril e ter feito Benilde, lhes respondeu que “o cinema revolucionário está atrasado em relação à revolução.”

O tema não é tudo. Quando as legendas não eram prática corrente e os filmes se viam na mesma, Jacques Rivette lembrou-se de escrever que Mizoguchi não era um nome próprio, mas sim uma “língua familiar. Qual? A única que almeja qualquer cineasta: a da mise en scène.” Um encadeamento de imagens, se trabalhado, pode ser suficiente para nos situar e nos fazer perceber certas coisas mesmo que não entendamos japonês, ou chinês, ou até italiano, espanhol ou inglês. Isto foi há sessenta e seis anos, portanto não é de admirar que hoje baste para um cineasta grego esquecer totalmente a sua língua, contratar actores americanos, ingleses, alemães e até fadistas portuguesas e pô-los a dizer as coisas certas com os planos errados para ser levado a sério e conquistar o mundo e os seus pares. É uma grande chatice, para quem nunca viu o filme, saber que houve um cientista que trocou o cérebro duma mulher pelo duma criança, que se fala de filosofia e de socialismo e que alguém morre no fim, porque o tema é tudo.

Mas felizmente as ideias, de alguma forma, vão passando. Wyatt Earp, vindo de nenhures como um pequeno ponto no horizonte, chega à cidade de Wichita. Apreensivo, aceita o cargo de xerife e proíbe o porte de armas nessa pequena cidade no oeste americano. Toda a história do filme nos é contada no genérico pela voz de Tex Ritter numa bela canção escrita por Hans Salter e Ned Washington, pelo que sabemos que as descobertas terão de ser outras. Entre mais de cem ideias, uma que fica: num dos momentos mais tensos do filme, Wyatt Earp sai de uma confrontação com um velho aliado que agora é seu inimigo e a esposa deste último segue Wyatt até à porta para ver se há hipóteses de reconciliação. Não há. Wyatt sai de casa deles e é atacado por homens a cavalo que disparam na sua direcção. Ele baixa-se e corta para um plano de uma porta crivada de balas. Num instante percebemos que a esposa morreu, noutro intuímos que quanto mais uma pessoa se arma e se protege e se encerra e se ressente maiores são as probabilidades de que o mundo lhe bata à porta e ela vá desta para melhor. É em Wichita, do grande Jacques Tourneur, e foi possível vê-lo no canal Fox Movies na tarde de dia 3 de Fevereiro de 2024.

Uma viúva paga os estudos da filha com o seu negócio de gueixas, o que causa um distanciamento triste e trágico entre as duas. Há um médico jovem por quem ambas se interessam até se conseguirem encontrar uma à outra. A certa altura, vêem os três uma peça. Entre possivelmente cem ideias, das quais fazem parte o labirinto dos sentimentos demonstrado no labirinto da casa que os três percorrem perto do final do filme e a apresentação da dita peça com um travelling para a frente que encontra os actores e um travelling para trás que encontra os três apaixonados, uma que fica: dois dos actores da peça falam de uma terceira, uma velha apaixonada, e apontam para ela dizendo, “olhem para ali. É a velha nos auges da loucura.” E não a vemos a ela, mas à viúva, num plano mais aproximado, e o teatro sai dos seus palcos para o teatro da vida através do cinema. É em A Mulher de Quem se Fala, do grande Kenji Mizoguchi, e foi possível vê-lo no auditório da BLCS na noite de 6 de Fevereiro de 2024.

Uma jovem japonesa é escolhida através de uma fotografia pelo irmão do imperador da Manchúria, sendo obrigada a abandonar a família e a casar com ele sem encontrar uma vida melhor ou propriamente imperial. O exército do império japonês controla tudo e tinha a esperança de que a jovem actuasse pelos interesses deles, mas ela acaba por se afeiçoar ao marido. Entre praticamente cem ideias, pois talvez não estejamos nas alturas de A Lua Ascendeu ou Para Sempre Mulher, mas das quais fazem parte o belíssimo prólogo do filme, depois o genérico com a jovem esmagada e siderada pelas imagens dos soldados que passam por ela e o final misterioso e poético em que as palavras obedecem a um tempo e as imagens a outro tempo, uma que fica: por um enquadramento pelos pés, que à primeira vista até pode ser confundido com uma dança inocente, vemos uma arma que cai e um corpo que se põe por cima dela em posição horizontal. As implicações tornam-se óbvias mesmo antes da princesa dizer, “Podes sempre morrer mais tarde, mas não abandones o teu imperador.” É em A Princesa Errante, da grande Kinuyo Tanaka, e será possível vê-lo hoje, dia 13 de Fevereiro de 2024, no auditório da BLCS.



quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Chibusa yo eien nare (1955) de Kinuyo Tanaka



por Alexandra Barros

Para que serve a poesia (e a arte em geral) e de onde vem? O que forma a nossa identidade? O que é ser mulher? O que é que nos faz felizes? Estas são questões centrais na história contada em Para sempre mulher

A mulher do título é Fumiko, personagem inspirada na poeta japonesa Fumiko Nakajo (1922-1954), nome grande da poesia tanka. Tanka é uma forma poética tradicional japonesa, caracterizada por poemas curtos, com uma estrutura específica de cinco versos e um total de 31 sílabas. Relativamente ao haiku, que é mais curto e mais focado na natureza, a poesia tanka permite uma expressão mais ampla de emoções e pensamentos pessoais. Geralmente, aborda temas como o amor, a natureza, a saudade e reflexões sobre a vida. É uma forma de poesia apreciada pela sua capacidade de transmitir, num formato conciso, sentimentos profundos e momentos emotivos. 

Para sempre mulher está povoado por diversos poemas tanka escritos por Fumiko. De acordo com a própria, descrevem realisticamente a sua história, tal como ela é. Para contar essa história Kinuyo Tanaka constrói as suas próprias “rimas” visuais e narrativas, como por exemplo: temas visuais recorrentes e pontos e contrapontos narrativos, onde cruza desvalorização e reconhecimento, prisão e liberdade, conquistas e perdas, amores e desamores. 

Ponto: Fumiko aguenta-se num casamento infeliz, por dever de respeito pelas convenções sociais. Contraponto: As suas agruras tornam-se a matéria da sua poesia. Ponto: Fumiko ama um outro poeta, Taku, mas não é correspondida. Contraponto: Taku, no entanto, admira a sua poesia e consegue que ela seja publicada numa revista reputada. Ponto: Fumiko divorcia-se. É-lhe descoberto um cancro da mama e perde os seios para se salvar. Essa perda assegura a sua liberdade, pois sabe que não sofrerá pressões para se voltar a casar. Contraponto: Por ter deixado de se sentir mulher, sente-se perdida como artista. Ponto e contraponto: Perde a vontade de escrever, na época em que vê o seu trabalho reconhecido e aclamado. Ponto e contraponto: A doença traz até si um jornalista de Tóquio que admira a sua obra, Ôtsuki. Com esse encontro, conhece finalmente a ventura de uma paixão correspondida e vive os dias mais felizes da sua vida, apesar de sentir a morte a aproximar-se velozmente. 

Recorrências, paralelismos e oposições: 
- Os triângulos
a) O triângulo das relações sentimentais de Fumiko: o marido que não ama e por quem não é amada; Taku, o amigo a quem devota o seu amor, mas perde inesperadamente, devido a morte súbita; Ôtsuki, o seu amante sem futuro, com quem inicia uma apaixonada relação quando a doença já a conduz irremediavelmente para a morte. 
b) O triângulo que “causa a doença” de Fumiko: Fumiko ama secretamente Taku, que é casado com Kinuko, sua grande amiga. 
- O espelho 
O que lhe devolve o espelho em diversos momentos do filme? O seu corpo doente; a amiga cujo lugar desejaria ocupar; o amante. 
- Conquistas e perdas 
Quando perde os seios, Fumiko conquista a liberdade para ser quem quer, mas simultaneamente é devastada pelo sentimento de perda de identidade. 
- Os banhos 
Dois banhos são preparados por Kinuko: o primeiro para o seu marido; mais tarde, prepara um segundo para a amiga, que vem a confessar ter desejado banhar-se na mesma banheira que Taku. 
- A doença 
Fumiko acredita que a doença é um castigo pelo seu amor imoral por Taku, mas é a doença que trará até si um admirador que a venera e a sua única paixão correspondida. 
- Os medicamentos 
Fumiko reprovava o marido por tomar medicamentos com efeitos danosos. Implora-os nas noites de insónia. 
- As mãos 
No hospital, Fumiko estende as mãos vazias, ansiando por comprimidos que aliviem o seu extremo sofrimento. Mais tarde, nas suas mãos sem vida é colocado um telegrama anunciando a chegada ansiada do amante. 
- O corredor 
Fumiko percorre um corredor do hospital e descobre com horror que conduz à morgue. Mais tarde, os filhos fazem o mesmo percurso acompanhando o corpo sem vida da mãe. 
- As grades 
As grades do quarto de hospital são semelhantes às grades da morgue, destino anunciado na altura em que Fumiko vive a vida mais intensamente, sentindo-se realizada como artista e como mulher. 
- Os seios 
Os seios perdidos de Fumiko são evocados pelos montes que enquadram o lago onde os filhos lançam flores em sua homenagem. 

