quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

It's a Wonderful Life (1946) de Frank Capra



por João Palhares

Há-que voltar a Chaplin, mais uma vez. Ao barco d’O Emigrante de 1917 - curta com envergadura de longa que há muito pouco tempo se reviu e parece inaugurar (e conter) tanta mas tanta coisa -, cheio de viajantes famintos e que tentam a sua sorte na América sob a alçada da senhora verde na Estátua da Liberdade. Lá, estão Chaplin e Edna Purviance mas podia ser Frank Capra com a sua família em 1903, vindos de Bisaquino, na Sicília. “Estamos todos juntos – não se tem privacidade. Tem-se um catre. Muito poucas pessoas têm malas ou qualquer coisa que ocupe espaço. Têm só o que conseguem carregar nas mãos delas ou num saco. Ninguém tira a roupa. Não há ventilação, e fede como tudo. Estão todos desgraçados. É o sítio mais degradante em que se pode estar,” disse Capra. À chegada e ao avistar a grande senhora, o pai, Salvatore Capra, exclama “Ciccio, olha! Olha para aquilo! É a maior luz desde a estrela de Belém. É a luz da liberdade! Lembra-te disso. Liberdade.” Estranho nenhum às misérias da vida, fosse nesse barco atulhado de gente ou no bairro de Little Sicily onde passou a infância, em Los Angeles, Capra acreditou sempre na bondade e no potencial dos homens, erigindo estrelas comparáveis às de Belém e da tocha da ilha da Liberdade e que terão guiado tantos dos desalmados e desvalidos deste mundo. Lady for a Day, It Happened One Night, Mr. Smith Goes to Washington, Meet John Doe e o filme que hoje vamos ver, It’s a Wonderful Life, formam uma grande constelação nesse belo firmamento. 

O mito do sonho americano? Não há mito nem sonho, não. O George Bailey do grande James Stewart (que se expressa de braços caídos mas de queixo levantado) vem a si no clímax do filme sem promessas de melhorias na sua antes triste situação. Continua a dever os oito mil dólares, continua a haver um mandado pela sua prisão e acha isso “wonderful”. Eis uma das grandes maravilhas deste maravilhoso filme, mostrar como um homem aprende a dar valor a si próprio e às decisões que toma na vida, aceitar-se pelo que é, e correr desvairado pelas ruas para abraçar e beijar aqueles que ama. É para todos ou só para alguns? É um sonho? Da primeira vez podemos (e devemos) deixar-nos levar pela emoção do final (e como se chora nesse final, desde a chegada de Stewart à entrada dos amigos e conhecidos que o querem ajudar agora a ele) e achar que ela era mais que certa, que George se ergueu pela promessa de felicidade e de retribuição pelo mal que lhe fizeram. Mas George teve que encarar o abismo, levantar-se e deixar de o ver como um abismo. Aprender que, como nos diz o título brasileiro deste filme, “a felicidade não se compra” e que, finalmente, “it’s a wonderful life”, como nos diz o original. 

É também a emoção do final que nos faz esquecer (mas Capra não se esquece, o filme foi escrito e re-escrito até à perfeição) que, tal como acontece no mundo real (e não no mundo dos sonhos), os homens que vivem para explorar os outros podem não receber castigo. O Henry Potter de Lionel Barrymore, com o seu busto (e o seu complexo) de Napoleão no escritório, enriquece à custa daquela cidade, daquelas pessoas, e rouba os oito mil dólares a Bailey sem que seja condenado ou tenha aquilo que merece. Não é difícil, felicidade assim? Aceitar que esse Potter pode ter todo o dinheiro do mundo mas não tem coisas mais importantes: um amigo que seja, uma família, respeito por si próprio. “Os meus filmes têm que deixar todo o homem, mulher, e criança saber que Deus os ama, que eu os amo, e que a paz e a salvação só se tornarão uma realidade quando todos eles aprenderem a amar-se uns aos outros”. É um sonho? 

Também o Long John Willoughby de Gary Cooper se quer matar na noite de Natal em Meet John Doe. É também surpreendido quando descobre que não é uma ilha, que há pessoas que dependem dele e vão sentir a sua falta. “If it’s worth dying for, isn’t it worth living for?”, pergunta-lhe a bela e sofrida Barbara Stanwyck. Viver é mais difícil que morrer? Ficar é mais difícil que partir? Então Capra andou a vender-nos sonhos e afinal, nos filmes dele, são tão difíceis de realizar, um verdadeiro pesadelo? Ou andou-nos antes a mostrar que é suposto ser difícil manter-nos fiéis a nós próprios ou estender a mão a alguém, neste mundo? O George Bailey em criança não leva porrada velha do patrão antes que este perceba que não tinha razão e que o miúdo o estava a tentar ajudar? Cena terrível, essa, quem é que não chora a ver isso? Fica marcado para a vida. Ninguém num filme de Capra recebe benesses numa bandeja apenas por viver e sofrer neste mundo, que ele sabe muito bem que a igualdade não é para todos, nem Capra é o “sonho americano personificado”. É a tenacidade e a obstinação de Stewart e Cooper que os transforma em heróis mesmo à frente dos nossos olhos, a capacidade de se levantarem quando não têm razões para isso e só para enfrentarem outra vez os mesmos problemas e as mesmas tristezas. Ora, bolas, é um sonho, isso? 

Fala-se pouco da violência que atravessa os filmes de Capra, das traições e das brutalíssimas lutas no negríssimo Meet John Doe, das constantes reveses de James Stewart no parlamento de Mr. Smith Goes to Washington à empresa nunca lucrativa de George Bailey neste filme. Ninguém sobe de classe por fazer o bem num filme de Capra, aprendem “apenas” que a maior recompensa que existe é descobrirmo-nos no processo. Não desistir. Tentar uma e outra vez. E outra e outra até se conseguir alguma coisa. Não convém, portanto, pensar que isto é coisa de sonhos e da imaginação porque senão a vida torna-se mesmo num pesadelo. Os filmes de Frank Capra não falam de outra coisa, destes avanços e recuos no terreno da auto-comiseração e do respeito próprio (é preciso passar muito tempo na primeira para começar a ver luzes do segundo, é o que nos diz) o que é já matéria infindável. São manuais de sobrevivência para todos os homens: “A paz e a salvação se tornarão uma realidade quando todos eles aprenderem a amar-se uns aos outros.” 

E quanto custa esse “só”? Tentamos este ano? Para o ano? Talvez os filmes de Capra sejam fabulosos não por nos mostrarem coisas impossíveis e belas mas por exigirem tanto de nós. 

Obrigado, Sr. Capra. Vamos tentanto. 

E Feliz Natal.

domingo, 18 de dezembro de 2016

40ª sessão: dia 20 de Dezembro (Terça-Feira), às 21h30


James Stewart, Donna Reed, Thomas Mitchell, Ward Bond, Lionel Barrymore, Gloria Grahame e Frank Capra vão dar um salto pela velha-a-branca e espalhar pela nossa sala o encanto mágico natalício com It's a Wonderful Life, a nossa quadragésima sessão, que festejará a quadra festiva.  Venham então até nós as crianças, e os adultos que já nunca mais assim foram.

Baseado num conto de Philip Van Doren Stern chamado The Greatest Gift, It's a Wonderful Life foi mesmo considerado pelo seu realizador, Frank Capra, o seu melhor trabalho, e acabou por o mostrar todos os anos à família, pelo Natal. Disse ele que “era a história que toda a vida procurara. Uma cidadezinha. Um homem. Um homem bom, ambicioso. Mas tão preocupado em ajudar os outros, que deixava perder as oportunidades da vida. Um dia, perdeu a coragem. Desejava nunca ter nascido. E esse desejo era-lhe satisfeito. Meu Deus, que história! O gênero de história que fará dizer às pessoas quando eu for velho e estiver a morrer: foi ele quem fez The Greatest Gift”.

João Bénard da Costa escreveu um belo texto (não são sempre?) sobre o filme, dizendo que "A história da vida de George Bailey é a história de coisas tão bonitas, como Gloria Grahame a fazer parar o trânsito, o “graduation ball” de 1928, com James Stewart a dançar o “Charleston” como Fonda dançava a valsa no Young Mr. Lincoln; aquele espantoso mergulho coletivo; Donna Reed “the prettiest girl in town”; o roupão caído, ela atrás dos arbustos e a morte do pai; os “discursos” de Stewart (sempre vagamente demagógicos); o “point me in the right direction”; o telefonema a três e o beijo a dois (a câmera sem se mexer, num dos mais prodigiosos planos que alguma vez alguém assinou); a “wedding night”; e o beijo de Ernie a Bert (essa seqüência é inadjetivável); James Stewart, o charuto e o aperto de mão a Barrymore; a guerra em filigrana, e tanto mais. Mas é também, em surdina, o elogio do sacrifício e por breves apontamentos (um olhar de Stewart para o irmão ou para a mãe, o espantoso e patético personagem de Thomas Mitchell) a insinuação que basta um leve toque e podemos ver o negativo de tudo isso. 

"E a noite da inexistência de Stewart é esse negativo. Os mesmos geniais secundários, fraternais e solidários, “mudam de filme” e quem vence são outros arquétipos deles, patentes nos casos de Beulah Bondi, Ward Bond, de Frank Foylen. Aparentemente, esses eram os que não tinham razão para mudar. Se percebemos que o farmacêutico tivesse ido parar 20 anos à cadeia, não fosse George, se percebemos que o irmão tivesse morrido, não fosse George, se percebemos (já mais forçadamente) que Donna Reed tivesse ficado solteirona e de óculos, não fosse George, porque mudaram tanto todos os outros, porque são todos tão agrestes e rudes? E - o que é mais - porque mudou a cidade toda (mudou até de nome) convertida num vasto lupanar, entre stripteases e luzes agressivas? E por que é que o único personagem que George não re-visita é Lionel Barrymore, o único que não podia ter mudado? Pode um homem só transformar tanto a vida de todos? Capra diz-nos que sim, mas diz-nos que sim, não no real, mas no “filme mostrado” por Deus a Clarence e, depois, na noite que resultou do “truque” do Anjo. De certo modo, “It’s a Wonderful Life”, (mas no cinema...) “it’s an awful city” mas com batota.

"É por isso que a explosão final é tão forte. Porque tudo o que até aí fora um pouco mágico (coisa de anjos e estrelas) se encarna naquela noite de Natal, em que a presença do Anjo é apenas a de uma discreta campainha, sob a força do plano de George com os filhos ao colo e os dólares que vêm de tudo e de todos."

