por João Palhares
O livro em que se basearam O Anjo Azul de Josef von Sternberg, O Anjo Azul de Edward Dmytryk, Pinjra de Shantaram Rajaram Vankudre, Anjo Loiro de Alfredo Sternheim e este Lola de Rainer Werner Fassbinder, foi publicado em 1905 e foi escrito por Heinrich Mann, irmão mais velho de Thomas Mann. Chama-se “Professor Unrat ou O Fim de um Tirano” e só em Fevereiro do ano passado foi traduzido e publicado entre nós pela E-Primatur, sendo aliás o primeiro e único romance de Heinrich Mann editado em Portugal. Não foi oficialmente banido na Alemanha, mas recebeu muitas críticas negativas e circulou apenas em meios intelectuais até finais dos anos vinte. Em 1933, três anos depois de ter sido adaptado ao cinema pela primeira vez, certamente por criticar as classes altas e os poderosos, e certamente por o seu autor ter assinado com Albert Einstein e outros escritores, políticos e cientistas um apelo à unidade para impedir os nazis de subir ao poder, o livro foi um dos muitos queimados em Berlim numa campanha iniciada por estudantes alemães com o apoio de Joseph Goebbels.
O romance de Mann é sobre o professor que lhe dá o título, embora “Unrat” seja uma alcunha que os alunos lhe dão e signifique “esterco”. Com algum poder nas suas salas de aula, o professor Raat atormenta os seus alunos por viver em grande frustração. É viúvo, tem 57 anos, tem um filho que deixou de ver e já deve ter dado aulas a grande parte dos habitantes da sua pequena cidade, que o desprezam como ele os despreza a eles. A dada altura na estória, encontra um poema escrito por um dos alunos dirigido a uma certa menina Rosa Fröhlich, que localiza num bar chamado Anjo Azul. Ele quer repreendê-la e impedi-la de corromper os seus alunos, dizendo-lhe até para abandonar a cidade no dia seguinte, mas acaba por ser seduzido e apaixonar-se perdidamente por ela. No final, depois de algumas peripécias, ele é despedido, fica sem dinheiro, ela engana-o e, depois do professor a tentar estrangular e roubar um antigo aluno que se oferece para lhe pagar as dívidas, Raat e Rosa acabam na prisão.
Isto será o essencial do livro de Mann, que não li mas gostava muito de ler. Tendo como base as adaptações de Sternberg e de Fassbinder, parece-me que nenhum faz justiça ao potencial deste esquema de acontecimentos, e conhecendo as obras dos dois, é pena, porque lhes cairiam como uma luva. Mas o filme de Sternberg, primeiro dos sete que fez com Marlene Dietrich, é o pior da série e sofre imenso por ser sonoro, na altura uma novidade e um empecilho para alguns actores e realizadores, que se viam de repente com instrumentos muito rudimentares para criar obras com toda uma outra linguagem. O lado tirânico do professor, interpretado por Emil Jannings, não parece de todo evidente e surpreendemo-nos com o final terrível e sádico que lhe é destinado. De resto, os primeiros dois terços do filme são muitíssimo enfadonhos e só se entende a perenidade desta obra pela iconografia em torno de Dietrich (principalmente nos números musicais) e os primeiros passos da sua fama como estrela em Hollywood.
O filme de Fassbinder não faz melhor. O professor Unrat, aqui o inspector de obras Van Bohm, é durante praticamente todo o filme respeitado ao mais altíssimo grau por todos os habitantes da cidade, que não é a sua, centrando-se agora a estória na sua luta perdida contra a corrupção durante o pós-guerra na Alemanha e caindo a sua relação com Lola para segundíssimo plano, não se notando nele essa paixão capaz de o perder e degradar para todo o sempre. Estranho para um filme chamado “Lola” e estranho para um filme de Rainer Werner Fassbinder. As cores são fabulosas, não haja dúvida, mas a crueldade e a raiva do alemão que fez As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, O Direito do Mais Forte à Liberdade, Martha e Lili Marleen, são substituídas por um cinismo pálido e calado que não me convence. No interior de uma obra de mais de quarenta longas-metragens, realizadas num período de quinze anos entre mil outros afazeres, talvez seja normal, e talvez seja a razão por que outros se destaquem antes e depois, por tentativa, erro e ensaio e sem as ambições desmedidas, excessivamente auto-conscientes e completamente irrealistas em relação à “obra” que tem por exemplo um Quentin Tarantino.
E por isso me parecem acertadíssimas e não resisto a partilhar as palavras de Miguel Marías num obituário que escreveu sobre Fassbinder em 1982, belo guia para a descoberta da obra do cineasta alemão em que diz que “se as minhas contas não falham—e não tenho a certeza—, Fassbinder fez 42 longas-metragens ou séries—para o cinema ou para a televisão, em vídeo ou em suporte químico—e quatro curtas. A segunda destas, rodada em 1966, sugeriu-me o título deste comentário: O Pequeno Caos, suponho eu, é a ideia que o seu autor tinha da vida; também é a sensação que a obra de Fassbinder produz naquele que escreve estas linhas, porque nela se combinam, na mais assombrosa das promiscuidades—em poucos meses, com a mesma equipa, baralhando elementos temáticos e dramaturgias semelhantes—, o melhor e o pior que conseguiu dar o cinema dos últimos quinze anos (a sua primeira longa data de 1969). De todos esses quilómetros impressos—e às vezes impressionantes para o espectador—, dos milhares de minutos montados que a sua obra supõe, não vi mais que 18 longas e o episódio, autobiográfico, de Alemanha no Outono (1978), e nessa porção—que não chega a metade—há realmente de tudo: acho detestável a sua adaptação de Nabokov, A Segunda Dimensão (1978), irritantemente nulos, Satansbraten (1976) e In einem Jahr mit 13 Monden (1978); falhado, Lola (1981); desprovidos de interesse, Os Deuses da Peste (1970) e Roleta Chinesa (1976); ao mesmo tempo que me parecem extremamente interessantes o seu contributo para Alemanha no Outono—de uma sinceridade e de um impudor que admiram e assustam—e Amor e Preconceito (1974); apaixonantes, Porque Corre o Sr. R. Amok? (1970), O Mercador das Quatro Estações (1971), As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972), O Direito do Mais Forte à Liberdade (1974), Mamã Küsters Vai Para o Céu (1975), A Mulher do Chefe da Estação (1977), O Casamento de Maria Braun (1978) e Lili Marleen (1980), e geniais—terríveis, comoventes, lúcidos e generosos—O Medo Come a Alma (1973), e a filmagem em vídeo—sinuosos e acusadores movimentos de câmara, magistral utilização do espaço cénico e da decoração, aproveitando a textura visual peculiar do material utilizado, com uma direcção de actores quase tão prodigiosa como a de Dreyer em Gertrud—, da sua encenação de “Casa de boneca”, de Herik Ibsen, o «teledrama» Nora Helmer (1973).”
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