sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Martha (1974) de Rainer Werner Fassbinder



por João Palhares

Antes de Rainer Werner Fassbinder, o alemão que viveu 37 anos e durante os quinze que durou a sua curta carreira realizou mais de quarenta filmes, encenou mais de vinte peças e fez duas séries para a televisão, já vários realizadores tinham adaptado obras do escritor americano Cornell Woolrich, como Jacques Tourneur em O Homem Leopardo (1943), que adaptava “Black Alibi”, Robert Siodmak em Phantom Lady (1944), já exibido por nós em 2016 e que adaptava o livro homónimo de 1942, Mitchell Leisen em No Man of Her Own (1950), que adaptava “I Married a Dead Man”, ou Alfred Hitchcock em Janela Indiscreta (1954), que adaptava o conto “It Had to be Murder”, além de François Truffaut em A Noiva Estava de Luto (1968) e A Sereia do Mississipi (1969), que adaptavam respectivamente os romances “The Bride Wore Black”, o seu primeiro policial, de 1940, e “Waltz into Darkness” de 1947. 

Cornell Woolrich nasceu em 1903, vivendo com o pai no México e com a mãe em Nova Iorque depois destes se separarem quando era ainda muito jovem. Inscreveu-se na Universidade de Columbia, mas saiu antes de se licenciar quando conseguiu publicar o seu primeiro romance, “Cover Charge”, primeiro de uns poucos que escreveu durante os anos vinte e trinta inspirados no trabalho de F. Scott Fitzgerald e nos chamados “loucos anos vinte”. Com o segundo, “Children of the Ritz”, venceu um concurso organizado pela revista College Humor e pela First National Pictures, que o contratou para trabalhar como argumentista em Hollywood. Foi em Los Angeles que explorou a sua homossexualidade, enquanto estava casado com Violet Blackton, filha de um produtor de cinema que terminou tudo com ele quando descobriu um diário em que Woolrich descrevia os seus encontros. Sabe-se que vestia um uniforme de marinheiro, que escondia numa mala, e saía à noite para a zona portuária. 

Em 1932, mudou-se com a mãe para um apartamento no Hotel Marseilles, no Harlem, cuja fauna de ladrões, prostitutas e marginais o terá certamente inspirado e assombrado durante anos. Foi nessa altura que começou a escrever contos para revistas de género policial como a Ellery Queen’s Mystery Magazine, a Black Mask, a Detective Magazine, a Double Detective, a Shadow Mystery Magazine ou a Dime Detective Magazine. Escreveu tantas histórias que teve de usar pseudónimos, como William Irish e George Opley. Entre nós, foram publicados “A Noiva Vestia de Negro”, “A Mulher Fantasma”, “Vingança Diabólica”, “A Serenata do Estrangulador”, “O Anjo Negro”, “Valsa Sombria”, “Ronda nas Trevas”, “A Intrusa”, “Noite de Angústia”, “O Autocarro sai às Seis” e “A Cortina Negra”, entre títulos da Colecção As Maiores Obras de Mistério e Acção, da Colecção Vampiro, da Colecção Rififi e da Colecção Caminho Policial de Bolso, mas principalmente da Colecção Xis, da Editora Minerva, que editou oito obras de Woolrich. 

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“Era num crepúsculo de Maio, à hora de todos os encontros,” lê-se mesmo no início de “A Mulher Fantasma”, o no 38 da Colecção Vampiro. “Hora a que a metade da população menor de trinta anos penteia os cabelos para trás, deita uma olhadela à carteira e se apresta jovialmente para aquele encontro marcado. Entretanto, a outra metade da população, também menor de trinta, empoa o nariz, enverga uma toilette especial e arranja-se para ir ao mesmo encontro. Para onde quer que se olhasse, viam-se as duas metades da população reunir-se. Em cada esquina, em cada bar e restaurante, à porta de farmácias, nos vestíbulos dos hotéis e sob os relógios das joalharias, em cada ponto de referência havia alguém que tinha chegado primeiro. Repetiam-se as velhas frases, tão gastas mas sempre novas. 

- Aqui estou. Há muito tempo que esperas? 

- Estás linda! Onde vamos? 

Pois era uma dessas noites. Para o ocidente, o Céu estava de um lindo vermelho, como se se houvesse preparado também para um encontro; ornara-se de algumas estrelas à guisa de broche de diamantes, fechando o decote do vestido de gala. Os tubos de neon começavam a piscar pela rua fora, «flirtando» com os transeuntes como tudo o mais; buzinas de automóveis grasnavam e toda a gente ia tomando rumo, todos ao mesmo tempo. O ar não era apenas ar, era champanhe atomizado, com um ligeiro sopro de Coty para completar, e subia à cabeça de quem não tomasse cautela. À cabeça ou ao coração.”

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Não é nada surpreendente que Fassbinder se tenha interessado em algum momento na obra de Woolrich, apesar de negar ter pensado na história quando escreveu o guião[1]. Woolrich era um homossexual não confessado, cheio de sentimentos de culpa que o levaram ao consumo abusivo de álcool e à maior das tristezas[2], que nunca criou uma personagem homossexual em qualquer das suas histórias mas que dinamitou em todas as instituições do amor e do casamento como a sociedade e a cultura as instituíram. São lampejos de revolta encarnados por “mulheres fantasma” ou homens acossados, sedutoras experimentadas e proletários desesperados, jovens passivas e inocentes e libertinos sádicos. E que são verdade e acontecem, quem se comanda pelo que querem os outros normalmente não tem bom fim, quem foge a todo o custo do passado acaba por encontrá-lo ao dobrar duma esquina.

Martha é um filme cruel, como pode ser a vida para alguns, e que estende por vezes para lá do suportável o sofrimento da sua heroína. Enquadramentos que a esmagam não faltam, daqueles que a sufocam quando solta os seus gritos desesperados com a mão direita à frente da cara àquele terrível com o marido e o gato no topo das escadas e ela em baixo confusa e apreensiva, passando ainda pelos da estufa em que fuma e lê e os das sombras das chamadas telefónicas. Intempestivo, este alemão que se imagina a filmar como surge em Kamikaze 1989, a arrombar dezenas de portas de pistola na mão, a levar actores e projectores e obturadores ao limite para ser fiel ao campo de batalha da emoção descrito por Samuel Fuller e que também foi o seu durante quinze anos e cinquenta e quatro filmes.

[1] Foram os responsáveis pelo acervo de Cornell Woolrich que obrigaram Fassbinder a partilhar crédito com o escritor norte-americano, sob ameaça de processos legais. E a verdade é que as histórias são muitíssimo parecidas, da estrutura e da narração ao animal morto, que no livro é um cão, e ao final, que também envolve um acidente de carro e condena a heroína a uma cadeira de rodas. 
[2] “Tentei apenas despistar a morte. Tentei apenas superar por um bocado as trevas que soube toda a vida e com toda a certeza que iam entrar um dia dentro de mim e obliterar-me.” Palavras escritas por Woolrich e encontradas num fragmento entre os seus manuscritos e papéis.



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