sexta-feira, 31 de maio de 2019

Persona (1966) de Ingmar Bergman



por João Bénard da Costa

Porque me chamaste? 
Eu não é eu que te responda. 

Swedenborg 

Persona é a obra-prima de Bergman. Digo-o desde já, para ir direito ao que importa. 

Em nenhum outro dos seus filmes – sejam quais forem as subjectividades e as preferências – o cineasta conseguiu atingir tal grau de simplicidade e de complexidade e conseguiu dizer tanto com tão pouco. Todo o Bergman está nele, nele está todo o Bergman. Estamos perante um exemplo de acabada perfeição. Tudo o que ficou para trás – e, meu Deus, tanto é – foi prelúdio. Tudo o que se lhe seguiu – e, meu Deus, que enormes filmes são – foi coda, ou postfácio. Ficasse só este filme, de Bergman saberíamos tudo. 

Por isso me irritam – não de viam irritar, mas irritam – as minuciosas exegeses que, plano a plano, passo a passo, esclarecem – ou obscurecem – o sentido de cada imagem. Podem escrever-se ensaios densíssimos e luminosíssimos que dão a cada plano cada chave e os comentam em textos que demoram a ler muito mais do que os 80 minutos do filme. Pode continuar-se a “psicanalisar” ad infinitum as relações de Johan (é o nome do miúdo) com a mãe, da mãe com Alma, da mãe com o marido, de Bergman com todos eles e com a própria mãe (que morreu no ano de Persona, em Março de 1966). Teremos óptimas conversas de salão, mas não teremos a experiência de ser, pela primeira vez, confrontados com Persona. Confrontados com quem? Com uma pessoa (uma máscara, que dizem os eruditos que é a raiz do que somos) que um dia, num palco, emudeceu e nunca mais voltou a falar. 

Quem é? Uma actriz, uma actriz chamada Elisabet Vogler. Era suficientemente célebre para que o comum dos mortais a tivesse visto e admirado em palcos e em filmes. Mas, um dia calou-se. Estava a representar a Electra (vemo-la, de Electra vestida, várias vezes durante o filme). E, quando suplicava o perdão de Orestes («E Vós, Divindades, Vós que, algures, nas trevas exteriores que a todos nos cercam, nos estais escutando, tende piedade de mim. Vós que sois o Amor»), subitamente deu uma gargalhada. Depois, calou-se. Depois, foi internada num hospital. Nunca mais se moveu, nunca mais falou. A certa altura do filme, recomeça a andar mas continuará sem falar até ao fim. Julgamos – e julga Alma, a enfermeira que lhe designaram – ouvi-la uma vez ou outra. Mas ninguém está certo disso. Ninguém está certo (podem jurá-lo) que, perto do fim, tenha repetido «Nada» como Alma lhe pediu. Parece – é a única vez que parece, é a única vez que a voz não parece ser a de Bibi Andersson – mas já todas as alucinações são possíveis, para ela (Bibi Andersson) como para nós. E, no fim, a actriz Elisabet Vogler está tão imóvel e tão calada quanto o estivera no começo, de novo na cama do hospital. O que se passa é um filme, como o que se passara no início, um filme rodado por Ingmar Bergman (a ele o vemos), com Sven Nykvist à câmara (também o vemos). O ruído – inicial como final – é o da máquina de projectar. 24 imagens por segundo. 

Sonhámos tudo isso, ou foi Bergman quem o sonhou? Essa é a questão de Persona e a todos nos envolve, já que não consta que se deixem entrar bichos na sala. Quem é eu aqui? O realizador, figurado e figurável, filmado e filmável, presente no princípio como no fim? O filme que corre na sala, mas também corre nos carretos, em eco do próprio ruído de, assim, desfilar? Elisabet Vogler, a actriz? Alma, a enfermeira? O miúdo, que do lado de cá do vidro, não toca na imagem (desfocada e ofuscante) que está para além dele? Ou todos são um só, como parecem querer ser e parecem não querer ser? Existem várias personagens nesta “história”, ou só existe uma, Alma-Elisabet chamada, com outro olhar a vê-la, olhar nosso, olhar do realizador? Como sabê-lo? Juramos que são duas – o genérico confirma-o e dá-lhes por nomes Liv Ullmann e Bibi Andersson – mas também podemos jurar que num plano – num célebre plano – as vimos serem uma só, apenas por uma reminiscência desmontáveis (e dizemos então que metade do rosto era Liv Ullmann e metade do rosto era Bibi Andersson). Literalmente há vertigens dessas, como por exemplo naquela novela de Camilo (agora não recordo qual) em que ele escreve Fulano de tal (não é fulano de tal, tem um nome bem prosaico, mas não me lembro), Fulano de tal é eu. A frase choca e perturba. Mas, gramaticalmente, está certa. Questão de sujeito e nome predicativo de sujeito. «Sou eu», mais usual e mais banal, também dava. Mas não é a mesma coisa. E aí começamos a vacilar. 

No filme – neste filme – demoramos muito mais tempo nessa vacilação. É verdade que o pré-genérico é estranhíssimo (já se lhe chamou, e com razão, o mais estranho pré-genérico da história do cinema, com um sinal por segundo e todos singularmente perplexivos) mas também é verdade que quando acaba o ruído da máquina tudo parece reentrar na lógica de um filme. Uma psiquiatra conta-nos (conta à enfermeira) uma história coerente e lógica sobre uma doente de que ela se deve ocupar. É um caso difícil, a enfermeira tem 25 anos e não sabe se está preparada, vamos lá ver, vai-se ver. E a enfermeira é totalmente enfermeira (impecavelmente profissional) e a doente totalmente doente (doente, como a psiquiatra a descrevera). Uma e outra, nos são simpáticas. Alma (é melhor chamar-lhe assim) é meiga, discreta, eficiente. Elisabet (a actriz) também o é. Mas quando Alma diz (falando de Elisabet) que ela tem um rosto de criança, mas uma expressão dura, se lhe repararmos bem nos olhos, só lhe damos inteira razão se já estamos todos projectados (ou debruçados). É verdade para Elisabet, mas também é verdade para Alma. Só que nessa altura do filme os grandes planos de Elisabet (e nunca tão tristes vistes) são muito mais numerosos do que os de Alma. Se, mais tarde, pensarmos na frase, achamos que tanto vale para uma como para outra. Foi tudo tempo de as olhar nos olhos. E, apesar das aparências, é raríssimo olhar-se nos olhos uma pessoa. Raríssimo e dificílimo. Acontece, às vezes, nas praias, ao sol, quando nos deitamos lado a lado, e abrimos um olho para olhar o olhar do outro. Raras vezes acontece mais. Por isso é que, na vida, ao contrário do cinema, os grandes planos (inventados por este e não pela pintura) são tão raros. Bergman que inventou os grandes, grandes planos (contem-nos em Persona e não acreditarão no número) sabia disso e da nossa demora a chegar até eles. Por isso, a frase inicial de Alma pode parecer tão banal, tão objectiva, tão alheia. Um fait divers. Mas não é facto, nem é diverso. É filme e é uno. Mesmo que, depois dessa clínica verificação, depois da história da telefonia (e é pela telefonia que conhecemos o texto que citei da Electra), depois dos primeiros sons de Bach, já tenhamos visto – segundos? Eternidades? - aquele grande, grande plano de Liv Ullmann, deitada na cama, de lado, antes de adormecer, e antes que alguém (quem?) lhe ponha a mão em cima da cara. A seguir, acende-se uma luz, Bibi Andersson diz qualquer coisa como «bolas!» (tenho que me fiar nas legendas) porque se esqueceu de marcar o despertador. Vira-se para nós e diz que é cómico. E pergunta qual será o problema dela. Dela. Elisabet Vogler. Elisabet Vogler. A sequência seguinte (supostamente, o dia seguinte) é Elisabet sem Alma. Televisão, Vietname, coisas dos anos 60. A actriz deve ter problemas políticos – pensamos – como Max von Sydow na Luz de Inverno os tinha com os chineses. Mas também se fala de «forças que não podemos controlar». Bergman, tel qu'en lui-même... Já sabíamos. Como sabíamos (ou julgávamos saber) de histórias com o filho e com o marido, coisas de Édipo, coisas conjugais. Até que a voz off nos informa que foram as duas para a praia, para o mar. 

O tom “realista” continua, com uma a fingir que não dá pelo silêncio da outra, e outra a fingir que não dá pelas conversas de uma. Mudam de cor (fatos de banho brancos, fatos de banho pretos), mudam de mãos, é tão bom ouvir, é tão bom falar. E como é tão bom, quem fala avança nas confidências e conta, conta, conta histórias íntimas e pessoais. Entretidos a ouvi-las (o que é que entretém mais do que a oralidade do sexo?) nem reparamos nas mudanças dos planos, e continuamos a tomar como fait divers que quem fala diga que deve ser bom ser-se duas pessoas numa só, alma cheia até rebentar. 

Até que, de súbito, se ouve alguém dizer: «precisas de te ir deitar». «Preciso de me ir deitar» emenda Alma, logo a seguir. Só mudou o tu pelo eu. A voz é a mesma. Mas, enquanto chove, e enquanto se ouve a ronca na banda sonora, vacilamos, pela primeira vez, sobre a identidade de quem fala. E, durante a noite, as duas se fundem, pela primeira vez numa só, no beijo vampírico de Liv a Bibi. E amanhece. 