Pelas paisagens ou estados da natureza que ecoam emoções e formas humanas, pelos poemas curtos sobre o quotidiano, pela forma como os poemas surgem sobrepostos nas cenas, e também pelo encontro do protagonista com um poeta japonês, ocorreu-me que Paterson, de Jim Jarmusch, poderá ter em Para sempre mulher uma das suas fontes de inspiração. Em todo o caso, Para sempre mulher é um filme intemporal e universal. A realização pessoal e o reconhecimento artístico, os conflitos morais, os males e bonanças do amor são temas que pertencem a qualquer tempo e lugar. Para sempre, Kinuyo Tanaka!



quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Tsuki wa Nabarinu (1955) de Kinuyo Tanaka



por António Cruz Mendes

Kinuyo Tanaka produziu e interpretou vários filmes de Yazujiro Ozu e a influência deste grande mestre do cinema japonês é bastante evidente nesta segunda realização de Tanaka. Podemos percebê-la, por exemplo, nos enquadramentos das cenas de interior, estudados ao pormenor, como se fossem quadros de uma pintura clássica, e filmados por uma câmara quase fixa, postada rente ao chão. Contudo, seria injusto vermos a realizadora deste belíssimo filme, simultaneamente poético e teatral, que denota já uma assinalável maturidade estética, como uma mera epígona de Ozu. 
 
Uma componente feminista será um dos seus traços distintivos. “Para mim”, diz-nos Kinuyo Tanaka, “o período da guerra (1939-45) foi como se tivéssemos caído num buraco. E para sair desse buraco, convenci-me de que seria necessário que as mulheres tomassem o comando, a começar pelo comando do cinema”. Vemos essas mulheres em Carta de Amor e vamos vê-las em A Lua Ascendeu e Para Sempre Mulher, como prostitutas, amantes ou poetisas. Vão ser elas as protagonistas dos filmes de Kinuyo Tanaka. São elas que apontam os caminhos da modernidade num Japão onde o peso de tradições ancestrais ainda se continuava a fazer sentir na condição feminina.

A própria Kinuyo Tanaka protagonizou este movimento de emancipação, particularmente a partir do momento em que decidiu afirmar-se como realizadora. 

Como actriz, tinha já uma longa carreira, onde se incluem quinze filmes sob a direcção de Mizoguchi. Entre eles, o notável Contos da Lua Vaga. Foi, aliás, depois dessa experiência que Kinuyo Tanaka decidiu experimentar passar para o outro lado da câmara, o que mereceu a oposição de outros realizadores, do seu marido e mesmo de Mizoguchi que se recusou a escrever a carta de recomendação indispensável para a sua inscrição no sindicato dos realizadores japoneses. Essa recomendação obteve-a ela de Keisuke Kinoshita, o autor de Balada de Kinoshita (1948), que também lhe cedeu o argumento para Carta de Amor. Mizoguchi, pelo contrário, mesmo depois da realização deste seu primeiro filme ter sido selecionado para a edição de 1954 do Festival de Cannes, no final da rodagem de O Intendente Sansho, quando ela lhe comunicou a sua intenção de realizar um outro, terá replicado: “Deixa-te disso. Não vale a pena”. 

O seu conselho não foi escutado. Kinuyo Tanaka obteve, então, o apoio de Ozu, que lhe ofereceu o guião de um filme que ele próprio não pôde realizar, A Lua Ascendeu, e que abordava temas que lhe eram caros: o relacionamento entre pais e filhos, o casamento e a emancipação feminina, e que Tanaka vai tratar de uma forma exemplar. 

