sexta-feira, 10 de maio de 2019

Europa '51 (1952) de Roberto Rossellini



por João Bénard da Costa

No belíssimo filme de Jorge Silva Melo Ninguém Duas Vezes, há uma cena em que Gina Santos ouve da filha – Manuela de Freitas – confidências sobre os problemas conjugais desta. E, com certa hesitação, sem poses “maternais”, diz mais ou menos, ter a impressão que à geração deles (geração de Manuela de Freitas, geração de Luís Miguel Cintra) falta uma palavra fora de moda: a caridade. E conta que uma vez, há muitos anos viu, no S. Luis um filme, “com Ingrid Bergman” sobre isso. Resume a história de Europa 51 e fala da imensa impressão que a obra lhe fez. Saiu do cinema, era de tarde, desceu o Chiado e a meio do caminho desatou a chorar. Um ataque de choro, ao “retardador”, sob a influência de Europa

Europa 51 é, de facto, um filme sobre a caridade. E é um filme que a quem for capaz de lhe aceder plenamente, pode provocar reacções dessas. Reacções não imediatas (o filme não convida à lágrima) mas reacções que se acumulam por sedimentação, com as da protagonista. Como para esta, há uma acumulação de factos e de dados que lenta e interiormente a transformam, desde aquele incrível grande plano em que a vemos na cama (depois da morte do filho, “transfigurada”) até ao outro grande plano, perto do final, quando a câmara a fixa contra as grades da janela do manicómio. Não queria chegar lá, mas acabei por falar nos grandes planos e não quero – nem por um segundo – ser mal interpretado. Se há muitos – e estarrecedores – grandes planos de Ingrid Bergman (diria, nos meus termos, os mais belos grandes planos da actriz que mais belos grandes planos teve) essa figura nunca é para confundir com o uso que outros cineastas – mesmo os maiores – dela fazem. São grandes planos que parecem acender-se e apagar-se, impondo não a sensação de proximidade (que habitualmente dão) mas a sensação de distância. De cada vez que o rosto de Ingrid fica sozinho no écran – e fica tantas vezes – temos fisicamente a sensação de estar mais longe dela, ou mais longe do mistério do que se passa nela. Dou só como exemplo (ao resto, vou voltar mais tarde) esse grande plano escuro quando a vemos na cama, no quarto em que se fechou depois do suicídio de Michel. Não é só o grande plano da dor de uma mãe que acaba de perder o seu único filho. Qualquer coisa de muito estranho, está já nessa máscara, que fica para além do sofrimento e para além do desgosto. Aquela mulher está a iniciar uma grande e misteriosa viagem. Desde esse breve sinal, pressentimos que é uma viagem sem regresso e que para Ingrid Bergman a vida – e a morte – nunca mais voltarão a ser o que foram. Ao contrário do que lhe diz o consolador marido, para ela, a vida não continua nem tem que continuar. Pelo menos, a vida que tinha. Já “passou para o lado de lá”, já está definitivamente cortada de tudo o que a cerca, embora não saibamos – nem ela saiba – que “lado de lá” é esse. Mas é outro lugar. 

Antes de continuar, apetece-me dar a palavra a Rossellini para ele explicar a génese deste filme. “Sabem como é que me veio a ideia de Europa 51? Foi durante as filmagens de Francesco, Giullare Di Dio (1950) quando estava a contar a história das Fioretti de S. Francisco de Assis a Aldo Fabrizi. Ele ouviu-me e depois virou-se para o secretário dele e disse: 

'O tipo era doido'. E o outro respondeu: 'Completamente doido'. 

Foi aí que pela primeira vez tive a ideia. Mas inspirei-me também num facto real, passado em Roma, durante a guerra. Era um comerciante da Piazza Venezia que vendia tecidos no mercado negro. Um dia – estava a mulher dele a atender uma cliente – aproximou-se e disse: 'Minha senhora, leve esse tecido, mas leve-o de graça. A guerra é uma coisa horrível e eu não quero continuar a participar neste crime'. Evidentemente, quando a senhora saiu da loja, marido e mulher desataram à zaragata e ela passou a fazer-lhe a vida negra, lá em casa. Como o problema não tinha solução, pois a mulher continuava a vender roupa no mercado negro, ou seja a cometer crimes contra a lei moral do marido, que é que fez? Foi denunciá-la à polícia. E contou na esquadra que tinha feito isto e mais aquilo e que queria ser preso para pagar e se libertar de tudo isso. A polícia mandou-o para um hospital psiquiátrico. Foi o psiquiatra quem me contou a história e disse-me uma coisa estranhíssima: 'Examinei o homem e dei-me conta que ele não tinha qualquer perturbação mental, que tinha apenas um problema moral. Fiquei tão perturbado que, durante a noite, reflectindo, disse com os meus botões: 'Devo julgá-lo como médico e não como homem. Ora, como médico, só posso perguntar-me se este homem se comporta como a maioria dos homens. Evidentemente, não se comporta como a maioria dos homens. Resolvi, por isso, mandá-lo para o manicómio'. 