Sonho, pensamos reconfortadamente (pensa-o também Alma). Mas a partir daí, já de nada estamos certos. Nem quanto à fabulosa aparição de Gunnar Björnstrand, dirigindo-se a uma como se fosse outra e a outra como se fosse uma, nem quanto à celebrada sequência (a mais célebre e a mais imitada de Persona) em que ouvimos o mesmo diálogo (o famoso diálogo sobre a maternidade) ora do ponto de vista de Elisabet, ora do ponto de vista de Alma. E quando digo «ponto de vista» digo muito mal, porque não há ponto de vista, há mesmo a total ausência de um e de outro (por isso os imitadores sempre se enganaram tanto). 

Quem é que – à noite – fica com a cara flácida, inchada, quem é que cheira a sono e lágrimas? Quem agride quem? Quem agride quem? Quem ouve a declaração de amor conjugal? Quem é que é Elisabet Vogler e quem é que não é Elisabet Vogler? Quem é que repete o pedido de perdão de Electra a Orestes? A quem se dirige o cego? Duas pessoas podem volver-se numa só? E, sendo possível, a Alma e a Máscara (a Pessoa) podem continuar a dividir-se, como se divide a imagem do filme? 

Persona é um mosaico que não faz sentido. Diante deste filme, sinto-me como o miúdo que por lá aparece, a tocar no vidro (na tela) e sem o transpor. Para lá dele (e dessa imensa imagem maternal e feminina, a imagem maternal e feminina) estará possivelmente o sentido de tudo, mas não se pode ir para lá de um filme, como não se pode atravessar uma tela, sem destruir a visão. 

Como escreveu Pérec: «estamos sozinhos e não conhecemos ninguém. Não conhecemos ninguém, e estamos sozinhos». 

«Meu Deus, se fosse possível partilhar tudo isto com alguém. Mas se o fosse, alguém o seria, alguém o seria ainda?». A pergunta é de Rilke, no Malte. A resposta de Elisabet, conjurada e esconjurada por Alma, não é não, nem é ninguém. É nada

A génese deste filme – contou Bergman – começou no dia em que Bibi Andersson, casualmente, lhe apresentou uma desconhecida actriz norueguesa chamada Liv Ullmann. E ele reparou – «inconscientemente» – na «diabólica semelhança» entre aquelas duas mulheres, não quando as viu, mas quando viu uma fotografia delas, na praia, a tomar um banho de sol. Depois adoeceu, depois esteve três meses num hospital (doença de Ménière, perturbação do ouvido interno, que se manifesta, entre outros sintomas, por vertigens e perda de equilíbrio). Depois pensou que nunca mais voltava a filmar. Depois sentiu-se «vazio e morto». E, um dia, começou a pensar nessa fotografia e em duas mulheres, de fato de banho, a compararem as mãos. Depois, começou a escrever o script. Depois, parou. Achou que estava doido. Quando Bibi, desesperada com os primeiros ensaios, lhe disse o mesmo, começou a filmar. Liv estava nervosíssima. De repente, as duas caras misturaram-se uma na outra. «Foi o primeiro plano do filme. Quanto ao resto, podem interpretá-lo como quiserem. Como com um poema. Para pessoas diferentes, qualquer imagem significa coisas diferentes (…) Em Persona, como nas peças de Beckett, não há duas séries de imagens, como não há duas séries de palavras, que se possam conjugar umas com as outras.» 

Por mim, limito-me a acrescentar que também não há duas séries de pessoas. Nem mesmo uma pessoa. Se a houver, como também dizia Rilke, não quer – ainda – dizer mais do que Elisabet Vogler não disse: nada

in «João Bénard da Costa – Escritos Sobre Cinema», Tomo 1, 1º Volume, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa, Setembro de 2018, pp. 291-296.

terça-feira, 28 de maio de 2019

132ª sessão: dia 30 de Maio (Quinta-Feira), às 21h30


João Bénard da Costa não esteve com rodeios ou meias-palavras quando descreveu o filme que exibiremos esta semana na Casa do Professor como "a obra-prima de Bergman. Digo-o desde já, para ir direito ao que importa." Persona, de Ingmar Bergman, com Bibi Andersson e Liv Ullmann, monumento artístico dos anos 60, é então a nossa próxima sessão.

Na sua segunda auto-biografia, Bilder (1990), feita para corrigir a primeira, Bergman om Bergman (1970), em que achou ter sido conduzido pelos entrevistadores, Ingmar Bergman declara que "quando se lê o guião de Persona, pode parecer uma improvisação, mas é planeado de forma meticulosa. No entanto, nunca rodei tantas repetições durante a realização de qualquer outro filme. Quando digo repetições não me refiro a tomadas repetidas da mesma cena no mesmo dia. Refiro-me a repetições que são uma consequência de ter visto as provas diárias do dia anterior e não ter ficado satisfeito com o que vi.

"Começámos a filmar em Estocolmo e e fizemos uma partida em falso.

"Mas pusemos a coisa em marcha, devagar e com rangidos. De repente, gostava de dizer: "Não, vamos fazê-lo melhor, vamos fazê-lo desta ou daquela maneira, e aqui podíamos fazê-lo de forma um bocado diferente." Nunca ninguém ficou chateado. Está metade da batalha ganha quando ninguém se começa a sentir culpado. O filme também beneficiou, naturalmente, dos fortes sentimentos pessoais que emergiram durante as filmagens. Em suma, era um plateau feliz. Apesar do trabalho fatigante, tive a sensação de que estava a trabalhar com liberdade absoluta tanto com a câmara como com os meus colaboradores, que seguiram as minhas voltas e reviravoltas."

Num artigo para a revista Cineaction depois reproduzido em Sexual Politics and Narrative Film (1998), Robin Wood, revisitando as suas visões sobre Persona, escreve que "Elisabet é uma mulher profundamente perturbada e portanto potencialmente perigosa. Joga muito a favor do filme que não a consiga "explicar" em termos de psicologia pessoal: a resistência dela ao patriarcado, a recusa dela à "ideologia dominante" é suficiente. Aqueles que permanecem confortáveis no interior dela não conseguem perceber isto. Durante a minha vida, tanto fui "Alma" como "Elisabet," e percebo-o muito bem. Também percebo que "Alma" vai fazer sempre parte de "Elisabet," tal como "Elisabet" fez sempre parte de "Alma." A ideologia é o nosso lar—o lar em que crescemos. Enquanto permanecemos dentro dela, por mais contraídos e frustrados que nos possamos sentir, não temos "nada com que nos preocupar. É tão seguro": sabemos as regras. Assim que passamos para o lado de fora, renunciando-a, ficamos sozinhos, não temos em que nos apoiar, já não há mais regras, temos de descobrir umas novas ou construir as nossas. Embora menos abrupto, é tão assustador e desorientador como a experiência do nascimento, quando a criança deixa a segurança e o calor do útero (mesmo que parecesse às vezes um bocado desconfortável) por um estranho novo mundo em que a sua primeira experiência, normalmente, é ser esbofeteado e obrigado a gritar. Também é uma experiência necessária como o nascimento, se a nossa civilização quer progredir e redimir-se a si própria. Daí a ambivalência dos nossos sentimentos para com Elisabet: ela é perigosa, assustadora, "outra," mas admirável e necessária. (normalmente são os que se recusam a ver as duas mulheres como mais do que "personagens," para serem julgadas ao nível da psicologia e do comportamento pessoal, que a acham um "monstro") O que Bergman não consegue fazer (porque é um homem? porque é habitante de um país onde se acredita que todos os problemas sociais foram resolvidos por muitos anos de governo quase socialista, mas em que o patriarcado e o capitalismo continuam a ser as forças dominantes? ou só porque é Bergman?) é dramatizar a possibilidade de construir um novo "lar" de solidariedade e apoio mútuo. Nunca poderia ser tão seguro como o lar que se abandonava, uma vez que carece da sanção da tradição, mas torna a vida e o desenvolvimento adicional possíveis, permite-nos desenvolver a nossa criatividade, e não a negar com raiva impotente. No entanto, é surpreendente quão longe o filme vai—pelo menos até ao fim da primeira parte—na sugestão dessa possibilidade.

"A rejeição de Elisabet ao seu papel na ordem patriarcal fica notavelmente completo, recusando qualquer concessão; pode-se ver o seu rigor como o aspecto positivo da sua impiedade, ou ver a impiedade (que quase destrói Alma) como a sua infeliz consequência. Antes do seu silêncio, ela rejeitou tanto o casamento como a maternidade, e não apenas como ideias abstractas. O momento em que ela rasga a fotografia do filho é profundamente chocante, registando a brutalidade, a asfixia dos sentimentos "naturais" e o custo psíquico que o rigor impõe: ela não pode permitir ser sugada de volta para a vida que rejeitou, e para as emoções que lhe pertencem. (Regressarei mais tarde à atitude de Bergman para com a maternidade, já que se torna um ponto crucial dos últimos episódios do filme.) O silêncio dela é a culminação lógica deste processo, ao mesmo tempo a afirmação mais rigorosa da sua recusa em participar num sistema que repudia e um recuo—tornando-se o silêncio tanto uma barreira protectora como uma asserção de resistência. Também antecipa de forma surpreendente a posição que certas feministas desenvolveram a partir de Lacan: a própria linguagem é patriarcal, sendo a conquista da linguagem um passo de entrada decisivo na Ordem Simbólica. O dilema que isto provoca (se a linguagem é patriarcal, como é que uma feminista pode falar?) não é só de Elisabet."