O filme é uma comédia romântica onde as três personagens femininas personificam três diferentes atitudes face ao amor que, de certa forma, espelham diferentes atitudes políticas perceptíveis no Japão do pós-guerra. Aparentemente, Chizuru encontra-se ainda presa a uma memória passada e Ayako encerra-se no presente, adoptando uma atitude expectante. Só Setsuku toma nas suas mãos a tarefa de construir o futuro. De facto, todas elas sonham com uma nova vida, algo distante, fora de cena, que Setsuku identifica com Tóquio, contraponto de Nara, antiga capital do Japão, agora uma pequena povoação parada no tempo, onde vive com a sua família. 

Mokichi Asai é interpretado por Chishu Ryo, um dos actores favoritos de Ozu e Kinuyo Tanaka faz a figura de Chizuru. Mas, de facto, quem personifica aquele anseio de viver e de ser capaz de decidir da sua própria vida, de trilhar novos caminhos sem temer desafiar velhas convenções que podemos reconhecer na biografia da realizadora, a “mulher que toma o comando”, vencendo as hesitações dos homens aqui representados por Shôji, é Setsuku (Mie Kitahara), a mais nova das três irmãs. No final, banhado pela lua que ascende no céu, o amor triunfa e novos horizontes se abrem diante das filhas do sr. Asai.



domingo, 19 de novembro de 2023

Koibumi (1953) de Kinuyo Tanaka



por António Cruz Mendes

Carta de amor é um melodrama construído sobre um tema político apresentado de uma forma quase subliminar. O contexto da narrativa é o do pós-guerra. Depois dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki, o Japão rendeu-se e foram colocados sob a dominação dos EUA. A continuidade do Imperador apenas foi tolerada por ele ter renunciado a todos os seus poderes e, à humilhação da derrota militar e de um poder político tutelado por estrangeiros, somou-se o impacto cultural da presença americana que ameaçava as antigas tradições culturais que conferiam uma identidade própria ao orgulhoso Império do Sol Nascente. 

Recusando as transformações sociais que na sequência disso ocorreram, Yukio Mishima, o renomado autor de O Templo Dourado, suicidou-se em 1970, praticando o ritual do seppuku (mais conhecido entre nós por haraquiri), depois do falhanço de uma quixotesca tentativa de golpe de militar que teria como objectivo restaurar o antigo poder imperial. No filme de Kinuyo Tanaka, o velho Japão rebaixa-se na figura das prostitutas que se vendem aos soldados americanos e Reikichi, um soldado desmobilizado, ganha a vida escrevendo-lhe as “cartas de amor” que elas lhes dirigem para conseguirem sacar-lhes mais algum dinheiro. O seu irmão montou uma banca onde vende a American Home e outras revistas americanas em segunda mão. E é neste contexto que Reikichi, que vive só e amargurado por ter visto o seu grande amor preterido por um casamento de conveniência e depois de cinco anos de separação, finalmente reencontra a sua amada para ficar a saber que, também ela, depois de enviuvar, passou a viver dos donativos de um soldado americano de quem teve um filho. Um soldado que, diz-lhe ele, podia ter sido aquele que matou o seu marido. 

O filme resolve-se, portanto, neste conflito íntimo vivido por Reikichi, entre o seu amor por Michiko e a repugnância que lhe suscita a sua “traição”. Em paralelo, a partir de um longo flash back, conhecemos a história de Michiko, do seu amor, sempre adiado, por Rekichi e das razões que explicam as suas difíceis opções. 
 
Carta de amor é, como já se disse, o primeiro filme realizado por Kinuyo Tanaka. Porém ele denota já uma grande maturidade. As sequências do reencontro e a da separação de Reikichi e Michiko são belíssimas, e a montagem alternada da sequência final oferece-nos uma emotiva, mas sóbria e elegante conclusão. Aliás, a relação de Kinuyo Tanaka com o cinema é muito anterior à sua experiência como realizadora. Antes disso, já ela se tinha destacado como actriz e, como produtora, tinha sido responsável por vários filmes dos grandes mestres do cinema japonês, Kenji Mizoguchi e Yasujiro Ozu. Depois de Carta de Amor, realizou ainda mais cinco filmes que, agora, por feliz iniciativa da distribuidora The Stone and the Plot, foram finalmente exibidos em Portugal. De Kinuyo Tanaka, o nosso cineclube exibirá, ainda, nas duas próximas sessões, A lua ascendeu e Para sempre mulher.