Jacques Lourcelles deu amplo destaque ao filme no seu Dictionnaire du Cinéma, escrevendo que "colocando-se a si mesmo sob a invocação de Leo McCarey que Capra considerou sempre como um mestre, se não o seu mestre, este sublime conto de Natal é o filme mais rico e mais completo de Capra. Ele combina não só a comédia e o drama como apela ao romanesco, à poesia e até ao fantástico para contar a história de um destino ligado, no seio da comunidade em que tem lugar, a todos os outros destinos dessa comunidade e, por extensão, a toda a humanidade. O propósito do filme, de qualquer maneira, é muito mais contar a história desse laço do que a de um indivíduo. E este conto que quer sublinhar a solidariedade de todos os homens fornece, na sua intriga, uma demonstração tão cintilante como comovente. Nos primeiros três quartos do filme, Capra revela-se hábil, enredado, por vezes tocante. No último quarto, supera-se e o espectador apercebe-se que não está só a lidar com um filme excelente como muitos que Capra fez, mas com uma obra-prima, como as que os melhores realizadores oferecem uma ou duas vezes em toda a sua carreira. O último quarto do filme leva o espectador – bem como o herói – a rever tudo o que passou até ali numa outra luz e sob outro ponto de vista. Permitindo ao herói contemplar por algum tempo um mundo em que ele não tivesse nascido, Capra (e o seu bom anjo Clarence) obrigam-no a sentir a natureza irremediável de cada um dos seus actos. Como se tratam principalmente de actos úteis e inspirados pelo bem, o facto de os suprimir da superfície da terra torna-se uma verdadeira catástrofe. Mas, para além da bondade da personagem, é o carácter de responsabilidade absoluta, infinita, de cada acção humana que é aqui demonstrado através da infinidade de reacções em cadeia que ela provocou. Se Capra fosse um pessimista (e o seu herói um anti-herói), It’s a Wonderful Life seria o filme mais negro da história do cinema, uma espécie de A Verdade e o Medo mas pior. Quando a RKO propôs o conto de Philip Van Doren Stern a Capra, ele achou que « era a história que procurou toda a sua vida » (cf. na sua auto-biografia). Já tinham sido escritos três argumentos completos a partir dele, por Dalton Trumbo, Marc Connelly e Clifford Odets, sem dar satisfações à firma. Capra confiou uma nova re-escrita do argumento aos Hackett (Francês Goodrich e Albert Hackett) e produziu o filme através da sua casa de produção Liberty Films que tinha fundado com William Wyler e George Stevens para conseguir uma independência absoluta. A interpretação de James Stewart é uma das mais surpreendentes de toda a sua carreira : dá ao filme, simultaneamente, a sua credibilidade base e a sua coroação final na autenticidade e emoção ; dificilmente se vê outro actor que pudesse ter encarnado George Bailey tão naturalmente. Mesmo que se tenha sentido com frequência muito sozinho no meio das dificuldades da rodagem, Capra mostrou-se satisfeito – é o mínimo que se pode dizer – com o resultado. Exprimindo a sua impressão no lançamento, escreve na sua auto-biografia : « Achei que era o maior filme que já tinha feito. Melhor : achei que era o maior filme que alguém já tinha feito. »"

Até Terça-Feira e Feliz Natal!

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

The Deer Hunter (1978) de Michael Cimino



por João Palhares

Continuando o nosso pequeno ciclo Cimino inserido no grande ciclo de cinema americano, damos de caras com The Deer Hunter, o filme de 1978 que rasgou as paisagens revolucionárias desses tempos e irrompeu por Hollywood e pelo mundo com a grandeza intemporal de um épico grffithiano ou wagneriano, com lampejos de fúria e de côr, tonalidades românticas e apaixonadas e vários actores em absoluto estado de graça. Voltaríamos a ver Meryl Streep (talvez só em The Bridges of Madison County, de Clint Eastwood), Christopher Walken (talvez só em King of New York, de Abel Ferrara), George Dzundza ou John Savage como os vemos neste filme? “Frágeis como o mundo”, citando o filme de Rita Azevedo Gomes de 2000 com o mesmo nome. 

Porque o que impressiona, mais uma vez, e repetindo o que se disse sobre Thunderbolt and Lightfoot (Mike como Thunderbolt, Nick como Lightfoot?) é esse confronto impossível entre as maiores tormentas desta vida e a fragilidade dos homens. Lembramo-nos de Nick, tão sozinho, tão desalentado e sem ânimo, a percorrer as ruas de Saigão cantando “Rain is rain, snow is snow”, depois de não conseguir telefonar a Linda e de não conseguir passar a noite com companhia passageira mas tão necessária. Se não se cruzasse com o terrível Julien que lhe abriu as portas do submundo e do inferno talvez conseguisse regressar a casa. Se Mike não o convencesse a elevar a parada na cabana de todos os suplícios, com três balas em vez de uma nas câmaras dos revólveres que tiveram que apontar à cabeça, talvez também conseguisse. Se não fosse sozinho no helicóptero e Mike e Steve não caíssem à água, talvez também conseguisse. Se, se… 

Como magoam os “ses” desta vida quando se imprimem irreversivelmente nas caras e nos corpos com que nos cruzamos todos os dias. A lembrança de Nick para sempre impressa nos olhos de Linda, a lembrança da guerra para sempre ligada à invalidez de Steve. Mike como recipiente de todos os arrependimentos e de todas as culpas - o mais forte dos três. Mas nem ele consegue parar à porta de casa e ser recebido com a festa que lhe preparam os amigos. Claro que The Deer Hunter é um filme difícil, claro que custa revê-lo, mas não pela brutalidade crua das cenas da roleta russa, e sim pelo que não se diz nem se quer dizer e se guarda e reprime para sempre no fundo da alma. Michael Cimino tornou visível esta terrível vacilação e nós ainda não o perdoamos. Mas é fácil? É fácil tornar todas estas memórias inseparáveis dum olhar ou de uma acção perdida? Ou redimi-las num acto absolutamente desesperado e aleatório, mas que impede as pessoas de sofrer quando olham para quem está à frente delas? Cantar o “God Bless America” à espera que uma bênção divina chegue mesmo, eis algo por que só muito poucos devem passar (e não são os “happy few”, são os “sad few”, a metade perdida deste mundo que ainda carrega a outra como um peso insuportável em nome de belas palavras como “paz” ou “progresso”, a gente que mais interessou a Ford e a Cimino, a gente que mais interessa a Pedro Costa ou a James Gray – o povo). 

As pessoas lembram-se das cenas da roleta russa e do “God Bless America” mas esquecem-se do fumo e do fogo dos aceiros, de Michael a despejar o dinheiro todo que tem no mundo para as mãos de Julien e dos gangsters vietnamitas para salvar Nick, morto-vivo na desolação de uma cidade a ferro e fogo. O “one-shot” de que Nick e Mike falam tanto tem que ramificações e toma quantos significados, já, no final do filme? Terá tanto que ver com o tiro solitário que mata os veados da Pensilvânia (única maneira de estar à altura da sua beleza, código de honra de caçador), com a oportunidade única de subir ou saltar na vida que a participação na campanha americana no Vietname pode oferecer (Steve fala disso à mãe; “shot” aqui como “chance”, portanto) como com a morte lenta de Nick, desde a noite da “descida ao inferno” (como na tradução francesa) à procura da bala escondida nas câmaras dos revólveres de Saigão e que o aliviará das dores deste mundo. Mas com que mais? Nick lembra-se dessas palavras no último momento, depois de não reconhecer Michael quando este o tenta convencer a ir para casa. Tinha-lhe dito para o ir buscar se lá ficasse, na última noite (“one-shot”) que passaram na cidade deles. Ter entrado na casa de jogo com Julien, pela primeira vez, pode ter sido a última tentativa desesperada para encontrar Mike (“one-shot”), que estava mesmo lá e o vê a ele, mas acaba por perdê-lo na confusão. Estando ambos apaixonados por Linda (quantos olhares furtivos de Michael na direcção dela, durante a festa do casamento de Steve – Nick percebe e Cimino torna tudo isto incrivelmente cristalino), o último acto de Nick neste mundo (“one-shot”) pode ser visto como um acto distorcido de amor, como só comete quem perdeu toda a sanidade. É claro, sequer, que Linda e Mike vão acabar juntos, no final, quando esta nem consegue olhar para ele? Consegui-lo-ão depois da morte de Nick, que a pediu em casamento – ela disse que sim - na festa? Nada disto tem uma resolução e mais se acentua a nossa dificuldade em suportar as questões não resolvidas deste filme, apresentadas de forma solta, dispersa e imperscrutável, como na vida. 

Ficam (têm que ficar, tanto para eles como para nós) os momentos que mais se querem lembrar: Nick a cantar “Can’t Take My Eyes of You” (veja-se a construção e a encenação dessa cena, tão fluída que nos esquecemos que teve que ser construída e encenada, das tacadas de bilhar à entrada da mãe de Steve e da conversa que esta tem com ele sobre o casamento, os amigos e a guerra), Mike no topo das montanhas a caçar os seus veados ou a sorrir e a jogar bilhar no bar de John (George Dzundza), aquele que mais parece compreender tudo o que se passa com aquele grupo, tanto quando toca o Nocturno de Chopin (a seguir ao qual já só se pode cortar para a guerra), como quando começa a cantar a canção do fim do filme, Steve a celebrar o seu casamento com um mar de promessas à sua frente, as brejeirices de Axel e Stan e a beleza inviolável de Meryl Streep, a Lilian Gish de Michael Cimino. 

Os filmes de Cimino são todos tragédias (e o capítulo mais negro ainda não chegou, esperem por Janeiro), e se não é descabido falar em Griffith ou de The Birth of a Nation quando se fala dele, The Deer Hunter talvez seja o “The Death of a Nation”. Só que sonhador, poeta e místico como é, Cimino não consegue apagar as réstias de esperança contidas numa ou em duas canções muito sentidas (The Deer Hunter), num bailado cósmico num salão vazio (Heaven’s Gate), num freeze frame em que se projectam todas as possibilidades e sonhos deste mundo (Year of the Dragon), num vislumbre do mundo e de todas as coisas do topo de uma colina (The Sicilian), num assobio belíssimo que ecoa pelas montanhas e pela eternidade (Desperate Hours) ou numa corrida desenfreada pelos vales da morte e em que tudo se conjuga e redime (The Sunchaser). 