Em resposta a este artigo de Wood, Göran Persson, psiquiatra sueco fascinado com a obra de Ingmar Bergman, escreve pouco tempo depois na mesma revista que "no filme, Elisabet torna-se dolorosamente consciente daquilo que se pode qualificar como o seu complexo de Electra, e das memórias de ter sido abusada sexualmente. Há muito nela que foi reprimido, incluíndo o seu desejo de ser mãe, o amor pelo filho e a capacidade dela em estabelecer uma relação madura com um homem. Sente-se do lado de fora, sem qualquer chance de ser aceite por pessoas normais e decentes. Durante o filme, descobre que as pessoas normais e decentes (a enfermeira Alma é certamente tão normal e tão decente como qualquer pessoa podia pedir, dada a informação que recebemos primeiro) podem muito bem alimentar exactamente os mesmos sentimentos que ela condenou em si mesma, e pode-se sentir assim integrada no círculo humano. O chupar do sangue é a confirmação deste facto.

"Mesmo no final do filme, vemos Elisabet a interpretar Electra outra vez. Deixou assim o papel de espectadora que interpretou durante o filme e voltou a ser a actriz activa. É um momento muito curto, uma centelha apenas, mas mostra Elisabet durante a fase agonizante e reflexiva, não quando está prestes a partir-se a rir. Há duas interpretações possíveis: ou está mais confiante em si mesma e, devido a este facto, pode nutrir sentimentos mais profundos, ou então está de volta à sua vida antiga e no seu nível antigo de funcionamento, talvez com um par de gestos e tons de voz novos no seu repertório. Esta última interpretação pode parecer um bocado niilista: os espectadores nunca aprendem o que quer que seja, e portanto a arte não tem qualquer proveito. Pode-se ficar com esta sensação quando se lêem algumas das avaliações críticas de Persona. E o que é que eu próprio retirei de Persona depois de ver o filme uma vez? Fui abalado, mas não fazia ideia como, ou pelo quê. Não compreendi grande coisa. Teve efeitos inconscientes? Não sei."

Até Quinta-Feira!

domingo, 26 de maio de 2019

Elena et les Hommes (1956) de Jean Renoir



por João Bénard da Costa

Embora este filme seja antecedido pela tradicional legenda prevenindo que qualquer semelhança entre os personagens reais e os do filme é pura coincidência, o personagem interpretado por Jean Marais, sob o nome de General Rollan, é uma das mais míticas e populares da história francesa da segunda metade do Século XIX: o general Georges Boulanger (1837-1891). 

Herói da guerra de 70, vencedor, em 71, da Comuna de Paris, Boulanger foi um típico “militar político” do qual, durante a década de 80, se esperou a salvação da França. A popularidade que teve junto das suas tropas só foi igualada pela que teve junto das mulheres; a sua coragem física era – diz-se – igual à sua beleza. Romântico tardio em plena Belle Époque, este misto de Sidónio e Mouzinho foi utilizado por quase todos os sectores políticos: uns viram nele o homem que podia acabar com o corrupto parlamentarismo e restituir à França um estado forte (“l'austérité, la propriété, la sûreté, l'autorité” - como se diz no filme); outros pensaram que ele seria o militar capaz de tirar a desforra da derrota da guerra franco-alemã de 70-71; uns sonhavam que ele restauraria a monarquia; outros que ele seria capaz de restituir ao regime republicano o apoio popular. A sua grande hora ocorreu em 1889 (o ano da acção do filme) quando do affaire Schneebelé (transposto, na obra de Renoir, como affaire Vidauban), em que o chamaram para ministro da guerra. Mas essa hora durou pouco. Conspirações falhadas, fundação do partido nacionalista (em torno da sua figura e para colher o prestígio dela) foram outras tantas decisões infelizes que tiveram um mau fim. Em 1890, Boulanger foi preso como traidor à República e condenado a prisão perpétua. Conseguiu fugir, mas acabou no ano seguinte, de um forma apropriada à aura romântica que o envolvera em vida: suicidou-se em Bruxelas sobre o túmulo de uma antiga amante. 

É este o plano de fundo histórico do filme de Jean Renoir, visto pelo realizador com um olhar que nada tem de inocente, embora também nada tenha de cruel. Renoir observa ironicamente Rolland e a Belle Époque, mas com a ironia de quem sabe que a história se repete e tais “romances” não terminaram com o século romântico. Quem tanto o acusou, a propósito deste filme, de fazer um divertimento gratuito, totalmente divorciado da realidade dos anos 50, estava certamente bem distraído do clima de então em França e do que se passaria num próximo 13 de Maio. Em 1958, como em 1956, “un chef, une autorité” estavam bem na ordem do dia. 

Se comecei por chamar a atenção para este ponto, é porque sobre ele pairou uma geral distracção e porque Renoir bem pode ter sido premonitório. Mas, evidentemente, não é isso o mais importante. Aliás, Rollan é apenas um dos homens em torno de Elena. E Elena é o centro do filme, com os homens que se vão mover à volta dela: o professor de piano, o magnate dos sapatos, Henri de Chevincourt (um dos mais ambíguos personagens masculinos de Renoir), o general e até o assombroso Eugène (enteado demasiado “marital”). Se tudo gira (em sentido próprio e figurado) à volta de Elena é porque esta é o lugar geométrico das duas grandes comédias que, como na Règle, e mais uma vez, são o cerne deste filme excepcional: a comédia do poder e a comédia do amor. Elena, que sonha servir a França, através do general, que sonha servir a família através dos sapatos de Martin e que sonha servir-se a si própria através de Henri (continuando, assim, a história do pobre príncipe polaco, seu primeiro marido que também, fatalmente, misturara a política e o amor), é sempre falsa e sincera em todos esses registos: personagem bifronte, como todas as mulheres de Renoir, irmã siamesa de uma outra Elena que é ela e não é ela, perde e ganha nas suas várias estratégias e acaba por se enredar nos meandros da intriga que procura conduzir: atira Rollan para os braços de Mme Escoffier, aborta o seu sonho de representar um grande papel político, acaba com Henri, representando e não representando, levada pela sua própria comédia ao único personagem que a soubera “mettre en scène”.

Este jogo de amores cruzados (que se desdobra no jogo Hector-Lolotte-Eugène-Denise e no jogo entre o compositor e o sapateiro) é uma farsa? É uma farsa a história política, com os conspiradores, os políticos, e o povo de pacotilha? Se o é, é-o no mesmo sentido das grandes comédias e óperas do século XVIII em que mais uma vez Renoir se inspirou. É talvez discutível (pense-se na Règle, na Carrozza, no Cordelier), dizer como Godard que este “é o mais mozartiano dos filmes de Renoir”. Mas, seja-o ou não, o que parece indiscutível é que é sob a inspiração de Mozart que, uma vez mais, esta obra se coloca. As perseguições, o permanente cruzamento dos personagens, os assombrosos segundos planos (sobretudo nas sequências inadjectiváveis do solar de Martin e da casa de má nota de Rosa La Rose) vêm directamente do teatro e da música das Bodas ou do Così, como Elena é a única sucessora contemporânea de Rosina e Fiordiligi. Só que, neste filme, também já intervém o universo mágico da Flauta que obteve esse adjectivo: é o universo introduzido pelos ciganos e, principalmente, por aquele plano do rapaz tocando clarinete, talvez o mais genial de toda a obra de Renoir. 

E quem pensar que tudo isto é fútil e que tudo isto é um inconsequente divertimento, terá que pensar a mesma coisa das óperas de Mozart (e, de facto, durante muito tempo, o pensaram): porque, esta “fantasia cinematográfica”, na sua construção e na sua “leveza”, jamais nos apresenta títeres ou caricaturas nas personagens de carne e osso total, de que se poderia seguir, com bem grandes surpresas, a nada leve história. Todos os personagens estão pintados a corpo inteiro, numa verdade tanto maior quanto maior é o seu tratamento como “marionettes” Como se diz no filme a “ligeireza” é uma forma de civilização. Como se insinua no filme, o acaso é outro nome da divina providência. 

E a canção final (“Oh nuit je te fais serment – d'oublier mon amant”) só nos conduz nesta história processada sob o signo de Heloísa e Abelardo, ao outro tema de Renoir: o da impotência masculina e o do isolamento final da mulher. 

in «As Folhas da Cinemateca – Jean Renoir», Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa, Setembro de 2005, pp. 156-160.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

131ª sessão: dia 23 de Maio (Quinta-Feira), às 21h30


É com enorme prazer que regressamos às cores vivas e à leveza desarmante dos filmes tardios de Jean Renoir, que segundo Jean-Luc Godard é o "mais mozartiano" dos cineastas. Depois de French Cancan, com um Gabin apaixonado pelas mulheres e pelo trabalho, assistiremos às aventuras amorosas da princesa Elena na Paris de inícios do século XX. Elena et les hommes é a nossa próxima sessão.

