por António Cruz Mendes
Fassbinder morreu em 1982, com 37 anos. Nesse curto espaço de vida, realizou quarenta e três filmes, sendo um deles “Berlin Alexanderplatz”, a série cinematográfica com a duração de mais de quinze horas que adapta para a televisão o famoso romance de Alfred Döblin. No quadro dessa
extraordinária actividade criativa, não é simples identificar um estilo que o defina. Os seus filmes podem variar entre um barroquismo estético e uma extrema depuração, assumir códigos de representação próximos dos do teatro, ou serem mais convencionalmente cinematográficos. Contudo, confere-lhes uma coerência própria o facto da Alemanha se encontrar sempre no centro da sua atenção. “Espero viver o suficiente para realizar umas dezenas de filmes que retratem a Alemanha, tal como a vejo, na sua globalidade”, afirmou. E, ainda numa entrevista ao Le Monde: “”procuro-me na história do meu país, porque sou alemão”.
Nessa busca, o passado nazi não poderia ser ignorado e Lili Marleen foi o seu primeiro filme onde esse tema ocupou um lugar central. Trata da história de um amor proibido, mas, sobretudo, da história de uma canção e coloca-nos diante de uma questão central: na Alemanha, diante do nazismo e da guerra a neutralidade seria possível? O tema é particularmente sensível por causa da pretendida inocência do povo alemão, tão reclamada nos anos do pós-guerra. Uns apenas cumpriram ordens e os outros, simplesmente, nada sabiam do que se passava à sua volta. E, rapidamente, se lançou um manto de silêncio sobre o assunto.
Neste sentido, de certa forma, Willie, personifica a Alemanha. Para ela, o nazismo e a guerra são realidades distantes e, afinal, “Lili Marleen”, que nos fala dos soldados que, nos seus aquartelamentos ou na frente de batalha, sonham com o dia em que voltarão a reencontrar as suas amadas, é apenas uma canção... O próprio Goebbels a deprecia por não estimular o “espírito patriótico alemão”. Para ele, ela é
apenas “uma tolice com cheiro a morte”. E, no entanto, torna-se uma espécie de hino que todos conhecem, alimenta o moral das tropas e, portanto, a sua disposição combatente. O próprio Hitler o admite e o sucesso de “Lili Marleen” vai ser o sucesso de Willie. Abrem-se-lhe as portas de acesso às altas esferas do regime e o seu deslumbramento é evidente. Finalmente, diz-nos ela, “tive sorte na vida”. Numa sequência fabulosa, sobre si, no palco, caem flores, enquanto no campo de batalhas, as bombas caem sobre os soldados. Ao glamour da sua vida artística contrapõe-se a sordidez e a violência da guerra, mas as duas realidades são inseparáveis.
Para Willie, “Lili Marleen” é sinónimo de fama e de riqueza; para os soldados alemães, a promessa de dias melhores; para Robert, encerrado numa pequena cela, obrigado a ouvi-la a toda a hora, dias e noites sem fim, é um instrumento de tortura; depois da descoberta da relação de Willie com um judeu e da falsa denúncia da sua morte, é usada como instrumento da propaganda dos Aliados; e, finalmente, para Taschner, o seu pianista, remetido para o inferno da “frente Leste”, ela vai ser a armadilha que o conduzirá à morte. Afinal, quantos usos pode ter uma inocente canção de amor?
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