Resta tentar aprender alguma coisa, por mais pequena que seja, como com tudo o que nos ultrapassa, seja a obra de Wright, a de Michelangelo, a de Rubens, a de Bach, a de Nijinsky, a de Shakespeare ou a de Michael Cimino.

domingo, 11 de dezembro de 2016

39ª sessão: dia 13 de Dezembro (Terça-Feira), às 21h30


Depois de Scorsese, The Band, Adolfo Luxúria Canibal e Luís Miguel Oliveira, cuja conversa publicaremos brevemente, e continuando a retrospectiva Michael Cimino, depois de Thunderbolt and Lightfoot, que exibimos em Outubro, chegamos agora a The Deer Hunter (O Caçador), segundo filme do realizador norte-americano falecido este ano.

Este filme trágico, sensível, brutal e belíssimo, espelho difícil mas redentor para toda uma geração ferida e estilhaçada, é a nossa próxima sessão. Sobre um grupo de amigos separados dentro e fora da Guerra, que continua para lá das fronteiras do Vietname e chega a casa e à América com o mesmo impacto e a mesma força, dilacerando a ordem e a vida normal de todos os dias. Nada ficará o mesmo.

Paulo Santos Lima, crítico de cinema, jornalista e professor responsável, ainda, com Francis Vogner dos Reis (que nos apresentou Lang e While the City Sleeps, se bem se lembram) pela Mostra Easy Riders, O Cinema da Nova Hollywood, bem como pelo seu catálogo (com textos de Sérgio Alpendre, Bruno Andrade ou Luiz Carlos Oliveira, Jr.), mandou-nos um vídeo sobre o filme. E muito lhe agradecemos.

Michael Cimino, em Bolonha, no Cinema Ritrovato de 2005, a quem o quis ver e ouvir, disse que "Eu gosto de filmes, Eu gosto da palavra 'filmes' ('movies'), porque é isso que eles são: mexem-se ('they move'). O cinema é uma coisa diferente. Logo que se para de se mexer morre-se. Tem havido disparates a mais pregados a alunos sobre técnica, sobre regras, sobre tantas coisas que não têm nada que ver com o coração de um filme. Precisamos de reivindicar, os estudantes hoje precisam de reivindicar a parte espiritual deles próprios, mesmo que isso possa parecer pretensioso, ou até absurdo, é verdade".

Continuou: "Antes de começarem a seguir as regras, comecem por quebrá-las. Eu fiz O Caçador quando era jovem. Se tivesse passado pela escola de cinema antes de fazer este filme, nunca o tinha feito. Teria medo demais. Mesmo hoje, as anotadoras dizem-me, 'Michael, isto não vai funcionar. Estás a atravessar o eixo do olhar'. Ainda não sei o que é que quer dizer o 'eixo do olhar'! Tentem não andar à procura de simbolismo no filme, porque não há nenhum. Não há agenda política no filme. Nem sequer é sobre a guerra do Vietname. É sobre o que acontece quando a catástrofe ataca um grupo de amigos que são como família, numa pequena cidade. Isto é um filme sobre pessoas. É simplesmente sobre pessoas. Aconselhar-vos-ia a tomá-lo dessa maneira. É uma história de um grupo de amigos."

No Dictionnaire du Cinéma - Les Films, Jacques Lourcelles escreveu que O Caçador é "O grande filme americano dos anos 70. Com uma ambição imensa, Cimino tenta construir um cinema épico e wagneriano que é também lírico e contemplativo e não desprovido de densidade romanesca. No que diz respeito à força da mise en scène, Cimino é o único cineasta da sua geração no qual se pode ver, através do seu filme, um herdeiro de Walsh e, especialmente, de Os Nus e os Mortos. Isso não o impede de conduzir, através dos outros aspectos do filme, uma busca absolutamente pessoal e original. Ele atinge o vigor pela duração desmesurada das cenas, o que as torna misteriosas e encantatórias, por um sentido quase mágico do cenário e pela atenção a certas características individuais dos personagens, sem qualquer preocupação de rigor dramático aparente. A busca dele vai de encontro ao centro da sua proposta; não pelo realismo, mas com o auxílio de um conjunto de alegorias que transformam o realismo em elementos de reflexão moral e filosófica. Os temas privilegiados de tal reflexão dizem respeito à energia e à vontade de poder da América. A caça, a guerra distante, o jogo cruel da roleta-russa, tudo isso são os motivos dramáticos e visuais, extremamente espectaculares, que permitem confrontar essa possibilidade de poder com o real. De acordo com os personagens, veremos esta vontade destruir-se, partir-se ou mesmo perdurar, transformando-se ou mudando de sentido. Epopéia do fracasso, O Caçador é também um requiem grandioso dedicado aos sofrimentos e à estupefacção da América perante a maior derrota da sua história. 

"Nota: Um exemplo das pesquisas feitas por Cimino sobre o cenário: ele explicou (in “American Cinematographer”, outubro de 1978) como tinha construído visualmente o local da sua pequena cidade da Pensilvânia utilizando oito exteriores diferentes, filmados no Ohio: o único meio de conseguir, segundo a sua vontade, que uma fábrica se perfilasse no horizonte em cada um dos planos gerais de exteriores que figuram nas sequências que supostamente se desenrolam na Pensilvânia."

Até Terça-Feira!

sábado, 10 de dezembro de 2016

The Last Waltz (1978) de Martin Scorsese



por João Palhares

“It started as a concert... it became a celebration.” Lê-se isto no poster de The Last Waltz, um “Martin Scorsese film” (o mais belo dos Scorseses?), e quem queira argumentar que é só um documento histórico ou só a filmagem de um concerto terá muitas dificuldades. Basta olhar para o filme. As coisas que dizem Danko, Robertson, Manuel, Helm e Hudson sobre música, sobre a vida, sobre barracões recônditos na América, sobre furtos de bens essenciais motivados pela fome, sobre os blues e o bluegrass, sobre a vida na estrada (esse “comboio misterioso” que levou Elvis, Otis Redding, Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin e tantos mais para o outro mundo ou para o outro lado da vida), sobre planos para o futuro (vejam esse plano delicadíssimo sobre Rick Danko, o baixista dos The Band, quando responde, triste, que depois do fim da banda vai começar a compôr, sem saber muito bem se é verdade), sob o olhar atento de Martin Scorsese, são a ilustração perfeita do que se canta em todas as canções deste grande e mítico concerto, tornando as letras ora lancinantes, ora dolorosas, ora edificantes (“I Shall Be Released” é a apoteose). Elas valeriam por si num concerto filmado banalmente e de forma menos comprometida (estamos a falar, afinal, de grandes artistas e cantores), mas assim ganham outras ramificações e consequências. 

As consequências e as ramificações conseguem-se e encontram-se por se ser apaixonado no que se está a fazer e se ordenar as cenas e os planos de forma a tornar evidentes os sentimentos, as transformações e as contradições que gravitam em torno de todas as câmaras. Todas, sem excepção. A diferença, sempre, é que umas conseguem-nas apanhar e outras não. Scorsese apanhou-as e deu-nos The Last Waltz, monumento erigido a quem faz da música a sua vida, com o bom e com o mau (afinal, tinha acabado de fazer New York, New York, filme irmão deste e não apenas pelos parcos dois anos que os separam) Qualquer momento de conversa com os cinco membros dos The Band é sucedido por uma música que amplifica o que lá se discutia e batia. Veja-se o início do filme, lançado duma mesa de bilhar e com uma tacada directa ao assunto, para os holofotes e para os riffs do baixo de Danko. Ou a aparição redentora de Neil Diamond, cantando para “dry your eyes” pelo que se passou nos anos 60, a Tin Pan Alley, Nova Iorque e ao mundo. Joni Mitchell a aparecer entre os coiotes para cantar sobre “prisoners of the white lines of the freeway.” 

Mas vejam, vejam como aquilo do “beginning of the beginning of the end of the beginning” não são só palavras ditas ao vento e Scorsese começa mesmo o filme pelo fim, por uma das últimas canções da “Última Valsa” que se valsou. Vejam como, de repente, lá para meio do filme, se vai às raízes e se faz um verdadeiro compêndio do cancioneiro americano. Dos blues de mãos com calos não da guitarra mas das coisas da vida ao Mistery Train. A aparição do Nobel maldito com uma panorâmica vertical, a pausa a meio da música e a troca de olhares entre Dylan, Robertson, Levon Helm e Danko para tocarem “Baby Let Me Follow You Down”. Depois de “Forever Young” e antes de “I Shall Be Released”. Já só me perco em descrições, não vale a pena. Vejam.



por José Oliveira

Profético e bem representativo o tiro de abertura disparado em The Last Waltz: Rick Danko, um dos membros dos The Band, grupo que se irá despedir da música, das estradas e dos anos 60 e 70 com os amigos que os inspiraram e com a câmara do mais nervoso realizador daquela era, explica que o objectivo desse jogo é meter todas as bolas antes do adversário; a fundo, reforça; e a fundo dispara, explodindo a geometria primeira para o abstracto e para todas as imprevisíveis ramificações. Logo de seguida se pisa o palco e se inaugura o Longo Adeus a uma era mas não necessariamente à natureza intrínseca de cada um daqueles corpos cadentes com infinita matéria para consumir. A pancada inaugural e a sorte, a inocência a fundir com a violência do destino, o fim a confundir-se com o nascimento. 

«Celebration of a beginning or an end?» pergunta Martin Scorsese a Robbie Robertson, com quem iria trabalhar para sempre. Resposta: «Beginning of the beginning of the end of the beginning». Como o fascinante fogo-de-artifício do snooker que iria moldar toda a obra futura de Scorsese, trata-se menos de metafísica intrincada mas antes de reconhecer abertamente e sem medo dos escuros abismos a questão eterna dos eternos retornos. Bob Dylan e forever young, a presença recorrente e quase palpável do centro da América de Elvis Presley, as margens e os confins, a fragilidade e humanismo volvidos Joni Mitchel com a convocação dos pioneiros e de Hank Williams; o presente tenso, Jimi Hendrix, Janis, o fantasma da impossível permanência no alcatrão e na corda bamba; os vociferares de The Hawk e a fantasmagoria de Ringo. 