Como lhes disse o facto é verdadeiro e só calo, por discrição, o nome do médico, aliás muito conhecido e muito célebre. Fartei-me de discutir o caso com ele. Mas ele não saía da sua. 'Tenho que dissociar, em mim, o ser humano do cientista. A ciência tem os seus limites. Deve calcular, ver medir, regular-se pelo que conquistou e pelo que conhece. Tudo quanto esteja fora dos seus limites deve ser completamente esquecido'. 

Num século dominado pela ciência – e sabemos bem como ela é imperfeita e como são atrozes os seus limites – não sei até que ponto é que convém que nos fiemos nela. Esse é o argumento de Europa 51. A minha ideia era muito clara: S. Francisco, o facto que lhes contei e Simone Weil estão na origem da história”. 

A grande perturbação de Europa 51 é, facto, da mesma ordem de perturbação do completamente “inexplicável” dos santos ou dos loucos. Sem nos dar a certeza que à protagonista se aplique qualquer desses termos. No plano final (o famoso contra-plongée em que vemos Ingrid Bergman à janela) ouvimos os grupos de visitantes discutir precisamente se ela é santa (como lhe chamam os “populares”, aqueles de quem foi ou para quem foi benfeitora) ou se está louca (como a família, os médicos e os padres sustentam). Santa e Pazza são os termos que se sobrepõem na banda sonora. A classificação de santidade rejeitou-a Ingrid Bergman na espantosa sequência do diálogo com o padre. Quando este lhe pergunta se tudo o que ela fez foi por amor, Ingrid Bergman tem um estranho rictus e responde com o termo oposto. Não foi o amor mas o ódio, ódio a tudo quanto foi, ódio à vida que levou, ódio à vida que a maioria das pessoas leva. Mas esse ódio não se exprime – e por isso ela é considerada louca – em nenhuma das formas organizadas dele. Debalde Andrea, o amigo comunista, tenta canalizar a transformação de Irene em revolta social ou em consciência de classe. A vida das pessoas é horrível e não pode mudar. Nenhuma causa a conquistará. Não se explicando a sua mudança por nenhum acto de fé (não aderiu a um partido ou ideologia, não se converteu, não quer entrar para um convento) não se explicando, também, por razões sentimentais (jamais se torna amante de Andrea, contra o que este desejava e o marido supôs) só resta a explicação que está louca mesmo. Louca estará, no sentido da classificação usada pelo médico citado por Rossellini: não se comporta como a maioria das pessoas. Mas se sentimos que “está fora dos limites” sentimos que a loucura é palavra e classificação demasiado fácil (e demasiado cómoda) para tudo o que sente e vive. 

Alguns comentadores simplificaram muito opondo as sequências iniciais (o jantar do início do filme, tudo quanto se passa até ao suicídio da criança) ao comportamento de Ingrid Bergman depois da sua longa noite. Género: será mais louca a vida dela depois (com Giulietta Masina, com os pobres dos bairros de lata, com a prostituta, com os doentes do manicómio) ou a vida dela antes, naquela farsa social de senhora de sociedade? A questão é irrelevante, porque não se trata de satirizar ou condenar o comportamento dos ricos, ou as convenções da gente bem instalada na vida. A questão relevante – a única – é olhar para a normalidade (normalidade dentro de um certo estatuto e de certas convenções) como se fosse completamente anormal e olhar para a anormalidade, como se fosse normal

Jamais Rossellini condena os outros (o marido, a mãe, os amigos). Limita-se a mostrar-nos a sua estraneidade perante o que não podem perceber, paralela à estraneidade de Ingrid Bergman que subitamente deixou também de poder perceber esses outros. Entre ela e os outros deu-se o corte radical e não é mais certo que ela seja percebida pelos pobres do que pelos ricos. 