Em Jean Renoir vous parle de son art, programa cujas introduções foram publicadas originalmente no volume Jean Renoir: entretiens et propos [Cahiers du Cinema – Petite Bibliothèque, 2005] e depois traduzidas e publicadas em português no catálogo brasileiro A Vida lá Fora: O Cinema de Jean Renoir, o realizador resume laconicamente que "Elena et les hommes é Ingrid Bergman. E Ingrid Bergman assume uma forma pouco comum. O que me fez rodar este filme foi sobretudo a possibilidade de trabalhar com Ingrid Bergman. Deutschmeister foi quem me sugeriu esta aventura e eu aceitei de bom grado, naturalmente, porque Ingrid é uma mulher maravilhosa, eu amo-a na vida e na tela. A minha ideia era fazer qualquer coisa de cómico. Sentia que ela precisava daquilo, que aquelas situações cómicas iam casar muito bem com o momento da sua carreira. Eu não pensava muito no sucesso do filme e podia estar errado, pensava mesmo era nela.

"Depois disso, vieram outros elementos puxar-me o tapete, deixando-me absolutamente envolvido. Adorei trabalhar com Jean Marais. Jean Marais imprimiu ao filme uma espécie de graça, de elegância inimitável. O filme também me deu a oportunidade de conhecer Greco, de a admirar e apreciar profundamente.

"(...) Para voltar a Ingrid, eu queria tentar cenas cómicas com ela. Infelizmente, no último minuto, Deutschmeister e eu descobrimos que o General Boulanger tinha os seus herdeiros. Eram pessoas extremamente legais e evocar a memória do seu antepassado podia incomodá-los, irritá-los e fazê-los sofrer. Por isso, decidimos abandonar o General Boulanger e fazer outro filme. Um filme sobre o mesmo tema, ainda se trata de um general, de uma conspiração e de um golpe de Estado, mas essa reviravolta nos acréscimos não me ajudou a fazer um bom filme. Fiz o melhor que podia improvisando quase tudo. Ainda assim, de vez em quando consegui construir situações em que Ingrid estava maravilhosa e situações em que os restantes actores estavam maravilhosos. Veja só, pude dar um grande papel a um actor que adoro, Jouanneau. Ele foi absolutamente maravilhoso. Pierre Bertin também é extraordinário."

Nos Cahiers du Cinéma, em 1957, Jean-Luc Godard escreveu que "dizer que Renoir é o mais inteligente dos cineastas é o mesmo que dizer que ele é francês até à ponta dos cabelos. E se Elena et les Hommes é “o” filme francês por excelência é porque é o filme mais inteligente do mundo. É arte e teoria da arte. Beleza e o segredo da beleza. Cinema e, simultaneamente, explicação do cinema. 

"A nossa bela Elena não é mais do que uma musa de província. Sem dúvida. Mas uma que busca o absoluto. Pois que filmando Vénus entre os homens, Renoir, durante hora e meia, sobrepõe o ponto de vista do Olimpo ao dos mortais. Perante os nossos olhos, a metamorfose dos deuses cessa de ser um slogan de bazar para se tornar um espectáculo de uma comicidade comovente. Através do mais belo dos paradoxos, com efeito, em Elena os imortais aspiram a morrer. Para se estar certo de viver, é preciso estar certo de amar. E para estar certo de amar é preciso estar certo de morrer. Eis o que Elena descobre nos braços dos homens. Eis a estranha e dura moralidade desta fábula moderna disfarçada de opera buffa. Trinta anos de improviso durante as rodagens fizeram de Renoir o primeiro técnico do mundo. Concretiza num só plano o que outros fariam em dez. Nunca um filme foi tão livre como Elena. Mas, no fundo, a liberdade é uma necessidade. E nunca um filme foi tão lógico."

No Dictionnaire, Jacques Lourcelles escreve que "em Le carrosse d'or, French Cancan e Elena et les hommes, que compõem uma espécie de trilogia, Renoir mostra o seu reconhecimento a três formas de espectáculo : a commedia delI'arte, o café-concerto e o guinhol. Porque em Elena, mesmo que não se vejam nem pano de boca nem palco nem fios, estamos instalados no guinhol. O guinhol representa uma dimensão permanente do universo de Renoir, tanto nos seus dramas (lembremo-nos do prólogo de La chienne) como nas suas comédias. Aqui ele triunfa ao mesmo tempo no estilo e no que se poderia chamar de moral nesta história sem moral. Para o estilo, são os mesmos entrelaçados que os de A Regra do Jogo, mas ainda mais estilizados, mais audaciosos no esquematismo voluntário, no burlesco, na bufonaria. No plano de fundo, nas cozinhas e nos corredores, uma agitação de empregadas e de ordens, de ingénuos excitados e donzelas apaixonadas, imita o universo já caricatural dos adultos, dos amos e dos grandes deste mundo. Isso concede à mise en scène uma riqueza fascinante feita de arabescos, de jogos das escondidas instalados de forma sumptuosa no espaço dos planos. Para a moral, Renoir declara aqui o seu distanciamento de tudo, e a a estética do guinhol concede a essa distância uma expressão simultaneamente agradável, anódina e extrema. Certamente que o autor do Rio Sagrado, a sua última obra «séria», já não vê a seriedade em parte alguma, tirando talvez nos prazeres do amor e da indolência. Todas as personagens são fantoches, tal como o general Rollan, livremente inspirado no célebre general Boulanger, mas os menos ridículos são aqueles que aceitam trocar as suas ambições, a sua vontade de agir e de mudar o mundo pelo simples consentimento ao amor e à felicidade privada. Como nada é simples em Renoir, há apesar de tudo uma melancolia e uma dilaceração secreta nesse consentimento. Derradeira filosofia do cineasta? Ele adoptou tantas posições e pontos de vista diferentes sobre o mundo que seria bem arriscado escolher entre eles, ainda que por razões de cronologia, o que teria um valor testamentário maior que o dos outros. O testamento de Renoir, esse Proteu, é o conjunto dos seus filmes e a totalidade da sua obra.

"N.B. Ao contrário de Carrosse d'or, que foi rodado essencialmente em inglês e depois dobrado em francês (para a versão francesa) e em italiano (para a versão italiana), Elena et les hommes foi rodado simultaneamente em francês e em inglês, em grande parte. Isso proporcionou mil dificuldades a Renoir, constrangido a recorrer ainda mais do que queria a improvisações audaciosas. Nesse sentido, esta dupla rodagem sem grandes meios financeiros acentuou indubitavelmente a beleza específica do filme e da sua mise en scène. «É impossível lançarmo-nos para duas versões sem ter duas equipas diferentes», diz Renoir. «Se terminei Elena, foi um milagre. [...] Era um risco todos os dias, em que me desenvencilhava com piruetas e truques de magia [...] Mesmo o final! Foi um final que fui obrigado a improvisar num dia com a canção de Greco» («Cahiers du cinéma» n° 78). Há várias diferenças a separar a versão francesa e a versão inglesa, intitulada Paris Does Strange Things. Esta última suprime ao começo a personagem de Jean Claudio (o compositor ajudado por Elena). Em vez disso, há um prólogo em que, depois de alguns planos de Paris, Mel Ferrer (de quem ouvimos apenas a voz) mostra na sua biblioteca as «Memórias de Rollan» e, numa gaveta, o diário íntimo de Elena. A voz de Mel Ferrer vai comentar de forma fastidiosa as imagens de uma ponta à outra da acção (sobrepondo-se frequentemente aos diálogos), como se o público inglês e americano fosse incapaz de compreender a narrativa por si mesmo. Há um número muito grande de pequenos pedaços de sequências que são cortados (e frequentemente são os mais engraçados) mas só há uma sequência que desaparece integralmente: a do duelo de Mel Ferrer com o seu adversário do café. Renaud Mary (o líder da equipa de confiança de Rollan), que aparece em vários planos, é substituído por George Higgins (o Martinez de Carrosse d'or), que não é tão bom como ele. A versão inglesa é inferior à francesa sob todos os pontos de vista. É mais curta doze minutos."

Até Quinta!

terça-feira, 21 de maio de 2019

Madame De... (1952) de Max Ophüls



por João Bénard da Costa

Ela chamava-se Louise (Danielle Darrieux). Ele chamava-se André (Charles Boyer). De que eram Madame e Monsieur não saberemos nunca. 

É uma das muitas elipses geniais deste filme genial. Os protagonistas não têm apelido, esse apelido de que, na classe social a que pertencem (velha aristocracia francesa), certamente muito se orgulham. Por duas vezes, pelo menos, Max Ophüls, que realizou este filme em 1953, reforçou a elisão. Quando Louise diz como se chama ao Barão Fabrizio Donati (Vittorio de Sica), seu futuro amante, ouvimos distintamente «Madame De», mas o resto perde-se entre o barulho da música e das vozes da festa em que se conhecem. Quando, num grande jantar, cada um tem um cartão no lugar que lhe cabe à mesa, um copo colocado diante do de Louise tapa o apelido, deixando apenas a descoberto Madame De. 