Como faria mais tarde em Casino, hoje cada vez mais central, a herança e a criação, que em Scorsese se torce ou se esganiça para a lição e o improviso, indecisão irresolúvel, espectro a furar o cegante reflexo, todos os princípios e todos os fins já trocam os seus ecos e apelos, de onde tudo regressa a tudo, a coisa em rotação com o semelhante, entre o turbilhão dos meios. O cineasta que nunca se resolveu entre os dois grandes Johns, Ford e Cassavetes, vibrando as catedrais perfeitamente acabadas com as capelas estilhaçadas, oferece assim à geração exposta e às suas sombras e trevas a verdade da constante procura e risco. Bringing Out the Dead ou mais prosaicamente a mais bela das t-shirts de Dylan lá para trás ou no recente prémio Nobel, em capitais: EVERYTHING PASSES, EVERYTHING CHANGES, JUST DO WHAT YOU THINK YOU SHOULD DO.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

38ª sessão: dia 9 de Dezembro (Sexta-Feira), às 21h30


Com os “The Band”, com Neil Young, Bob Dylan, Neil Diamond, Joni Mitchell, Muddy Waters, os Staples, Eric Clapton e amigos, The Last Waltz é a nossa próxima sessão. Num Technicolor que torna todos estes mitos vivos e palpáveis, tão próximos de nós, filmados pelos melhores directores de fotografia desses tempos (o Michael Chapman de The Last Detail, o László Kovács de Five Easy Pieces, o Vilmos Zsigmond de The Deer Hunter, para nos ficarmos por aqueles cujo trabalho já aqui vimos ou ainda vamos ver), é um filme essencial. 

Feito numa altura crucial para o cinema, para a música e para a sociedade americanos, acreditamos, como João Bénard da Costa que “se, um dia, alguém quiser saber como foram os anos 60 e 70, The Last Waltz de Scorsese diz-lhe tudo.” Próximos do fim dos anos 70 e fazendo como o povo fazia quando um rei morria e lhe sucedia outro, quisemos fazer desta sessão uma celebração e para isso convidamos Luís Miguel Oliveira, critico de cinema do Público e programador da Cinemateca Portuguesa, e Adolfo Luxúria Canibal, vocalista dos Mão Morta. Os anos setenta acabaram. Viva os anos setenta. 

Scorsese falou sobre a sua experiência na rodagem de The Last Waltz em Scorsese on Scorsese. Vamos ler: “Durante a última semana de rodagem de New York, New York, Jonathan Taplin, que tinha sido alguns anos antes empresário dos “The Band”, perguntou-me se eu gostaria de realizar The Last Waltz, o que iria ser o último concerto, com algumas pessoas importantes como convidadas. Respondi-lhe que não sabia, mas que o acontecimento devia, pelo menos, ser fotografado para os arquivos, mesmo que só em 16 mm. Estávamos todos confusos nessa altura e tínhamos dificuldade em ordenar os nossos planos, mas o Jonathan achou que isso era uma grande ideia, por isso disse-lhe, “Está bem.” Mas estávamos em Setembro e o concerto estava para ser realizado no Dia de Acção de Graças, em Novembro! 

"Em qualquer dos casos, vim com a ideia de o filmar em 35 mm, com uma sincronização de som completa e sete câmaras. Os "The Band" pagavam a película virgem, enquanto o cameraman e eu recebiamos uma percentagem se o filme chegasse a ser realizado e, entretanto, tínhamos a oportunidade de poder assistir ao espectáculo. Preparei um guião de duzentas páginas, de maneira que quando uma câmara já não tivesse película eu podia dizer qual das outras câmaras devia “apanhar” e onde. Mas claro que quase não consegui nenhum dos movimentos planeados porque assim que os "The Band" começaram a tocar ninguém se conseguia fazer ouvir. Mas no fim, e apesar de toda a gritaria, as câmaras apanharam tudo e depois de ter visto as primeiras cópias percebi que tínhamos um filme. 

"Por alguma razão Bob Dylan tinha medo que A Última Valsa colidisse com o seu próprio filme, Renaldo and Clara. Tudo o que sei é que foi o último a actuar, ao longo de sete horas, e mesmo antes de ele entrar foi-nos comunicado que só podíamos filmar duas canções, “Forever Young” e “Baby, Let Me Follow You Down”. Perguntei se nos dariam sinal quando ele fosse cantar essas duas canções e foi-me respondido, “Bom, qualquer coisa do género.” Mas quando ele apareceu o som estava tão alto no palco que eu não sabia o que fazer. Bill Graham estava ao meu lado e disse-me, “Filma-o! Ele vem das mesmas ruas que tu. Não te preocupes, não ligues ao que ele diz, filma-o.” Mas, tal como lhes disse mais tarde, nós tínhamos um concerto de sete horas e eu não queria pressionar nada. No entanto, os planos saíram certos e filmámos as duas canções que foram usadas no filme. 

"Nessa altura tive de começar com a montagem de New York, New York. De facto, o produtor Irwin Winkler ficou muito preocupado quando descobriu que eu estava em S. Francisco a filmar o concerto. Portanto eu tinha agora dois filmes para montar e foi por essa razão que A Última Valsa levou dois anos a sair. Durante este tempo Robbie Robertson não parava de aparecer com ideias novas, dizendo que devíamos ter a “Last Waltz Suite”, incluindo “Evangeline”, “The Last Waltz” e “The Weight” porque a montagem da versão encenada de “The Weight” estava incompleta. E para “Evangeline” ele pensou em Emmylou Harris, The Staple Singers e Ray Charles, e tudo isto me parecia uma boa ideia. Por esta altura o filme foi vendido à United Artists que nos deu mais dinheiro para realizarmos dez dias de filmagens, à noite, num palco. 

"Uns quantos meses mais tarde, o Robbie achou que era bom incluir umas entrevistas, conseguimos mais dinheiro da U.A. e decidiu que seria eu a fazer as entrevistas, o que não me pareceu boa ideia. Eles eram muito calados e criavam uma certa distância – especialmente Levon, que não queria falar de nada com ninguém! Por isso eu tinha duas câmaras de 35 mm a toda a hora em cima desses tipos, e sem saber o que é que eles iam fazer a seguir. Robbie estava bem e participou; e Rick era divertido, mas costumava levantar-se e andar pelo salão, mas eu não sabia o que é que ele ia acabar por fazer. Finalmente o filme foi lançado em 1978."

Até amanhã!

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Apresentação de Vida Nova, por Craig Keller



(podem-se activar as legendas portuguesas no vídeo)

A New Leaf (1971) de Elaine May



por José Oliveira

Recentemente redescoberta por uma nova geração de cinéfilos, Elaine May começa a ter finalmente o reconhecimento devido da sua curta mas intensa carreira cinematográfica. Com uma vida longa, riquíssima e mais do que diversa, desde cedo que acompanhou o seu pai pelas estradas fora da américa em pequenos teatros na corda bamba. Actuando desde os três anos, de terra em terra, teve aulas com Maria Ouspenskaya do Moscow Art Theatre, empregos vários longe da arte, tempo para viver, dar cabeçadas, aprender e desaprender. Etc. Etc. 

Temperamental, passou por diversos palcos e experiências até se juntar a Mike Nichols por muitos anos, começando no famoso Nichols and May até ao recente documentário sobre o mesmo. Realizadora inqualificável que tanto se pode filiar ao “magistério” Cassavetiano como às vagabundagens de Charlie Chaplin, baralhou de maneira singular o amor, o patético, a liberdade e a determinação. A New Leaf é então uma peça única de artesanato onde a comédia da vida e a comédia do amor surgem desgarradas em constante invenção e inocência formal. Chaplin de saias que correu muitos becos e gastou película como se não existisse amanhã e que se atirou sem rede às emoções como o seu amigo Cassavetes, Elaine May é um caso a deslindar emocionalmente e urgentemente. 

A New Leaf é uma patetice do princípio até quase ao final, esse final em que tudo se torna ainda mais irrealista, falso e fantasioso e assim adquire a luz da verdade e o sentimento que esmaga a batota. Uma patetice como o carro ligado à máquina da vida ou da morte, os cavalos que atiram ao chão o falso cowboy ou as flores que apanharam o cancro e se curaram. Patetice que se vai desenrolando, enrodilhando e ridicularizando sob as obsessões do dinheiro, do estatuto, da inveja e seus pares; até embater e se bifurcar pela instituição do casamento e da família, do legado e do quotidiano, entrevendo os confins onde o amor faz a pergunta decisiva. 

Pateta é Henry Graham, a personagem do Walter Matthau que nasceu para evidenciar as criaturas que já não conseguem vestir outras vestes que não as que a celebrizaram, sempre na ratice e com a “inteligência” em sentido. Perfeitamente desmiolada é Henrietta Lowell, ou seja, a realizadora Elaine May, e a sorte da junção improvável e impossível dos dois é que não raras vezes o patético perfura o betão da seriedade até ao âmago e lhe resgata a parte decisiva. Henry Graham quer o mundo, o ouro, a parte dúbia, e a ambição e a ganância fazem parte dos seus membros como os braços ou pernas; Henrietta Lowell apenas se quer tornar mais confiante e costuma oferecer tudo sem reservas, tem uma e apenas uma obsessão; está visto, mais por menos dá menos e a parte inferior e preciosa vai-se impor à monstruosidade. 

Daí a estranhíssima e inaudita não construção formal (não ostentação, não “génio”, o correr imprevisível da vida a fluir nos planos e a montar tudo) – passarinhos a cantarem quer seja no centro da cidade ou no campo, distâncias sem critério evidente entre o bem e o mal ou escancarando a questão, limpeza na feiura e a caricatura a surgir alva, etc... depois, a coisa vai piando fino e a espécie de cancro que Henry já não consegue curar é queimada pela visão sem desconfiança de Henrietta e de Elaine, que não se importam de dispensar a imortalidade e de a oferecer de mãos vazias a quem dela mais precisa, e a quem a salvou mesmo não querendo. A pergunta capital perguntou se é possível raças, cores, credos, temperaturas ou o que quer que seja formarem uma unidade. A resposta é o tal The End no Technicolor dos pobres que concentra até ao dilúvio ou ao milagre todos os crepúsculos e auroras que tinham surgido envergonhados pelos entremeios. O ultra realismo inultrapassável inventado em The Wizard of Oz. Clareza e beleza das coisas despidas. Se toda a verdade é poesia, já estamos desse lado da revelação. Energia total libertada. E foram de certeza felizes para sempre.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

37ª sessão: dia 6 de Dezembro (Terça-Feira), às 21h30


Recentemente redescoberta por uma nova geração de cinéfilos, Elaine May começa a ter finalmente o reconhecimento devido da sua curta mas intensa carreira cinematográfica. Com uma vida longa, riquíssima e mais do que diversa, desde cedo que acompanhou o seu pai pelas estradas fora da América em pequenos teatros na corda bamba. Actuando desde os três anos, de terra em terra, teve aulas com Maria Ouspenskaya do Moscow Art Theatre, empregos vários longe da arte, tempo para viver, dar cabeçadas, aprender e desaprender. Etc. Etc. 