A fabulosa sequência da vigília da agonia da prostituta é emblemática. Nunca Ingrid Bergman traduz ou exprime qualquer adesão à vida ou à morte daquela mulher. Nunca há nenhuma moral do género: “As prostitutas entrarão à nossa frente no reino dos céus”. O que a retém ali é apenas a caridade no tal sentido misterioso e amplíssimo: a com-paixão (em sentido etimológico) por uma mulher que está a sofrer e está a morrer. O absoluto – ou a razão de tudo. Por isso, o seu ataque de choro durante a extrema-unção. O povo reza com o padre e ao padre responde no Kyrie Eleyson (Senhor, tende piedade de nós). Ingrid Bergman não reza e está sozinha. Não tem ninguém a quem pedir piedade e ninguém poderá ouvir esse pedido. É esse absurdo que a faz chorar, como são absurdos os gestos redentores que pratica (o miúdo assassino que incita a fugir, a louca em quem domina a crise). Sabe que tem que os salvar, sem saber de quê ou porquê. Nenhum psicologismo – nenhuma ética – é válido perante o que é completamente inexplicável

E esse é o imenso mistério de Europa 51. Nenhuma chave temos, nenhuma chave tem Ingrid Bergman. Não há explicação. Nem sequer a do absurdo. 

Porque Europa 51 é o contrário de um filme pessimista ou nihilista, que deixasse tudo de rastos e nos mostrasse a inutilidade e o vazio de tudo. Ingrid Bergman salva. Mas é também o contrário de um filme redutível a uma grande explicação reconfortante (religiosa, metafísica ou ética) porque nenhuma dessas zonas abarca o mistério radical do personagem. Não há explicações e a grande beleza – e a grande paz – vem de a não haver. Duma tamanha harmonia numa tamanha obscuridade. 

E a conciliação (ou reconciliação) entre a obscuridade e a harmonia dá-se em torno da palavra caridade e do grande mistério dela. Que eu fale tanto de mistério, irrita muita gente que acha – e muito bem – que a palavra nada quer dizer ou nada explica. O que Rossellini mostra em Europa 51 é que há uma grande e abissal diferença entre “nada explicar” e “nada querer dizer”. Depois, não fui eu quem inventou a palavra mistério para a palavra caridade. Quem lhe chamou assim foi S. Paulo. E, referindo-se ao mistério da fé, ao mistério da esperança e ao mistério da caridade, também foi S. Paulo quem disse que “a maior das três” é a caridade. “E se não tiveres a caridade” de nada serve teres fé, de nada serve teres esperança. 

Ingrid Bergman em Europa 51 perdeu a fé e perdeu a esperança. Mas guardou a caridade. O que é que isso quer dizer? Quer dizer conservou a capacidade dos tais grandes planos de que falei no início e que dão a ela e ao filme o seu sentido mais fundo. Em cada um dos episódios em que Europa 51 é decomponível, há um desses grandes planos que transformam o episódio mais banal no mais absoluto. E assim nos fazem perceber como, para ela, esse banal é idêntico ao absoluto. Desde a Praça do Capitólio ao rosto dos pobres que visita, desde as escadas que sobre sempre às grades a que, no fim, se debruça. E talvez o melhor exemplo seja o mais banal: o olhar com que assiste à entrada do rapaz da leitaria no quarto da prostituta. Só há duas maneiras de olhar para aquela situação: ou como um fait-divers ou com o horror de quem, percebendo a situação, se choca com a confusão entre o corpo moribundo da rapariga e o corpo “para comer” que o rapaz ainda vê nela (a mão que ele lhe enfia na camisa). Rossellini inventou uma terceira maneira de olhar. A que percebe tudo e tudo vê como se visse pela primeira vez. É muito simples? Antes pelo contrário, é muito complicado. E é por isso que é tão misterioso. 

Vejo e revejo este filme e de cada vez o acho mais misterioso e mais claro. Mais intraduzível em palavras. Do que estou certo é de que este é um dos cinco ou seis filmes maiores da história do cinema, uma das obras que nos redime de 95% de vulgaridade maiores ou menores. Europa 51, é o filme de todos os milagres. Rohmer escreveu, um dia: “Como explicar, uma vez que é esse milagre enquanto tal que nos é mostrado?” E, no fundo, ninguém precisa de explicações para nada. Uns (irmãos de Alexander Knox) porque, por mais que lhe expliquem, não vêem o que não viram. Outros (irmãos de Ingrid Bergman) porque não precisam que lhe expliquem nada. Nem foi a carne nem foi o sangue que lho explicou, mas alguém ou alguma coisa que aqui não sei nem quero nomear. 

in «Folhas da Cinemateca», distribuída a propósito do ciclo da Cinemateca Portuguesa “Ingrid Bergman – O Permanente Susto de Si Própria”, de 1 a 28 de Julho de 2015.

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