Mesmo os nomes próprios (Louise e André) são pouco usados, já que ambos fazem parte do meio em que a mulher diz sempre vous quando se dirige ao marido e o marido diz sempre vous quando se dirige à mulher. Quando muito, mon cher ou ma chère. São a senhora de e o senhor de. Ela, muito senhora e muito de, ele muito senhor e igualmente muito de. Retratos arquetípicos de uma classe. Mas nunca – que me lembre – uma senhora tanto de, e um senhor tanto de acabaram a história, acabaram o filme e acabaram a vida a serem tanto uma mulher e um homem em toda a profundidade da acepção destas palavras. Max Ophuls disse-o: «A profundidade esconde-se sempre atrás da banalidade.» Pelo menos, no mundo deles, esse mundo de que, com os anos e com a vida, cada vez mais estou convencido de que Madame De... é a suprema expressão. Hoje, penso mesmo o que durante tanto tempo não pensei. Madame De..., penúltimo filme de Ophüls, é um filme melhor do que Lola Montès, último filme dele. 

A história (baseada num romance de Louise de Vilmorin, escritora que Ophüls amava) tece-se em torno de uma «anedota» relativamente conhecida e de que há múltiplas variações (um conto de Maupassant, uma peça de Ramada Curto, um filme de Hitchcock, que me lembre e do pé para a mão). Uma mentira para disfarçar um presente que um Senhor não pode dar a uma Senhora casada sem revelar que ela é menos Senhora e ele é menos Senhor. Em Madame De... o presente são uns magníficos brincos de brilhantes que, como as personagens, se transfiguram de sinal exterior em sinal interior

Eram uma jóia que Monsieur De em tempos dera à mulher. No início do filme (quase no início do filme) esta decide vendê-los para pagar umas contas a mais que quer esconder do marido. Razões fúteis em pessoas fúteis? Já lá vamos. Mas o ourives que os compra (ourives da família) trai o pequeno segredo de Madame e conta a história a Monsieur (ela dissera-lhe que os perdera). Para pequenos delitos, pequenas vinganças. Em segredo, Monsieur De compra os brincos pela segunda vez e oferece-os como cadeau d'adieu a uma namorada ocasional, uma das muitas que tivera e tem. 

A dita namorada parte para Constantinopla. É leve nos costumes e pesada no jogo. Num casino, em noite de má sorte, joga os brincos e perde-os. Voltam para a montra de um ourives. A ele os compra o Barão Fabrizio Donati, diplomata que acaba de ser transferido de Constantinopla para Paris, não conhece ainda nem a Senhora nem o Senhor e, obviamente, ignora a árvore genealógica dos brincos. Só depois, muito depois, se apaixona perdidamente por Madame De, tão perdidamente como ela se apaixona por ele. E, um dia ou uma noite, dá-lhe os brincos, sem sonhar que os devolve à antiga dona, sem ela sonhar como é que os brincos foram parar a Constantinopla. Como pode ela voltar a usá-los? Nada diz a Fabrizio. E ao marido diz que reencontrou os brincos, afinal esquecidos dentro de um par de luvas que há muito não usava. Mais um pequeno delito? Já não o era. E o que ela não sabe é que o marido passa a saber, por causa dessa mentira, quem lhe deu os brincos e porque é que os brincos lhe foram dados. Passa a saber mais: que Madame, que nunca tivera os brincos em especial estimação quando haviam sido apenas um dos muitos presentes dele, lhes dá agora, que são presente doutro – ou do outro – tão grande valor que é capaz de muito para os voltar a usar. Não sabe, ainda, que é capaz de tudo

Para grandes delitos, grandes vinganças. Monsieur De obriga a mulher a dá-los como presente de casamento a uma parente pobre e de quem nem um nem outro gostavam por aí além. E, quando assiste à dádiva, percebe que não arrancou à mulher apenas um prolongamento do corpo. Arrancou-lhe a alma, ao arrancar-lhe o único sinal sagrado do amor sagrado que ela vive, ou de que ela morre, com Fabrizio. 

A prima distante não guarda os brincos por muito tempo. Troca-os por dinheiro, que lhe faz bem mais falta. E Madame De compra-os ao mesmo ourives pela terceira vez, para os usar até à morte e para os pôr aos pés da Virgem na fria madrugada em que Fabrizio e Monsieur De se batem em duelo. Fabrizio morre, Madame De morre («Elle meurt», diz a criada, em francês de Mossuet). E a última imagem do filme são os brincos junto à Virgem, na penumbra de uma igreja. Como há 40 anos escreveu Pedro Tamen: «Os brincos, mantendo do princípio ao fim a missão de sinal que lhes compete, vão sendo sinal de várias realidades cada vez mais expurgadas (…) de leviandade passam à doação.» E compara o papel deles no filme ao do coche de La Carozza d'Oro

Estou a exagerar e transformo velhas histórias de cornos de cornos de cornos numa meditação sobre o sagrado? Quem só conheça a história, pode temer que sim. Quem viu o filme, sabe que não. Os brincos que vimos no princípio, escolhidos entre tantas outras jóias de que Madame De em off (ainda não a conhecemos) vai dizendo lugares-comuns como «Antes morrer do que ficar sem eles», «É impossível desfazer-me disto», são e não são os mesmos brincos de que, no final, só se separa para morrer, ou para que Deus não deixe morrer o homem que amou mais do que a vida. 

Como Madame De e Monsieur De não são (e são) as mesmas pessoas que eram no início. No início, vemo-los imóveis, tal como, neles mesmos, a classe os imobilizou. Madame De, depois de a ouvirmos a apreciar casacos de peles e leques de madrepérola, vemo-la, pela primeira vez, num espelho de prata, com a cara levemente coberta por um véu. Monsieur De, antes de o vermos em carne e osso, vemo-lo objectivado, imóvel na farda de gala, no grande quadro que está por cima do fogão. A um e outro somos introduzidos, como se fossem objectos de um décor. Pessoas que não têm dentro, só têm fora. 

Monsieur De tem as suas aventuras, nada platónicas, mas nada perturbadoras da «felicidade» do casal. Madame De desperta paixões todas as noites, paixões que ficam platónicas, porque ela sabe tão bem desencadeá-las como dominá-las. Amam-se? Como dirá, depois, Monsieur De, o amor entre eles só superficialmente é superficial. Só as pessoas frívolas julgam frívola a frivolidade. 

Mas – de repente – e é mesmo de repente – entra no filme Fabrizio Donati. E, ao contrário dos outros, o «objecto imprevisto», o homem que traz os brincos de volta, sem saber o que traz nem o que volta, não nos é mostrado imóvel. Gesticula muito, fala muito alto, protesta, em Constantinopla, contra contrariedades insignificantes. No final, tudo será ao contrário: Monsieur e Madame De agitam-se cada vez mais e é Fabrizio quem se imobiliza, incapaz de qualquer gesto contra a morte que sabe ser o único termo para quem destruiu um equilíbrio ancestral. 

Fabrizio, que foi o único que obteve os brincos por acaso, é o autor dos gestos que tudo determinam. E o filme passa de comédia a tragédia na sequência genial (um baile) em que Madame De, depois de ter mentido ao marido, quando lhe diz que achara os brincos «perdidos», mente a Fabrizio quando lhe conta outra história para explicar que pode usar os brincos, sem pôr em causa nem a honra dela nem a honra do marido. «Un mensonge?» pergunta, cúmplice e envaidecido, Fabrizio. «Ça sera notre mensonge», responde-lhe Madame De. Mas, como já sabemos, não é. Pelo contrário. É a primeira mentira de Madame De a Fabrizio, a mentira que não pode compartilhar com ninguém, nem com o marido nem com o amante. A mentira que a faz ficar sozinha. A mentira que faz ficar todos sozinhos. 

A partir dela, a solidão invade o filme. Monsieur De a tentar desesperadamente fingir que não se passou nada e que Fabrizio não será mais do que o último cri de coeur de Madame. Fabrizio, a descobrir que o papel de «marido enganado» lhe coube mais a ele do que a Monsieur e a não o perdoar a ela. E Madame De a saber que perdeu para sempre um e outro e sobretudo que se perdeu a si própria e ao lugar dominante num mundo que julgara representação e descobre destino. Por isso, a sequência mais pasmosa do filme é aquela em que, sozinha na praia deserta, onde tenta esquecer Fabrizio, a vemos vestida de preto, caminhando de lá para cá e de cá para lá, amortalhada nos seus leves véus, com as ondas ao fundo a quebrarem-se contra as rochas. 

O duelo final é a última representação, pois que Monsieur De não desafia o rival por causa da mulher, mas o provoca por um gratuito pretexto político, que exige essa reparação. Mas, com a câmara rente ao solo a seguir os passos do juiz, nenhum deles representa quando se enfrentam. Nem representa Madame De que nada impede – nem o medo do escândalo, nem a doença, nem o medo da morte – de correr para junto dos dois homens, sabendo que a qualquer deles não chegará nunca mais. E nem precisa de ver quem caiu, para morrer, depois do primeiro tiro, suspensa do segundo que não se ouve, não houve e nunca haverá. 

«Le malheur s'invente» dissera-lhe, a certa altura, Monsieur De, quando lhe pede para ter cuidado. Mas inventa-se tanto como o bonheur que até aí fingiram viver. Basta um acaso para mudar um no outro. E se é possível dar cabo da invenção da felicidade, ninguém nunca conseguiu inventar remédio contra a invenção da infelicidade. 

«Le hasard n'a d'extraordinaire que le fait d'être normal.» Tudo cabe nisso. E é realmente extraordinário. 