Temperamental, passou por diversos palcos e experiências até se juntar a Mike Nichols por muitos anos, começando no famoso “Nichols and May” até ao recente documentário sobre o mesmo. Realizadora inqualificável que tanto se pode filiar ao “magistério” Cassavetiano como às vagabundagens de Charlie Chaplin, baralhou de maneira singular o amor, o patético, a liberdade e a determinação. 

A New Leaf, a nossa próxima sessão, é então uma peça única de artesanato onde a comédia da vida e a comédia do amor surgem desgarradas em constante invenção e inocência formal. Chaplin de saias que correu muitos becos e gastou película como se não existisse amanhã e que se atirou sem rede às emoções como o seu amigo Cassavetes, Elaine May é um caso a deslindar emocionalmente e urgentemente.

Em 2006, a realizadora conversou com Mike Nichols e com o público do Walter Reade Theater em Nova Iorque sobre muitas coisas, debruçando-se também em A New Leaf. Vejamos:

"Eu comecei com um conto numa colectânea de Alfred Hitchcock. Gostei dela porque percebi que o homem, o herói, ia matar esta mulher. E na verdade mata outra pessoa. E eu pensei que ele a ia matar e não ia perceber que gostava dela. Lendo o conto pensei, que coisa interessante para fazer num filme. Portanto escrevi-o. Disse que tinha que ter aprovação do realizador, e eles disseram que eu o podia realizar. Não o consegui levar para a frente sem Walter Matthau, que começou como uma pessoa normal. E depois eles quiseram ter Carol Channing a interpretar a mulher, e eu disse, não, tem que ser alguém que desapareça mesmo. O filme é do homem. Eu disse, “Posso escolher a pessoa?” E eles disseram, “Não, mas podes interpretá-la tu. E tudo pelo mesmo dinheiro.” E no primeiro dia, quando começámos, foi um filme muito duro para mim. Não sabia absolutamente nada, Mal sabia com que é se parecia uma câmara. A sério, lutei. Esta história é quase inacreditável. Tinha escrito argumentos e conseguia escrever óptimas cenas, mas não sabia que havia algo chamado de cobertura. Toda a gente sabe o que é que eu quero dizer? De certeza que agora toda a gente tem uma câmara. Não sabia que se tinha que filmar duas pessoas para cortar. 

"Chamam-lhe master. Filmar um master primeiro. 

"Não, não. Eu não sabia que se tinha que filmar nada tirando uma coisa. 

"É o master. 

"Mesmo se se filmasse uma pessoa… 

"Oh, estou a ver. Pensaste que era só uma coisa por cena. 

"Sim, uma coisa por cena. Pensava que se imaginasse a cena e se fosse só uma pessoa se fazia isso. Ninguém me disse porque não me queriam no filme e queriam-me despedida. Estava muito à frente do previsto. Na primeira semana tinha saltado quatro semanas para a frente do previsto sem planos de cobertura. E estava muito orgulhosa. E eles queriam que eu cortasse. E eu disse, “Bom, isto é longo demais. Vamos-lhe tirar algum tempo.” E eles disseram, “Bem, não podemos.” Isto é quão pouco eu sabia, quer dizer miúdos com uma câmara sabem mais do que isso. E eu aprendi nesse fim de semana que se tinha que fazer planos de cobertura. Portanto voltei atrás e atrasei-me seis meses imediatamente. E neste filme, a única coisa de que sabia alguma coisa era interpretação. E tinha o meu elenco no filme. Tinha os meus actores. Tinha sido professora de interpretação. Dirigi. E sabia como é que queria que parecesse. E dizia coisas como querer que fossem de figura inteira mas não pequenos. Porque toda a gente disse que não precisavas de saber sobre lentes, sabes, pequena. E finalmente alguém me chamou de lado e me disse que haviam teleobjectivas e grandes-angulares. Nunca se viu um filme com tantos erros nele. O meu montador era um homem mesmo simpático que tinha um problema com drogas. E na primeira montagem que fez, ele fez flash forwards, para que eu visse a cena e havia um pedaço da próxima cena nela. Nunca tinha montado. Era o primeiro filme dele. E eu disse, “Há um pedaço da próxima cena, nisto,” e ele disse que era um flash forward. Não sabia o que fazer. E felizmente, bom ele não teve uma overdose, mas tomou drogas a mais e saiu, e os aprendizes e eu tirámos os flash forwards. Mas fi-lo porque a história era tão boa, e porque o elenco que eu tinha era a minha gente, e porque tinha Anthea Silver e a equipa não era muito boa. Mas contratei Dede Ryan. E consegui aprender nesse filme, enquanto o rodei fiz tantos erros que efectivamente aprendi um bocado sobre como fazer um filme. Não aprendi—tinha um operador de focagem tão bom que não sabia que havia algo como a focagem até ao próximo filme. Não há maneira de saber a não ser que alguém nos ensine ou façamos asneira. E quando se começa um filme com alguém a dizer, “Não podes escolher o realizador, mas podes realizá-lo,” começa-se mesmo sem saber nada. E essa foi a história desse filme. Cada dia se tornou em tentar lembrarmo-nos sobre o que era mesmo e não fazer muitas asneiras. Porque se qualquer pessoa pode estragar tudo… dou-vos esta blusa como exemplo. Foi mesmo uma experiência de pôr os cabelos em pé, mas tinha uma história tão forte que foi difícil estragá-la. E o que dizes está certo. Se tens alguma história que queres contar, é quase difícil fazê-la não funcionar, mesmo eu. 

"Deixem-me contar-vos uma pequena história sobre porque A New Leaf é tão bom. Era suposto eu ter feito American Beauty para a DreamWorks. Um dia estava-me a preparar para voar para uma ilha, e há uma tempestade. E o meu pequeno telemóvel toca e é Steven Spielberg, e ele diz, “Onde estás?” E eu disse, “Bem, é engraçado, estou num avião à espera que acabe uma tempestade. Estamos prestes a descolar.” E ele disse, “Bom, que tipo de avião?” E eu disse, “Um Citation Ultra.” E ele disse, “Bom, o teu avião é pequeno demais.” E eu disse, “Obrigado e porque é que telefonaste?” E ele disse, “Vais fazer o American Beauty ou não? Porque se não estiveres temos o Sam Mendes.” E eu acho que ele me está a tentar dizer qualquer coisa, portanto disse, “Sam Mendes é óptimo, devias fazê-lo, fazê-lo com o Sam. Eu tenho que esperar por este outro filme que tenho que fazer. Vai em frente e contrata o Sam.” Portanto fizeram-no e então eu vi o filme e era óptimo. E disse à minha mulher, achas que o devia ter feito? Ela disse, “Não, a razão porque é óptimo é o entusiasmo do Sam’ em fazer o primeiro filme dele.” E ela tinha razão, e ela tinha razão sobre ti e A New Leaf porque com isso tudo mesmo assim estavas tão entusiasmada em fazer o teu primeiro filme. E nós vêmo-lo. Está vivo. Sim, acho que é isso que a experiência faz. Ensina-te mesmo o que não deves fazer. Mas no princípio achas que podes fazer qualquer coisa porque não tens experiência nenhuma e isso dá-te mesmo muita energia."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Apresentação d'Os Fugitivos de Alcatraz, por Pierre Rissient

Escape from Alcatraz (1979) de Don Siegel


por João Palhares

Vindo dos chamados de duros Clint Eastwood e Don Siegel, ditaria o bom senso ou a história oficial do cinema falar-se de relógios suíços e de cronómetros e de planos estudados e científicos, que serão sem dúvida as razões que tornam Escape from Alcatraz uma experiência alucinante e muitíssimo envolvente mas que talvez estejam longe de esclarecer totalmente o mistério deste filme sobre tantas prisões e sobre tantas liberdades. 

Quando se vê o filme pela primeira vez é a destreza da exposição e da disposição das cenas e dos planos que nos apanha desprevenidos. Passa uma hora e a obsessão por cada acção dos prisioneiros prende-nos numa enorme rede de cumplicidade. As belas simetrias da narração e que vão da mais óbvia, o facto do filme começar com a entrada na prisão de Alcatraz e acabar com a saída, a primeira sob a água da chuva e a segunda sobre a água do mar; passando pela apresentação e pela despedida de Frank Morris e English, as personagens de Clint Eastwood e Paul Benjamin com ambos a chamarem-se de “boy” ou pelos encontros do mesmo Morris com o brutamontes Wolf, que entra na solitária na primeira metade do filme e sai na segunda. E ainda as mortes de ‘Doc’ e de Litmus em momentos chave do filme e também simetricamente dispostas. 

Na segunda vez que se vê o filme repara-se numa flor que parece simbolizar a liberdade: um belo apontamento, pensamos nós, estes prisioneiros representam uma opressão mais profunda e que também nos diz respeito. Na figura do director prisional vemos a opressão e pensamos então nos horrores de Alcatraz: os suicídios, as mortes de presidiários pelas mãos de outros presidiários ou pelas mãos de guardas, as mortes de guardas, os castigos na solitária, os massacres de vários prisioneiros em fuga e a repressão constante que dá no desespero absoluto de certos prisioneiros (a auto-mutilação de ‘Doc’ é baseada na de Rufe Persful, nos anos 30). Ficamos do lado de Morris e de ‘Doc’ e de English, incondicionalmente, e começamos a reparar ainda em pequenas coisas mostradas com enorme sensibilidade: o rato pequeno de Litmus, a que ele dá de comer e que vai a todo o lado com ele, resgatado depois por Morris quando o dono morre; as visitas da mulher de Charley Butts e da filha de English, mais coisa de olhares e de gestos do que de conversas propriamente ditas (que, de resto, são escutadas pelos guardas da prisão); os quadros de ‘Doc’; a ajuda prestada por quem nem sequer pensa em fugir da ilha mas que, de certa maneira, foge com eles e associa a fuga a um ataque directo à prepotência diária de Alcatraz. E vemos a flor a flutuar nas ondas da manhã, com o director atónito e uma mensagem, no fim do filme, que nos diz que a prisão fechou pouco tempo depois. A misteriosa fuga destes três prisioneiros abalou as fundações dum sistema e Don Siegel, Clint Eastwood e Richard Tuggle perceberam isso muito bem. Bem como que quando assim é, não são só as instituições que vêem o seu funcionamento posto em causa, mas há algo que muda bem fundo nas almas e nos corações dos homens. 

