por António Cruz Mendes
Nas condições de que dispomos, não vai ser possível tirar todo o partido do cinemascope… Mas isso não nos vai impedir de confirmar ser este, “provavelmente, o mais comovente dos filmes de Ray”, tal como nos diz a sinopse do Público que transcrevemos.
Personagens emocionalmente fragilizadas, perdidas num mundo que lhes é estranho, um mundo regido por normas a que não se adaptam nem entendem, estão presentes em muitos filmes de Nicholas Ray e, desde logo, na sua primeira obra, They Live by Night, a história de dois jovens enamorados, perseguidos pela polícia.
Nos Estados Unidos, os anos 50 foram uma época de prosperidade económica. Nasceu, então, uma nova cultura protagonizada por jovens que puderam prolongar os seus estudos e que, dotados de um poder de compra antes desconhecido e livres da necessidade de trabalhar, procuram a sua própria identidade em conflito com a geração dos seus pais, ainda presos à moral puritana ainda dominante.
Em Fúria de Viver, o fosso geracional que separa Jim, Judy e Plato das suas famílias torna-se evidente logo nas primeiras sequências e dele resulta um sentimento de insegurança que os três tentam compensar com comportamentos desafiantes. Numa das primeiras sequências do filme, todos eles se encontraram detidos por delitos menores numa esquadra da polícia.
Jim procura no pai, submisso perante a fria autoridade da mãe e da avó, um apoio que ele não lhe consegue dar; Judy deseja do seu pai um amor que este repele; e Plato, que já não tem pai, viu-se abandonado pela mãe no dia do seu aniversário. As suas vidas decidir-se-ão num drama que se concentra em 24 h, entre duas cenas nocturnas, e que se desenvolve em três momentos fundamentais: o primeiro é o do planetário; o segundo, o da “chicken run”; e o terceiro, o da casa abandonada.
Uma mordaz ironia está presente na sequência do planetário. Confrontados com a vastidão do universo, com o fim inevitável da Terra, os jovens são confrontados com a insignificância cósmica da vida humana. Mas, isso não impede que um grupo de outros “rebeldes sem causa”, chefiado por Buzz, preocupado em “marcar território” e em defender a sua ascendência sobre Judy do eventual rival recém-chegado, desafia Jim para uma luta com navalhas. A pequenez das vaidades bairristas sobrepõe-se à imensidão do cosmos.
Embora não o deseje, a sua ideia de masculinidade obriga Jim a aceitar o desafio da corrida em direcção ao abismo que decidirá qual deles, Buzz ou Jim, é um medricas. “Medricas” é um qualificativo que ele não pode aceitar porque se identifica com a odiada pusilanimidade que ele reconhece no pai. E, apesar de Jim perceber o seu absurdo, a corrida, arbitrada por Judy e iluminada pelos faróis de duas fileiras de carros, realiza-se – e acaba em tragédia.
Contra a vontade da família, Jim quer assumir a sua responsabilidade na morte de Buzz, mas a sua generosidade esbarra na indiferença da burocracia policial. Na casa abandonada, Jim, Judy e Plato, encontram, então, um refúgio. Um mundo só seu onde a paz e a amizade parecem, finalmente, ser possíveis. No exemplo de Jim, Judy descobre o amor e Plato, a figura paterna por que ansiava. Encenam uma família e brincam como crianças que, afinal, nunca deixaram de ser. Contudo esse mundo a fingir vai ter de se confrontar com a violência, os ódios e os medos que imperam na realidade.
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