Não me tirem este filme. Não me tirem deste filme. 

in «Os Filmes da Minha Vida», 2º Volume, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio 2007, pp. 179-184.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

130ª sessão: dia 16 de Maio (Quinta-Feira), às 21h30


Max Ophüls era um filho do teatro, foi onde começou na Alemanha em 1919, antes de trabalhar como director de diálogos para Anatole Litvak na UFA. Foge do nazismo em 1933, trabalhando na Holanda, em Itália e principalmente na França. Em 1941, vai viver para os Estados Unidos, onde só consegue realizar o primeiro filme em 1947. A nossa próxima sessão, Madame de..., faz parte da última e mais conhecida etapa da sua carreira cinematográfica, em França, e ilustra de forma paradigmática as suas obsessões, origens e métodos de trabalho.

Detendo-se sobre o livro homónimo de Louise de Vilmorin, o realizador disse a Yuri Annenkov, responsável pelo guarda-roupa do filme, que "a Madame de..., que tem muito charme, com isso é uma senhora bem vazia, não é? A única coisa que me tenta neste romance delgado em sentido directo, é a sua construção, há sempre o mesmo eixo em torno do qual a acção roda incessantemente como um carrossel, um eixo minúsculo e quase imperceptível, um par de brincos. Mas este pequeno detalhe do vestuário feminino cresce, aparece em grande plano e impõe-se, domina os destinos do herói do livro e leva-os finalmente na direcção da tragédia. Se é verdade que não considero Madame de um grande romance, ligo-me no entanto a ele pela bela astúcia literária e essa astúcia é a forma, lembra-me num domínio totalmente diferente o Boléro de Maurice Ravel, aí a acção ou mais exactamente a matéria harmónica roda, desenvolve-se e complica-se novamente em torno de um eixo melódico mínimo."

Robin Wood escreveu sobre Ophüls para a Criterion, em 2008, sustentando que "é nos últimos quatro filmes franceses (A Ronda, O Prazer, Madame de... e Lola Montès), todos centrados sobretudo em mulheres, que são permitidas a liberdade e a extravagância plenas à obsessão de Ophüls com o trabalho de câmara móvel. Alguns acham-na excessiva, um maneirismo deleitado só porque sim, mas geralmente há uma justificação para o que pode parecer auto-indulgência: afinal, se para Ophüls “a vida é movimento,” então esta mobilidade constante é a expressão de uma metafísica. Por outro lado, alguns tendem a subestimar ou denegrir os seus filmes americanos porque, derrotado pelo estilo de filmagem há muito estabelecido em Hollywood, foi incapaz de seguir o seu amor pela mobilidade de câmara aos seus extremos desejados. E no entanto se me pedissem para nomear os seus melhores cinco filmes, dois deles, Carta de Uma Desconhecida e The Reckless Moment, seriam do período de Hollywood. Este último, especialmente, mostra a sua adaptabilidade a diferentes circunstâncias estéticas/práticas: é um filme americano de forma tão completa mas com uma subtileza, uma finura e uma precisão que pertencem essencialmente a Ophüls. Os carris e as gruas ainda lá estão em abundância, mas são meticulosamente disciplinados, nunca meramente decorativos, sempre ao serviço da narrativa.

"É central à visão Ophülsiana da existência humana que não hajam finais felizes nos seus filmes. O final estragado de Caught (o terceiro dos seus filmes americanos) talvez fosse projectado como tal, mas mais pelos produtores do que pelo realizador, e o tradicional “final feliz” de The Reckless Moment (a restauração da família americana) está entre os mais sombrios de todos os de Ophüls. Há tragédias manifestas (La signora di tutti, muito cedo, e Lola Montès, muito tarde), mais Liebelei, Carta de Uma Desconhecida e Madame de..., feitos em três países e idiomas diferentes, a atravessar a sua carreira, mas formando uma óbvia trilogia com uma estrutura narrativa recorrente reconhecível: os três são todos histórias românticas de amor a culminar no duelo do amante com um militar (Ophüls odeia os militares, rígidos e inflexíveis), que mais parece uma execução; o carrasco é o marido da mulher tanto em Carta de Uma Desconhecida como em Madame de..."

No Dictionnaire, Jacques Lourcelles escreve que Madame de... é o "penúltimo filme de Max Ophüls. Esta história de uma jóia, de uma mentira e de uma paixão é sem dúvida a sua obra mais completa pelo equilíbrio que lá se encontra entre o classicismo secreto do cineasta (gosto pelas intrigas construídas e «aneladas», contenção e pudor, sentido da clareza) e o seu barroquismo evidente. É também o filme de Ophüls em que os partidos tomados pela mise en scène casam de forma mais natural com as ideias e a visão do mundo do autor. Ophuls odiava o plano fixo por ser contrário à vida e à realidade, e este filme praticamente não os tem. O movimento que anima cada uma das sequências e o conjunto da obra contém em si mesmo a resposta às questões que o universo de Ophüls coloca constantemente: o que é a frivolidade? Onde começa a gravidade? Este movimento transforma-as uma na outra tal como transforma as personagens a cada instante da sua vida. Foi nesse movimento incessante – mas que nunca volta atrás – dos corpos, das impressões, dos sentimentos e das paixões que Ophuls viu a verdade, superficial e trágica ao mesmo tempo, da condição humana. Intriga perfeita nas suas circunvoluções e na sua nitidez, diálogos irónicos e simples, de uma extrema qualidade literária, actores sensíveis e refinados, fotografia soberbamente contrastada, cenários cuja profusão desemboca no abstracto: nunca tanto como aqui dominou Ophüls o seu material nem concedeu uma narrativa completamente desligada de si mesmo, sendo simultaneamente uma confissão íntima. 

"BIBLIO: argumento e diálogos in « L'Avant-Scène » nº 351 (1986)."

Até Quinta-Feira!

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Europa '51 (1952) de Roberto Rossellini



por João Bénard da Costa

No belíssimo filme de Jorge Silva Melo Ninguém Duas Vezes, há uma cena em que Gina Santos ouve da filha – Manuela de Freitas – confidências sobre os problemas conjugais desta. E, com certa hesitação, sem poses “maternais”, diz mais ou menos, ter a impressão que à geração deles (geração de Manuela de Freitas, geração de Luís Miguel Cintra) falta uma palavra fora de moda: a caridade. E conta que uma vez, há muitos anos viu, no S. Luis um filme, “com Ingrid Bergman” sobre isso. Resume a história de Europa 51 e fala da imensa impressão que a obra lhe fez. Saiu do cinema, era de tarde, desceu o Chiado e a meio do caminho desatou a chorar. Um ataque de choro, ao “retardador”, sob a influência de Europa

Europa 51 é, de facto, um filme sobre a caridade. E é um filme que a quem for capaz de lhe aceder plenamente, pode provocar reacções dessas. Reacções não imediatas (o filme não convida à lágrima) mas reacções que se acumulam por sedimentação, com as da protagonista. Como para esta, há uma acumulação de factos e de dados que lenta e interiormente a transformam, desde aquele incrível grande plano em que a vemos na cama (depois da morte do filho, “transfigurada”) até ao outro grande plano, perto do final, quando a câmara a fixa contra as grades da janela do manicómio. Não queria chegar lá, mas acabei por falar nos grandes planos e não quero – nem por um segundo – ser mal interpretado. Se há muitos – e estarrecedores – grandes planos de Ingrid Bergman (diria, nos meus termos, os mais belos grandes planos da actriz que mais belos grandes planos teve) essa figura nunca é para confundir com o uso que outros cineastas – mesmo os maiores – dela fazem. São grandes planos que parecem acender-se e apagar-se, impondo não a sensação de proximidade (que habitualmente dão) mas a sensação de distância. De cada vez que o rosto de Ingrid fica sozinho no écran – e fica tantas vezes – temos fisicamente a sensação de estar mais longe dela, ou mais longe do mistério do que se passa nela. Dou só como exemplo (ao resto, vou voltar mais tarde) esse grande plano escuro quando a vemos na cama, no quarto em que se fechou depois do suicídio de Michel. Não é só o grande plano da dor de uma mãe que acaba de perder o seu único filho. Qualquer coisa de muito estranho, está já nessa máscara, que fica para além do sofrimento e para além do desgosto. Aquela mulher está a iniciar uma grande e misteriosa viagem. Desde esse breve sinal, pressentimos que é uma viagem sem regresso e que para Ingrid Bergman a vida – e a morte – nunca mais voltarão a ser o que foram. Ao contrário do que lhe diz o consolador marido, para ela, a vida não continua nem tem que continuar. Pelo menos, a vida que tinha. Já “passou para o lado de lá”, já está definitivamente cortada de tudo o que a cerca, embora não saibamos – nem ela saiba – que “lado de lá” é esse. Mas é outro lugar. 

Antes de continuar, apetece-me dar a palavra a Rossellini para ele explicar a génese deste filme. “Sabem como é que me veio a ideia de Europa 51? Foi durante as filmagens de Francesco, Giullare Di Dio (1950) quando estava a contar a história das Fioretti de S. Francisco de Assis a Aldo Fabrizi. Ele ouviu-me e depois virou-se para o secretário dele e disse: 

'O tipo era doido'. E o outro respondeu: 'Completamente doido'. 