E à terceira, ouvimos que a flor é um crisântemo plantado há quinze anos por ‘Doc’ e por Litmus e que significa muito para eles. Logo a seguir, vemos o director a tentar destruí-lo e a provocar a morte do segundo. Mas até na aridez e no inferno de Alcatraz há algo que floresce, uma liberdade e tenacidade humanas inabaláveis que nem o director consegue perturbar: ‘Doc’ e Litmus saem de Alcatraz através do crisântemo e do rato, que vão com Morris. A pintura e o trabalho de ‘Doc’, outra tentativa de fuga, tornam-se indissociáveis da que levam a cabo os três “fugitivos de Alcatraz”, que fazem modelos das suas caras e da conduta de ar das suas celas e as pintam. Os quadros de ‘Doc’, particularmente o do próprio Director, incomodam-no porque se vê finalmente a si próprio e com as verdadeiras cores e não gosta, o retrato reaviva-lhe a consciência e não o suporta. Percebe também que dali, dessa demonstração de liberdade absoluta, até um motim ou uma fuga vai um pequeno passo e por isso a tenta destruir. E o espírito lutador e a moral certa de Siegel e Eastwood, tantas vezes chamados de fascistas por quem não sabe o que é o fascismo, vêm ao de cima, transformando o que pode parecer só um austero exercício de movimentos e de descrição precisa desses movimentos (à maneira de Fleischer, Henry Hathaway ou Robert Bresson, que fez esse Un condamné à mort s’est échappé ou Le vent souffle où il veut (1956) com que o filme de Siegel faz uma óptima parelha) num grito contra a brutalidade e a crueldade humanas. E ainda assim há imensa coisa por explicar e por perceber.

“O vento sopra para onde quer”...

domingo, 27 de novembro de 2016

36ª sessão: dia 29 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Continuando as grandes linhas de força, cruzamentos e heranças do cinema americano, John Cassavetes apreciava muitíssimo Don Siegel, de quem também era amigo e serviu como actor. Garra, pressão, adaptação, carga física. Totalmente consanguíneos, cada um com a sua temperatura. 

O filme que iremos ver esta semana, Escape from Alcatraz, tem como actor principal Clint Eastwood, o grande continuador do método de trabalho e da moral de Siegel. Instinto, simplicidade formal e profundidade humana. Jamais impor o brilhantismo técnico à personagem ou à situação. Escape, uma das obras finais de um insuperável artesão lacónico, é uma típica história de prisão e de fuga, mas tudo é absolutamente transcendido na acção detalhada, na paciência de Job e no desenrolar do tempo. Enfim, uma compressão e consequente gravidade explosiva que rebenta as costuras clássicas. Duro e cada vez mais surpreendente. 

Pierre Rissient, velha raposa da cinefilia que conheceu e conhece de perto estes homens, gravou-nos um vídeo de apresentação. 

Sam Peckinpah - assistente de Siegel em vários filmes - em Don Siegel and Me, descreveu o realizador de Dirty Harry como "um artesão dedicado e diligente, Don era maníaco na sua batalha contínua contra a autoridade estúpida de estúdio. Ele ficava e fica constantemente espantado com a idiotice da nossa indústria, ficando ainda encantado pela sua competência e profissionalismo. Eu percebi que podia ser considerado na última categoria quando, depois de ver um dos meus programas na TV, ele se virou e murmurou, Não és assim tão bom!"

Já Chris Fujiwara escreve (sobre Riot in Cell Block 11 e Don Siegel) que "o cinema de Siegel é marcado pelo desejo de se atirar de cabeça, dar o tudo por tudo, deitar tudo fora. O seu compromisso em filmar pura energia é anunciado cedo em Riot in Cell Block 11 com a fuga dos prisioneiros mais perigosos das celas deles, seguida da sua libertação dos outros, que, uma vez livres, destroem os seus quartos instintivamente, atirando camas e mobílias para o piso inferior da ala prisional. Momento de anarquia que lembra Zéro de ­conduite de Jean Vigo, a cena ressoa as revoltas contemporâneas incipientes: o movimento dos direitos civis, o rock and roll. Algo da libertação é transmitido, também, pela escolha dos actores do filme: tantos actores condenados a continuar subutilizados em papéis pequenos, estereotipados têm aqui uma oportunidade para mostrar o que conseguem fazer (Neville Brand, Robert Osterloh, e particularmente Emile Meyer). Aparentemente possuídos pela necessidade de exprimirem finalmente as suas personalidades, os actores dão-nos interpretações de força não regenerada.

"Ao longo da sua carreira, Siegel foi atraído pelas situações extremas, estados de excepção que revelam a verdade sobre as condições supostamente normais que interrompem. O roubo da arma do polícia pelo criminoso em Madigan (1968); a fuga do suspeito em Coogan’s Bluff (1968); o reino de terror do assassino em Dirty Harry (1971); a posse de dinheiro da Máfia impossessível pelos assaltantes de bancos em Charley Varrick (1973) constituem todos estados de excepção desses. E Riot é um exemplo ideal. O motim, e a tomada de reféns em particular, cria uma situação limite, caracterizada pela suspensão das regras. Quem manda torna-se uma questão: é o guarda prisional, o representante do governo, a polícia, a legislatura, “o povo”? Todos estes exercem um certo poder, ou são imputados a ter poder, em algum momento durante o impasse."

Finalmente, Clint Eastwood, o actor principal do filme, depois de falar sobre a influência de Siegel na sua obra e sobre o seu método de trabalho em entrevista a Michael Henry Wilson, elogiando a sua rapidez e engenho, disse que "a temperança dele influenciou-me de certeza. Em Fuga de Alcatraz [Escape from Alcatraz, 1979], fui eu que o persuadi a filmar nas galerias por onde se deu a fuga. Porquê gastar 100 mil dólares para construir um cenário? Don sabia exactamente quais planos ia filmar, mas não era rígido. Acontecia ele mudar ou acrescentar um plano no último momento. Trabalhei com realizadores que ficavam completamente desconcertados se a gente sugerisse uma mudança na interpretação de uma cena."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

John Cassavetes, por Adriano Aprà

The Killing of a Chinese Bookie (1976) de John Cassavetes



por João Palhares

John Cassavetes é difícil de situar ou descrever, de enquadrar numa corrente ou num movimento. “Não papava grupos”, como diz muitas vezes o José Lopes, actor do Adeus Lisboa que vimos no início deste ano - antes de Stagecoach, se bem se lembram. Quando o achavam perto do cinema underground, fazia Too Late Blues, quando o achavam perto do cinema de Hollywood fazia Faces e baralhava as contas todas outra vez. Talvez se possa dizer, então, que foi sempre fiel à sua stock company, como John Ford antes dele e como Pedro Costa, uns anos depois. Perto da mulher, Gena Rowlands, de Seymour Cassel, Peter Falk, Val Avery, Elizabeth Deering, Fred Draper, John P. Finnegan e de Ben Gazzara, que interpreta Cosmo Vittelli no filme de hoje, The Killing of a Chinese Bookie, de Al Ruban (produtor, mas também actor, montador e director de fotografia), Bo Harwood (música, som), Sam Shaw (produtor, cenógrafo) ou de Phedon Papamichael (direcção artística), fazia filmes de que não se conseguia distanciar e, portanto, mergulhava totalmente nas cenas, nos locais e nos corpos que os percorriam, fazendo dos mais belos retratos do amor e da amizade dos anos setenta e oitenta. 

Juntava ainda a estes actores renegados selvagens como Timothy Carey e Lawrence Tierney (vindos das trincheiras da série B e dos biscates em produções maiores, sempre em conflitos e sempre com muitos problemas, onde trabalharam com André De Toth, William Wellman, Elia Kazan, Delmer Daves, Stanley Kubrick, Phil Karlson, Gordon Douglas, Robert Wise, Richard Fleischer ou Cecil B. DeMille), mulheres não menos selvagens como modelos e playmates, actrizes de filmes de Russ Meyer (Haji) e bailarinas de casas de striptease (Donna Gordon e Alice Friedland), e por isso a vida entrava nos seus filmes e por isso se justificavam os movimentos de câmara ansiosos, o grão da imagem e os sons não trabalhados, brutos e violentos. John Cassavetes atirava-se de cabeça para cada filme, não procurava efeitos nem associava correntes de pensamento contemporâneas à técnica dos seus filmes, não escrevia manuais de instruções para críticos e espectadores (como se faz muito, agora). Não, saía tudo dele, instintivamente, e para o bem e para o mal. Do coração e do fundo de si, fiel às famosas palavras de Samuel Fuller, ditas em Pierrot le Fou (1965) de Jean-Luc Godard: “o cinema é como um campo de batalha: Amor. Ódio. Acção. Violência. Morte. Numa palavra, emoção.” 

Donna Gordon falou em entrevista do seu encontro com Cassavetes para entrar em Bookie. Disse que "era uma bailarina num clube de strip em Hollywood chamado “The Classic Cat” e uma amiga minha – Alice Fredlund – também na indústria (e que acabou por interpretar “Sherry” no filme) estava a trabalhar num clube mesmo no fundo da rua chamado “The Body Shop”. No meu dia de folga a Alice telefonou e disse que um realizador qualquer chamado John Cassavetes vinha ao “The Body Shop” procurar raparigas para entrar num filme novo para que ele estava a escolher actores. Sem reconhecer o nome dele nem acreditar nela, já que me tinha pregado partidas no passado, coisas como: o agente do Dustin Hoffman me querer ver, etc, pensei “que se foda”. 

“Quando cheguei ela levou-me com ela. Apresentei-me a alguns homens numa mesa, e pensei que se fosse uma partida pelo menos ia ter uma bebida ou duas de graça. Estava o John Cassavetes e acho que o actor Seymour Cassel também. Quando o John me deu um guardanapo com o número de telemóvel dele, e me disse para lhe telefonar por causa do filme, eu só pensei: “Está bem, está”. Mas peguei nele, enfiei-o na minha mala, disse obrigado, e pus-me a caminho. 

“Uns dias depois estava em Las Vegas numa festa com algumas celebridades. Alguém me perguntou se tinha amigas bonitas que se quisessem juntar à festa, portanto telefonei à Alice em L.A. Ela disse-me que não podia vir porque se estava a preparar para entrar no filme do John Cassavetes e que se eu não dissesse nada iam escolher outra pessoa. Com relutância decidi arriscar. Voltei para L.A e pela primeira vez a Alice estava a dizer a verdade.” 

Sobre Cassavetes, disse: “Se eu na altura soubesse tanto sobre ele como sei agora, tenho a certeza que estaria muito mais nervosa ou com “pânico do palco”. Eu não sabia que ele era um realizador independente inovador e não fazia ideia que era actor, sequer. Não tinha visto Rosemary’s Baby ou The Dirty Dozen nem nenhum dos outros filmes dele (que me lembrasse, pelo menos), portanto para mim ele era só um realizador... mas diferente da maioria dos tipos de Hollywood, não era “dress for success”. 

