quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Vanitas ou O Outro Mundo (2004) de Paulo Rocha



por António Cruz Mendes
 
O tema da “Vanitas”, muito glosado na pintura do século XVII, remete-nos para uma passagem do Eclesiastes – “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade…” – que se refere à futilidade das ambições humanas e à transitoriedade dos prazeres terrenos. Perante a inelutável vitória da morte, só a possibilidade de alcançar a vida eterna num paraíso celestial nos deveria preocupar. As naturezas-mortas onde esse tema é glosado, têm uma iconografia bem conhecida: dispostas em mesas por vezes revestidas por luxuosos tecidos, vêm-se belas flores que começam a murchar, apetitosas frutas já parcialmente descascadas e que evidenciam os primeiros sinais de apodrecimento, joias que adornam caveiras, ampulhetas onde a areia da campânula superior já se esgotou, o toco de uma vela cujo pavio já não arde… Na época hedonista em que vivemos, esse tema, ainda que despojado das suas conotações religiosas, ressurgiu na obra de muitos artistas contemporâneos. Encontrámo-lo, por exemplo, na caveira incrustada de brilhantes de Damien Hirst ou no tríptico “Vanitas”, encomendado a Paula Rego pela Gulbenkian.
 
A beleza e a morte perpassam também todo o filme de Paulo Rocha. Desde logo, na primeira sequência, quando uma modelo, vestida de negro, soçobra e é retirada em braços da passerelle sob os aplausos da assistência. Vanitas ou O Outro Mundo é um filme barroco e João da Silva Melo, que sobre ele escreveu uma “Folha da Cinemateca”, chama-nos a atenção para a “esplendorosa cor que, na sua sabedoria prática, Paulo Rocha recolheu ao mais velho Ticiano” e para os movimentos de câmara “a escapar-se, descentrada das personagens”, que nos fazem lembrar as perspetivas fugidias de um Tintoretto. Entre o Vanitas de Paulo Rocha e as “Vanitas” daquela época, existe um parentesco evidente.
 
Contudo seria muito redutor olhá-lo como uma mera variação sobre um tema inspirado nas palavras do Eclesiastes. Ele é, antes de tudo, e depois de O Rio do Ouro (1998) e de As Sereias (2001), um regresso de Paulo Rocha ao Porto e às suas memórias de infância. As festas do S. João, o cemitério do Prado do Repouso, a decrépita fábrica das Moagens Harmonia colada ao nasoniano Palácio do Freixo, a Capela do Senhor da Pedra, em Miramar, são protagonistas insubstituíveis do seu filme. E, depois, é uma história de amores improváveis e de uma procura desesperada de um sentido para uma vida sob a qual paira, omnipresente, o espectro da morte.
 
No centro da narrativa, encontramos Mila, uma espécie de filha adoptiva, modelo, colaboradora e confidente de Nela Calheiros. A sua mãe, por quem ela confessa ter alimentado sentimentos de inveja e de repulsa, era costureira, e o padrasto, o Pai Augusto, é coveiro. Mila pertence a mundos diferentes e não pertence inteiramente a nenhum. Tudo se passa no Porto e o filme balança entre ambiências genuinamente populares e tipicamente burguesas, o da tasca onde Augusto e os seus amigos vão beber uns copos e o da Ateneia, onde as senhoras do Porto se reúnem para tomar chá. No mundo da moda, encontramos milionários em busca de prestígio e costureiras com salários em atraso. Nas festas de S. João, as imagens das ruas, onde o povo se junta, confrontam-se com as do barco, onde Nela Calheiros encena, para uma assistência sofisticada, um estilizado S. João. Entretanto, sobre todos eles e enquanto decorrem os festejos, nos céus sobe um balão que acabará por se consumir em chamas.
 
Enredada entre estes diferentes mundos, Mila é disputada pelas figuras “terrena” de Augusto e irreverente de Alfredo, pela silenciosa adoração de Tino e por um endinheirado cliente de Nela Calheiros. Porém, não encontra nenhum lugar para si em parte alguma. Será que apenas no seio do fugaz mundo da arte, do design de moda, dos desfiles e eventos, ou nos ateliers de costura, ela poderá existir? Essa foi a opção de Nela. Tudo na sua vida foi sacrificado à sua criação. As pessoas com quem lida têm, para si, um valor instrumental. Por diversas vezes, vemo-la ameaçar “pôr no olho da rua” quem não obedeça prontamente à sua vontade. Mesmo doente e fisicamente esgotada, empregará as suas últimas forças a preparar um desfile que já não se irá realizar.
 
O tema da Vanitas celebra o triunfo da morte sobre a beleza. No entanto, no final do filme, Nela Calheiros, já deitada no caixão, ricamente vestida de noiva de Viana e amorosamente maquilhada por Tino e Mila, por um breve instante, abre os olhos, parecendo querer renascer. O combate entre a beleza e a morte é uma luta sem fim. 
 
 

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