Foi aí que pela primeira vez tive a ideia. Mas inspirei-me também num facto real, passado em Roma, durante a guerra. Era um comerciante da Piazza Venezia que vendia tecidos no mercado negro. Um dia – estava a mulher dele a atender uma cliente – aproximou-se e disse: 'Minha senhora, leve esse tecido, mas leve-o de graça. A guerra é uma coisa horrível e eu não quero continuar a participar neste crime'. Evidentemente, quando a senhora saiu da loja, marido e mulher desataram à zaragata e ela passou a fazer-lhe a vida negra, lá em casa. Como o problema não tinha solução, pois a mulher continuava a vender roupa no mercado negro, ou seja a cometer crimes contra a lei moral do marido, que é que fez? Foi denunciá-la à polícia. E contou na esquadra que tinha feito isto e mais aquilo e que queria ser preso para pagar e se libertar de tudo isso. A polícia mandou-o para um hospital psiquiátrico. Foi o psiquiatra quem me contou a história e disse-me uma coisa estranhíssima: 'Examinei o homem e dei-me conta que ele não tinha qualquer perturbação mental, que tinha apenas um problema moral. Fiquei tão perturbado que, durante a noite, reflectindo, disse com os meus botões: 'Devo julgá-lo como médico e não como homem. Ora, como médico, só posso perguntar-me se este homem se comporta como a maioria dos homens. Evidentemente, não se comporta como a maioria dos homens. Resolvi, por isso, mandá-lo para o manicómio'. 

Como lhes disse o facto é verdadeiro e só calo, por discrição, o nome do médico, aliás muito conhecido e muito célebre. Fartei-me de discutir o caso com ele. Mas ele não saía da sua. 'Tenho que dissociar, em mim, o ser humano do cientista. A ciência tem os seus limites. Deve calcular, ver medir, regular-se pelo que conquistou e pelo que conhece. Tudo quanto esteja fora dos seus limites deve ser completamente esquecido'. 

Num século dominado pela ciência – e sabemos bem como ela é imperfeita e como são atrozes os seus limites – não sei até que ponto é que convém que nos fiemos nela. Esse é o argumento de Europa 51. A minha ideia era muito clara: S. Francisco, o facto que lhes contei e Simone Weil estão na origem da história”. 

A grande perturbação de Europa 51 é, facto, da mesma ordem de perturbação do completamente “inexplicável” dos santos ou dos loucos. Sem nos dar a certeza que à protagonista se aplique qualquer desses termos. No plano final (o famoso contra-plongée em que vemos Ingrid Bergman à janela) ouvimos os grupos de visitantes discutir precisamente se ela é santa (como lhe chamam os “populares”, aqueles de quem foi ou para quem foi benfeitora) ou se está louca (como a família, os médicos e os padres sustentam). Santa e Pazza são os termos que se sobrepõem na banda sonora. A classificação de santidade rejeitou-a Ingrid Bergman na espantosa sequência do diálogo com o padre. Quando este lhe pergunta se tudo o que ela fez foi por amor, Ingrid Bergman tem um estranho rictus e responde com o termo oposto. Não foi o amor mas o ódio, ódio a tudo quanto foi, ódio à vida que levou, ódio à vida que a maioria das pessoas leva. Mas esse ódio não se exprime – e por isso ela é considerada louca – em nenhuma das formas organizadas dele. Debalde Andrea, o amigo comunista, tenta canalizar a transformação de Irene em revolta social ou em consciência de classe. A vida das pessoas é horrível e não pode mudar. Nenhuma causa a conquistará. Não se explicando a sua mudança por nenhum acto de fé (não aderiu a um partido ou ideologia, não se converteu, não quer entrar para um convento) não se explicando, também, por razões sentimentais (jamais se torna amante de Andrea, contra o que este desejava e o marido supôs) só resta a explicação que está louca mesmo. Louca estará, no sentido da classificação usada pelo médico citado por Rossellini: não se comporta como a maioria das pessoas. Mas se sentimos que “está fora dos limites” sentimos que a loucura é palavra e classificação demasiado fácil (e demasiado cómoda) para tudo o que sente e vive. 

Alguns comentadores simplificaram muito opondo as sequências iniciais (o jantar do início do filme, tudo quanto se passa até ao suicídio da criança) ao comportamento de Ingrid Bergman depois da sua longa noite. Género: será mais louca a vida dela depois (com Giulietta Masina, com os pobres dos bairros de lata, com a prostituta, com os doentes do manicómio) ou a vida dela antes, naquela farsa social de senhora de sociedade? A questão é irrelevante, porque não se trata de satirizar ou condenar o comportamento dos ricos, ou as convenções da gente bem instalada na vida. A questão relevante – a única – é olhar para a normalidade (normalidade dentro de um certo estatuto e de certas convenções) como se fosse completamente anormal e olhar para a anormalidade, como se fosse normal

Jamais Rossellini condena os outros (o marido, a mãe, os amigos). Limita-se a mostrar-nos a sua estraneidade perante o que não podem perceber, paralela à estraneidade de Ingrid Bergman que subitamente deixou também de poder perceber esses outros. Entre ela e os outros deu-se o corte radical e não é mais certo que ela seja percebida pelos pobres do que pelos ricos. 

A fabulosa sequência da vigília da agonia da prostituta é emblemática. Nunca Ingrid Bergman traduz ou exprime qualquer adesão à vida ou à morte daquela mulher. Nunca há nenhuma moral do género: “As prostitutas entrarão à nossa frente no reino dos céus”. O que a retém ali é apenas a caridade no tal sentido misterioso e amplíssimo: a com-paixão (em sentido etimológico) por uma mulher que está a sofrer e está a morrer. O absoluto – ou a razão de tudo. Por isso, o seu ataque de choro durante a extrema-unção. O povo reza com o padre e ao padre responde no Kyrie Eleyson (Senhor, tende piedade de nós). Ingrid Bergman não reza e está sozinha. Não tem ninguém a quem pedir piedade e ninguém poderá ouvir esse pedido. É esse absurdo que a faz chorar, como são absurdos os gestos redentores que pratica (o miúdo assassino que incita a fugir, a louca em quem domina a crise). Sabe que tem que os salvar, sem saber de quê ou porquê. Nenhum psicologismo – nenhuma ética – é válido perante o que é completamente inexplicável

E esse é o imenso mistério de Europa 51. Nenhuma chave temos, nenhuma chave tem Ingrid Bergman. Não há explicação. Nem sequer a do absurdo. 

Porque Europa 51 é o contrário de um filme pessimista ou nihilista, que deixasse tudo de rastos e nos mostrasse a inutilidade e o vazio de tudo. Ingrid Bergman salva. Mas é também o contrário de um filme redutível a uma grande explicação reconfortante (religiosa, metafísica ou ética) porque nenhuma dessas zonas abarca o mistério radical do personagem. Não há explicações e a grande beleza – e a grande paz – vem de a não haver. Duma tamanha harmonia numa tamanha obscuridade. 

E a conciliação (ou reconciliação) entre a obscuridade e a harmonia dá-se em torno da palavra caridade e do grande mistério dela. Que eu fale tanto de mistério, irrita muita gente que acha – e muito bem – que a palavra nada quer dizer ou nada explica. O que Rossellini mostra em Europa 51 é que há uma grande e abissal diferença entre “nada explicar” e “nada querer dizer”. Depois, não fui eu quem inventou a palavra mistério para a palavra caridade. Quem lhe chamou assim foi S. Paulo. E, referindo-se ao mistério da fé, ao mistério da esperança e ao mistério da caridade, também foi S. Paulo quem disse que “a maior das três” é a caridade. “E se não tiveres a caridade” de nada serve teres fé, de nada serve teres esperança. 

Ingrid Bergman em Europa 51 perdeu a fé e perdeu a esperança. Mas guardou a caridade. O que é que isso quer dizer? Quer dizer conservou a capacidade dos tais grandes planos de que falei no início e que dão a ela e ao filme o seu sentido mais fundo. Em cada um dos episódios em que Europa 51 é decomponível, há um desses grandes planos que transformam o episódio mais banal no mais absoluto. E assim nos fazem perceber como, para ela, esse banal é idêntico ao absoluto. Desde a Praça do Capitólio ao rosto dos pobres que visita, desde as escadas que sobre sempre às grades a que, no fim, se debruça. E talvez o melhor exemplo seja o mais banal: o olhar com que assiste à entrada do rapaz da leitaria no quarto da prostituta. Só há duas maneiras de olhar para aquela situação: ou como um fait-divers ou com o horror de quem, percebendo a situação, se choca com a confusão entre o corpo moribundo da rapariga e o corpo “para comer” que o rapaz ainda vê nela (a mão que ele lhe enfia na camisa). Rossellini inventou uma terceira maneira de olhar. A que percebe tudo e tudo vê como se visse pela primeira vez. É muito simples? Antes pelo contrário, é muito complicado. E é por isso que é tão misterioso. 