“Quando vi o John pela primeira vez parecia que tinha acordado num banco de jardim. Até lhe disse que precisava de se barbear e comprar roupa nova. E acho que ele gostava da minha honestidade ingénua. Costumo falar das coisas como elas são. E se vir Bookie, vai ver que a minha personagem é muito brusca e um bocado “cabra”. Ao princípio não gostava desse aspecto da “Margo”, mas agora percebo que a faz destacar-se dos outros.” 

Sobre os ensaios antes da rodagem, disse: “Estávamos todos a ler do guião, a passar pelas nossas falas, e acho que para o John parecia muito construído. Chegou ao pé de mim, pegou no meu guião, atirou-o para o fundo da sala, agarrou-me pelos ombros e gritou: “Quero que seja verdadeiro... quero a Donna verdadeira!

“Apesar de intenso, o John era muito doce, e compreendíamo-nos um ao outro. Ele sabia que tinha passado por muito na minha vida; tinha muita dor e era dura como uma pedra por causa disso. E acho que ele percebeu que a minha vida intensa se ia canalizar na personagem.” 

Muitas citações e muitas aspas mas que, pelo menos, nos ensinam que o cinema não tem que ser vida de estrela nem de connects ao mais alto nível mas pode ser uma "arte do encontro", como dizia o outro. Por aí, pela madrugada e por Braga, porque não?

sábado, 19 de novembro de 2016

35ª sessão: dia 22 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Sobre John Cassavetes se pode dizer que perseguiu um único tema: o amor. Por ele movido e trucidado a sua câmara tanto tremeu, torcendo-se e contorcendo-se, caindo e levantando-se, perdendo-se e encontrando-se nesse violento embate com a morte, a raiva, o carinho, confiança e desconfiança, todos os temas que gravitam no coração do homem. Máquina de filmar conectada literalmente à sua carne e ao seu sangue, aos seus nervos e ao seu espírito, olhando todos e mais alguns abismos. Nada para ele importava mais do que os seus actores, e obcecado com Gena Rowlands, com Ben Gazarra ou com Peter Falk, tentou entender e dar razão a milhões de outros seres frágeis e únicos. Tão contraditório como certo. 

Sobre The Killing of a Chinese Bookie, a nossa próxima sessão, disse: «Este é um dos filmes que mais me interessou. Parte do desafio foi imaginar um mundo contido em si mesmo, diferente daquele em que vivo, mudar-me para ele e nele viver. O Cosmo Vitelli é um homem que diz querer viver com estilo e confortavelmente. Mas para Cosmo, o conforto significa viver no fio da navalha. Ele dirigiu um clube que não é dele durante sete anos. Mas o reinado dele é uma farsa sustentada apenas por encontros mensais com um agiota. Este filme diz-me algo. Podemos vender tudo sem pensar duas vezes... Até as nossas vidas». 

A anteceder o filme teremos um vídeo onde o crítico e historiador Italiano Adriano Aprà (Adriano “Vitelli” Aprà para os amigos) nos falará sobre o grande cineasta Americano.

Sérgio Alpendre, que nos apresentou Cleopatra e Cecil B. DeMille no início do ano, escreveu sobre a obra de Cassavetes a propósito duma mostra no Cinesesc, dizendo que o realizador é "um mestre da subtileza. Os seus filmes, especialmente os mais pessoais - além dos que o Cinesesc exibe, pode-se incluir nessa turma Maridos (Husbands, 1970), Tempo de Amar (Minnie & Moskowitz, 1971) e Amantes (Love Streams, 1984) – são cheios de pequenas nuances reveladoras dos personagens, ou, antes, das pessoas. Essas pessoas são retratadas, geralmente, em situações limite, que fazem com que elas estejam sempre à flor da pele, e sejam tão indefiníveis quanto as pessoas que vemos no dia-a-dia, que fazem parte das nossas vidas. Essa proximidade com pessoas que conhecemos, ou com as quais convivemos, em maior ou menor grau, já garante uma empatia imediata com os seus filmes. Mesmo que de início eles se mostrem um tanto cruéis e misóginos, caso de Faces (1968) e Maridos, principalmente; ou inclinados demais por um sadismo pouco explicado, Uma Mulher Sob Influência, Noite de Estreia; ou ainda internos demais, completamente compreendidos apenas por iniciados em artes, Noite de Estreia e A Morte de um Apostador Chinês; ou demonstrem uma soberba irritante, Gloria, de 1980, no qual a personagem-título desdenha, de um elevador do prédio em que mora, o menino pobre, no fim revelam muita riqueza de observação. Revelam também uma disposição generosa para entender as mais pequenas fagulhas de revolta ou de ódio, as  demonstrações de humanidade mais irrisórias, mas não uma humanidade de manual, com gestos enobrecedores e compreensão assombrosa, mas uma humanidade calcada na vivência, no sofrimento e no gozo diários. É gente de carne e osso que aparece diante da câmera de Cassavetes. E é por isso que nos sentimos tão bem ao ver os seus filmes."

Continua, dizendo que "Maridos sedimentou praticamente o esquema de realização de Cassavetes, com muita liberdade ao actor, e duas ou três câmaras para captar todos os movimentos. Depois de filmar muitas horas de material, Cassavetes monta o filme respeitando o tempo dos actores, e das emoções que eles fazem aflorar na tela. É um tipo de montagem pouco convencional, com cortes bruscos, ausência completa de didáctica espacial (sem que a nossa noção do espaço seja prejudicada), uma aceleração constante dos acontecimentos contrastando com o tempo cadenciado no interior dos planos. Graças à sua maneira de montar os filmes, e de pensar a mise en scène como algo revelador dos seus personagens, além da sua tendência em extrair dos movimentos de câmara e dos tempos de corte verdadeiros retratos de almas, Cassavetes foi reconhecido como um inventor de formas. Graças a essa invenção constante de formas, os personagens de Cassavetes apresentam-se com muitas facetas, como num retrato cubista. O aspecto formal faz, assim, uma ligação perfeita com o conteúdo dos seus filmes."

Sobre o filme da próxima Terça-Feira, escreve que "A Morte de um Apostador Chinês (The Killing of a Chinese Bookie, 1976) e Noite de Estreia (Opening Night, 1978) marcam o regresso de um amigo querido ao cinema de Cassavetes, Ben Gazarra, um dos protagonistas de Maridos. Ele interpreta o protagonista de A Morte, um dono de clube nocturno que para saldar dívidas tem que matar o personagem do título. É um filme ensaísta, que versa sobre a passagem do tempo, as decisões que contrastam com o desejo do protagonista e o excitante e decadente mundo nocturno, com as suas mulheres performativas e os seus homens sedentos de carinho, afeição e sexo."

Finalmente, Jim Jarmusch escreveu uma carta aberta a John Cassavetes, em que disse e confessou que "Fico com uma sensação especial quando estou prestes a ver um dos seus filmes–uma antecipação. Não importa se vi o filme antes ou não (por este momento acho que os vi todos pelo menos várias vezes) fico com essa sensação na mesma. Estou à espera de qualquer coisa que pareço precisar, uma espécie de iluminação cinematográfica. Como fã de cinema ou como cineasta (realmente, já não há uma linha divisória clara para mim) estou a antecipar um golpe de inspiração. Quero iluminação formal. Preciso que me sejam reveladas as consequências secretas de um jump-cut. Quero saber como é que a crueza dos ângulos de câmara ou o grão do material fílmico figuram na equação emocional. Quero aprender sobre interpretação com os desempenhos dos actores, sobre atmosfera com a luz e os locais. Estou pronto, totalmente preparado para absorver a “verdade a vinte-e-quatro-frames-por-segundo.”

"Mas o que acontece é o seguinte: logo que o filme começa, me apresenta o seu mundo, eu estou perdido. A expectativa dessa iluminação específica evapora. Deixa-me lá no escuro, sozinho. Agora habitam seres humanos no mundo dentro do ecrã. Também parecem perdidos, sozinhos. Eu olho para eles. Observo cada detalhe dos seus movimentos, das suas expressões, das suas reacções. Ouço com atenção o que cada um está a dizer, as bordas desgastadas do tom de voz de uma pessoa, o mal escondido no ritmo do discurso de outra. Já não estou a pensar em interpretação. Estou abstraído do “diálogo.” Esqueci-me da câmara.

"A iluminação que antecipei de si está a see substituída por outra. Esta não convida a análise ou a dissecação, só a observação e a intuição. Em vez de ideias sobre, digamos, a construcção de uma cena, começo a ficar iluminado em relação às nuances ardilosas da natureza humana.

"Os seus filmes são sobre amor, sobre confiança e desconfiança, sobre isolamento, alegria, tristeza, êxtase e estupidez. São sobre inquietação, embriaguez, resiliência e luxúria, sobre humor, teimosia, falhas de comunicação e medo. Mas, sobretudo, são sobre amor e levam-nos para um lugar muito mais profundo do que qualquer estudo sobre “forma narrativa.” Sim, é um grande cineasta, um dos meus favoritos. Mas o que os seus filmes esclarecem de forma mais pungente é que a celulóide é uma coisa e que a beleza, a estranheza e a complexidade da experiência humana é outra.

"John Cassavetes, tiro-lhe o meu chapéu. Estou com ele por cima do meu coração."

Até Terça!

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

The Conversation (1974) de Francis Ford Coppola



por João Palhares

To be invisible 
Will be my claim to fame, 
A man with no name. 
That way, I won't have to feel the pain.” 

Curtis Mayfield, em To Be Invisible 

Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul.” 

Jean de La Bruyère - epígrafe de The Man of the Crowd de Edgar Allan Poe 

Vimos do negrume de The New Centurions (exibido por nós a semana passada) para o negrume do filme de hoje: The Conversation. Já estamos apresentados, seguramente, ao mundo destroçado dos homens que tentam fazer a coisa certa num meio sufocante, esmagador e que desafia qualquer explicação e qualquer remédio. E embora não precisemos de filmes para conhecer esse meio e esse mundo (para isso basta olhar à nossa volta), já vimos o xerife Calder abandonar a cidade de Bubber Reeves desfigurado por dentro e por fora em The Chase, já vimos o asfalto tornado morada eterna quando recebeu o corpo do agente Wintergreen em Electra Glide in Blue, já vimos o crime e a cidade a corroer os espíritos de Kilvinski e de Roy em The New Centurions e veremos hoje a estranha aventura de Harry Caul, personagem interpretado por Gene Hackman e atormentado por questões relacionadas com a sua vida privada e com a convivência normal com os outros mas que, muito ironicamente, tem como trabalho invadir a privacidade das pessoas.