Vejo e revejo este filme e de cada vez o acho mais misterioso e mais claro. Mais intraduzível em palavras. Do que estou certo é de que este é um dos cinco ou seis filmes maiores da história do cinema, uma das obras que nos redime de 95% de vulgaridade maiores ou menores. Europa 51, é o filme de todos os milagres. Rohmer escreveu, um dia: “Como explicar, uma vez que é esse milagre enquanto tal que nos é mostrado?” E, no fundo, ninguém precisa de explicações para nada. Uns (irmãos de Alexander Knox) porque, por mais que lhe expliquem, não vêem o que não viram. Outros (irmãos de Ingrid Bergman) porque não precisam que lhe expliquem nada. Nem foi a carne nem foi o sangue que lho explicou, mas alguém ou alguma coisa que aqui não sei nem quero nomear. 

in «Folhas da Cinemateca», distribuída a propósito do ciclo da Cinemateca Portuguesa “Ingrid Bergman – O Permanente Susto de Si Própria”, de 1 a 28 de Julho de 2015.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

129ª sessão: dia 9 de Maio (Quinta-Feira), às 21h30


Nas nossas dúvidas e inquietações neste mundo, e à falta dos pequenos milagres que nos fazem os dias, talvez não possamos fazer mais nada senão retornar às descobertas luminosas de Roberto Rossellini e Ingrid Bergman nos destroços da Itália dos anos 50. Assim, depois de Viagem em Itália, Europa 51 é a nossa próxima sessão no auditório da Casa do Professor.

Em entrevista a Éric Rohmer, que ainda assinava com o seu verdadeiro nome, Maurice Schérer, e a François Truffaut,  dos Cahiers du Cinéma, Rossellini, questionado sobre Europa 51, respondeu-lhes com um "sabem como é que a ideia me surgiu? Estava a rodar Francesco, giullare di Dio e a contar as «Fioretti» a Fabrizi; depois de me ter ouvido bem, ele virou-se para o secretário dele e disse: «era um louco»; e foi quando o outro «completamente louco» que me surgiu a primeira ideia. Também me inspirei num facto que aconteceu em Roma durante a guerra: um comerciante da Piazza Venezia vendia tecido no mercado negro; num dia em que a mulher dele servia uma cliente, ele aproxima-se e diz: «Senhora, fique com este tecido, dou-o como presente porque não quero participar deste crime, acho que a guerra é uma coisa horrível.» Claro que quando a cliente saiu da loja o homem discutiu com a mulher, e esta tornou-lhe impossível a vida em casa; mas o problema moral manteve-se; como não se conseguiam resolver as coisas e como a mulher dele continuava a cometer crimes contra a lei moral dele, o que é que ele fez? Foi-se denunciar à polícia: «Fiz isto, isto e isto, preciso de desabafar estas coisas todas». A polícia enviou-o em seguida para o hospital psiquiátrico... E o psiquiatra disse-me uma coisa bem perturbadora: «examinei-o e apercebi-me que esse homem só «tinha» um problema moral, eu estava tão agitado que reflecti durante a noite e disse a mim próprio: «tenho de o julgar como cientista, e não como homem. Como cientista, tenho de ver se este homem se comporta como o homem médio. Ele não se comporta como o homem médio: portanto releguei-o à casa dos loucos.» Isto é um facto verdadeiro e, por discrição, não vou dizer o nome deste grande cientista. Discuti isto muitas vezes com ele e ele disse-me: «Eu próprio tenho de dissociar em mim mesmo o ser humano do cientista, a ciência tem os seus limites, a ciência tem de calcular, ver, medir e reger-se pelo que conquistou, pelo que conhece. É preciso esquecer completamente tudo aquilo que está fora dos seus limites.»

"Num século que é dominado pela ciência - e nós sabemos que ela é imperfeita, que tem limites realmente atrozes - não sei até que ponto é que convém fiar-mo-nos nela. É esse o tema do filme. A minha ideia era muito clara: estiveram na sua origem São Francisco, o facto que vos contei e Simone Weill."

Para a Criterion, Fred Camper escreveu que "no âmago da arte de Roberto Rossellini está um trio de oposições cruciais, entre o humano e o desumano, entre estados activos e congelados de existência, e entre a estreiteza do materialismo egocêntrico e a infinitude de um amor maior e que abrange tudo. Desde os momentos de compreensão quase milagrosa entre culturas em Paisà (1946) até aos seus compromissos reveladores com transições-chave da história nos seus filmes para a televisão dos anos 60, Rossellini sempre perseguiu noções de consciência perpetuamente crescente. E essa busca estava presente não só nas suas narrativas mas também visualmente. Ele repudia a imagem bonita e perfeitamente composta; a sua abordagem ao estilo cinematográfico muda incessantemente; as suas imagens parecem sempre ir além das suas fronteiras.

"Esta visão poderosamente expansiva está enraizada numa dança de movimentos de câmara e de personagens e nas formas inconstantes como ele usa as imagens, um estilo áspero e até espontâneo de forma um pouco enganadora que se afasta do formalismo complacente e fechado em si mesmo de filmes mais tradicionais—parcialmente derivado das longas histórias da pintura e da fotografia—em prol de um anti-formalismo que se procura abrir para a realidade retratada. A abertura estende-se aos seus cortes, aos dissolves, e aos movimentos de câmara, que também servem para alargar o contexto do que vemos, com cada momento a interromper o último, quase como uma ferida que deixa entrar o mundo. O efeito destas investidas até ao limite, literalmente produzido pelos zooms omnipresentes dos seus filmes para a televisão, também está presente na intensidade visual dos seus primeiros filmes, como na forma em que as imagens parecem fazer pressão contra as suas arestas com uma intensidade sobrenatural em Europa 51 (1952)."

Jacques Lourcelles escreve no Dictionnaire du Cinéma que "no seu lançamento, os filmes de Rosellini com Ingrid Bergman pareceram para alguns o que o cinema tinha dado de mais moderno. Hoje isso ainda é verdade. Esta modernidade, que à época foi recebida com desprezo ou indiferença, é difícil de situar porque está presente em todo o filme. Isto deve-se em parte à sua dupla natureza de parábola e poema. Efectivamente, a parábola seria de pouco valor se não se encarnasse, por exemplo, na beleza da luz branca e cinzenta que inunda o filme, na doçura implacável da progressão da narrativa e no brilho interior do rosto de Bergman, que constituem por assim dizer a matéria do poema. A parábola e o poema são ambos baseados num mínimo de factos e expressam uma vontade de aprimoramento que também se iria encontrar na mesma altura em Lang ou Jacques Tourneur. Mas aqui o aprimoramento é como que recompensado, senão de um suplemento de alma, pelo menos de um suplemento de encarnação (no sentido católico do termo). Quanto à parábola, foi o próprio Rossellini quem disse (in «Cahiers du cinéma» nº 37) de onde vinha e o que é que a tinha inspirado. Em primeiro lugar, Aldo Fabrizzi, na rodagem de Francesco, giullare di Dio, a exclamar que São Francisco é louco; em segundo lugar, a interrogação de um grande psiquiatra (encontrado pelo autor) que perguntava a si mesmo se tinha tido razão em declarar louco um contrabandista ocasional do mercado negro, que se tinha denunciado à polícia por razões morais; em terceiro lugar, a experiência de Simone Weil (1909-1943). Aqui tudo roda em torno da santidade e da loucura, e da inexistência dos nossos critérios face às forças que os ultrapassam. O poema, na mais pura tradição neo-realista (mas poder-se-á falar de tradição para qualquer coisa que tinha acabado de nascer e ainda era tão nova?), casa-se com a solidão da heroína durante a sua jornada e as suas descobertas. Graças a um trauma e ao seu luto, ela vai descobrir que o amor que tem por si própria, que sente pelo próximo e pela humanidade inteira, é de um só molde que não se pode dividir nem especializar. A partir daí, é considerada louca pelos seus (os da família e da classe dela). As respostas dela às questões que lhe põem, mantidas todas as proporções,  evocam a insolência, o engenho e a força de verdade que emanam das respostas de Joana d'Arc, tal como são relatadas nas actas do seu processo. Como a sua heroína, o filme pode ser chamado de louco devido à sua humildade e à sua ambição, que são ambos extremos. Rossellini quer fazer o diagnóstico do Ocidente no próprio momento em que filma. Define a doença do Ocidente como uma ausência de síntese entre a agressividade e a revolta marxistas, por um lado, e esse amor de essência espiritual, por outro lado, que se destrói a si mesmo quando não quer descer ao mundo para o mudar. Consciente ou inconscientemente, Rossellini construiu a sua narrativa, e especialmente o seu epílogo, de forma a que fossem convenientemente inadmissíveis, e suscitassem assim uma reflexão salutar no espectador. Nessa reflexão, o espectador vê-se muito rápido tão sozinho como a heroína no começo do filme. Sob este ponto de vista, Europa 51 termina numa nota muito mais dolorosa que os outros três Bergman-Rossellini contemporâneos (Stromboli, Viagem em Itália, O Medo).

"N.B. O filme saiu em França em versões francesa e inglesa. A versão italiana corrente (inédita em França), em que Bergman é dobrada, é mais longa e inclui especialmente mais uma cena: a procura de um médico por Bergman para tratar a prostituta. Uma versão italiana ainda mais completa, conservada nos arquivos do Festival de Veneza, contém uma cena completamente inédita (Bergman, depois do seu dia de trabalho na fábrica, a assistir à projecção de um documentário industrial num cinema). A versão inglesa é a melhor porque é a única em que se ouve a voz de Bergman."

Até Quinta!