É difícil saber com toda a certeza se o mundo está tão diferente do que era e do que foi, se é tão mais difícil perceber e dar um sentido, nos dias que correm, às coisas que se passam à nossa volta. Pensando que se disse que os filmes, hoje em dia, têm que ser muito mais longos para contarem o mesmo que contava um filme muito curto e habilmente condensado de Edgar G. Ulmer, Jack Arnold ou Jacques Tourneur dos anos 40 e 50 (foi Jacques Rivette quem o disse), ou que é muito mais difícil decidir e saber o que é bom e o que é mau pela quantidade de poeira que nos deitam para os olhos todos os dias (foi o fotógrafo Paulo Nozolino quem o disse), que atrás de nós estão anos de história e aumenta a cada dia que passa a nossa herança cultural, os nossos traumas civilizacionais, e se amontoam dentro de nós novos conhecimentos, informações e saber. Tal como o universo, que se expande e parece ocultar proporcionalmente os seus mistérios, também a alma e a mente humanas parecem fazer percurso semelhante, mas para o interior. As cidades crescem e o homem refugia-se em si mesmo e remete-se à solidão. Voltamos aos Cadernos do Subterrâneo de Dostoievski, voltamos a Bartleby e às resoluções vazias no prédio em ruínas... Se prestarmos atenção talvez lá encontremos Harry Caul, o homem que quer estar só sem estar mesmo só.

Francis Ford Coppola falou de Franz Kafka, Hermann Hesse e Michelangelo Antonioni como bases para o seu The Conversation e o impermeável transparente de Harry, os passeios dele entre a multidão, a bela melodia ao piano de David Shire e a repetição obsessiva do plano do beijo de Cindy Williams a Frederic Forrest (que lá para o fim do filme já toma contornos abstractos e metafísicos) parecem confirmar estas influências. Confirmam, também, poder falar-se nestas questões de mundos em mudança, de homens a reagir à dispersão da informação e do conhecimento, especializando-se nos seus campos respectivos. Presos ao trabalho e imersos nos seus processos como o David Hemmings* de Blow Up com as suas fotografias e o próprio Harry com as suas fitas e os seus microfones, vêem e ouvem a mesma coisa horas e dias a fio até começarem a ver e a ouvir coisas diferentes, desafiando a sua própria sanidade. O filme de Coppola mostra isso com uma nuance genial na frase que a personagem de Gene Hackman encontra escondida na imensa paisagem sonora que capta no início do filme - a “conversa” do título original. Frederic Forrest diz a Cindy Williams que “he’d kill us if he got the chance” e as ramificações e as consequências possíveis dessa frase são exploradas ao limite ao longo do filme.

Claro que tudo isto se enquadra numa trama policial perfeitamente lógica, que Harry Caul é alguém que se tornou assim por se apegar demais a pessoas que vigiou uma vez em Nova Iorque, com resultados traumáticos. Volta a fazê-lo com estes jovens de quem forma uma ideia demasiado construída e que é verdade apenas na sua cabeça, porque não se conhece ninguém ouvindo meia dúzia de palavras trocadas numa praça cheia de gente. Quando descobre a verdade, é tarde demais. Pela repetição constante das frases e das imagens dessa conversa na praça podemos até assumir que ele próprio se projecta no jovem interpretado por Frederic Forrest, querendo amar e cuidar da mulher interpretada por Cindy Williams, como vemos no sonho dele e na reprodução integral da conversa quando acaba a festa e ele expulsa toda a gente do seu armazém menos a assistente do seu rival, em quem vê um duplo da mulher da conversa.

No final, no apartamento em ruínas que parece emular o de Bartleby, consuma-se a loucura de Caul, orgulhoso demais para se deixar vencer no seu terreno e para sempre preso nos interstícios mais ínfimos e insignificantes dessa conversa. No último plano repetido do beijo dos jovens assassinados tornados assassinos percebemos mesmo que há verdades que não se deixam revelar a si mesmas. E pensamos em Edgar Allan Poe, quando inaugura o seu The Man of the Crowd com este parágrafo desesperado:

“It was well said of a certain German book that "er lasst sich nicht lesen" --it does not permit itself to be read. There are some secrets which do not permit themselves to be told. Men die nightly in their beds, wringing the hands of ghostly confessors, and looking them piteously in the eyes --die with despair of heart and convulsion of throat, on account of the hideousness of mysteries which will not suffer themselves to be revealed. Now and then, alas, the conscience of man takes up a burthen so heavy in horror that it can be thrown down only into the grave. And thus the essence of all crime is undivulged.” 

Não andamos longe do “The horror! The horror!” de Conrad.

Hemmings aparece também em Profondo Rosso de Dario Argento que tem muitos pontos em comum com os filmes de Antonioni e Coppola bem como com o Blow Out de Brian De Palma.

sábado, 12 de novembro de 2016

34ª sessão: dia 15 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Realizado entre as duas primeiras partes do monumental fresco familiar da saga O Padrinho, e antes da demência irracional de Apocalipse Now, O Vigilante é um "pequeno" filme de Francis Ford Coppola que vai ao osso de todas as questões da guerra oficial e da guerra privada, da casa e do mundo, do barulho e do silêncio sufocantes. 

Pequeno, intimista, sussurrado, mas avassalador na dimensão paranóica que assola o protagonista Gene Hackman e mais amplamente uma América estilhaçada na sua representação e nos seus augúrios. 

A imagem em rota de colisão com o som, o que se escuta a contradizer o que se vê, as certezas a desvanecerem-se no ar do tempo triste, cansado e sem rumo. Almas sangradas e matéria doente, o horror, como no inclassificável quadro final.

Um filme muito especial, a nossa próxima sessão e uma das obras preferidas do seu autor, junto a The Rain People. Sobre a génese do filme, Coppola disse a Brian De Palma (que faria mais tarde um filme que deve muito ao de Coppola, Blow Out) que "este projecto começou de forma diferente de outras coisas que fiz, porque em vez de o começar a escrever movido por algo emocional - a identidade emocional de pessoas que conheci - comecei-o como uma espécie de puzzle, coisa que nunca fiz e que penso que nunca mais vou fazer.

"Por outras palavras, começou como uma premissa. Eu disse, "acho que quero fazer um filme sobre espionagem e privacidade, e quero que seja sobre o tipo que a faz e não sobre as pessoas a que é feita." Depois algures no caminho tive a ideia de usar a repetição, de expôr novos níveis de informação não através da exposição mas da repetição. E não como Rashomon em que se apresenta isso de maneiras diferentes a cada passo - deixá-las ser as mesmas linhas de diálogo mas ter novos significados em contexto. Por outras palavras, à medida que o filme avança, o público alinha com ele porque se está constantemente a dar-lhes as mesmas linhas de diálogo que já tinham ouvido, mas quando eles sabem um bocado mais sobre a situação vão interpretar as coisas de maneira diferente. Essa era a ideia original."

Jean Tulard, no Dictionnaire du Cinéma - Les Realisateurs, descreveu a obra de Coppola como "um cinema à escala dos Estados Unidos. Filho do maestro e compositor Carmine Coppola, apaixonado por cinema desde 1948, ao ponto de filmar mesmo filmes amadores em 16mm, aprendeu os métodos de trabalho moderno com Roger Corman que era produtor e realizador ao mesmo tempo, e que se esforçava por reunir jovens cineastas em torno de si. Rapidez e eficácia eram as palavras de ordem de Corman para quem Coppola rodará vários filmes em segunda unidade bem como Dementia 13 (...) Em 1968, estabelece-se em Los Angeles e funda a American Zoetrope onde trabalha uma nova geração: Scorsese, Milius, Lucas; depois, em 1971, cria com Bogdanovich e Friedkin a Director's Company. O seu primeiro sucesso, O Padrinho, renova o tema do filme de gangsters. Dá uma sensação de esmagamento e tédio, em relação ao livro, e, sobre o tema da Máfia de bandos antigos, é lícito preferir A Mão Negra de Thorpe ou Pay or Die de Richard Wilson. Tal não foi a opinião do público. Coppola dará ao seu Padrinho uma continuação que parece mais incisiva e mais controlada. No intervalo, rodou um filme muito moderno quanto ao seu tema e ao seu tratamento: O Vigilante. O gosto de Coppola pela desmesura explode com Apocalypse Now, adaptação - muito distante do original - de um romance de Conrad transposta para a guerra da Indochina. Duma perfeição técnica raramente alcançada, esta obra impressiona mais pela qualidade da imagem e do som que pelo carácter visionário e as intenções - ambíguas, aliás - que Coppola desejou lá pôr. Esse continua a trabalhar no sentido de um aperfeiçoamento de técnicas e a preparar o cinema de amanhã, ou seja o cinema electrónico. Descobre Abel Gance em 1980 e faz projectar o seu imortal e sempre jovem Napoléon nos Estados Unidos, com uma orquestra de 60 músicos para o acompanhar, com música de Coppola pai. Encontram-se assim dois pioneiros que não conheciam o significado de moderação. Deixando a desmesura, Coppola oferece dois filmes sobre a juventude delinquente, Outsiders e Rumble Fish, de um tom mais próximo das obras de Borzage e que são ambos muito bem conseguidos. Regresso ao gigantesco com Cotton Club, crónica dos anos 30, um dos filmes mais caros da história do cinema. Gardens of Stone dá-nos o revés da guerra do Vietname: o regresso dos restos mortais e a cerimónia fúnebre. Um filme admirável que se re-descobrirá, de resto como a biografia exemplar de um construtor de automóveis: Tucker. As suas dificuldades financeiras obrigam-no a rodar uma terceira versão do Padrinho. E talvez seja a melhor com um final deslumbrante na ópera. Prova que ele não perdeu nenhum do seu talento."

Finalmente, Jean Douchet, que nos apresentou Marnie em Julho e esteve em Portugal a convite do Festival de Cinema de Lisboa e do Estoril esta semana para apresentar vários filmes de Jean-Luc Godard, escreveu no 494º número da L'Avant-scène du cinéma que "O Vigilante é, sem qualquer dúvida, um dos maiores filmes de Francis Ford Coppola e certamente um dos menos conhecidos. Produção completamente independente, rodada na sequência do sucesso do Padrinho, o filme foi considerado durante muito tempo como um desses admiráveis opus menores de um autor habituado às obras-primas de grande orçamento. Graças a este novo lançamento, os jovens cinéfilos voltarão a pô-lo no seu verdadeiro lugar no seio da filmografia de Coppola - um dos primeiros."

Até Terça-Feira!