quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

It's a Wonderful Life (1946) de Frank Capra



por João Palhares

Há-que voltar a Chaplin, mais uma vez. Ao barco d’O Emigrante de 1917 - curta com envergadura de longa que há muito pouco tempo se reviu e parece inaugurar (e conter) tanta mas tanta coisa -, cheio de viajantes famintos e que tentam a sua sorte na América sob a alçada da senhora verde na Estátua da Liberdade. Lá, estão Chaplin e Edna Purviance mas podia ser Frank Capra com a sua família em 1903, vindos de Bisaquino, na Sicília. “Estamos todos juntos – não se tem privacidade. Tem-se um catre. Muito poucas pessoas têm malas ou qualquer coisa que ocupe espaço. Têm só o que conseguem carregar nas mãos delas ou num saco. Ninguém tira a roupa. Não há ventilação, e fede como tudo. Estão todos desgraçados. É o sítio mais degradante em que se pode estar,” disse Capra. À chegada e ao avistar a grande senhora, o pai, Salvatore Capra, exclama “Ciccio, olha! Olha para aquilo! É a maior luz desde a estrela de Belém. É a luz da liberdade! Lembra-te disso. Liberdade.” Estranho nenhum às misérias da vida, fosse nesse barco atulhado de gente ou no bairro de Little Sicily onde passou a infância, em Los Angeles, Capra acreditou sempre na bondade e no potencial dos homens, erigindo estrelas comparáveis às de Belém e da tocha da ilha da Liberdade e que terão guiado tantos dos desalmados e desvalidos deste mundo. Lady for a Day, It Happened One Night, Mr. Smith Goes to Washington, Meet John Doe e o filme que hoje vamos ver, It’s a Wonderful Life, formam uma grande constelação nesse belo firmamento. 

O mito do sonho americano? Não há mito nem sonho, não. O George Bailey do grande James Stewart (que se expressa de braços caídos mas de queixo levantado) vem a si no clímax do filme sem promessas de melhorias na sua antes triste situação. Continua a dever os oito mil dólares, continua a haver um mandado pela sua prisão e acha isso “wonderful”. Eis uma das grandes maravilhas deste maravilhoso filme, mostrar como um homem aprende a dar valor a si próprio e às decisões que toma na vida, aceitar-se pelo que é, e correr desvairado pelas ruas para abraçar e beijar aqueles que ama. É para todos ou só para alguns? É um sonho? Da primeira vez podemos (e devemos) deixar-nos levar pela emoção do final (e como se chora nesse final, desde a chegada de Stewart à entrada dos amigos e conhecidos que o querem ajudar agora a ele) e achar que ela era mais que certa, que George se ergueu pela promessa de felicidade e de retribuição pelo mal que lhe fizeram. Mas George teve que encarar o abismo, levantar-se e deixar de o ver como um abismo. Aprender que, como nos diz o título brasileiro deste filme, “a felicidade não se compra” e que, finalmente, “it’s a wonderful life”, como nos diz o original. 

É também a emoção do final que nos faz esquecer (mas Capra não se esquece, o filme foi escrito e re-escrito até à perfeição) que, tal como acontece no mundo real (e não no mundo dos sonhos), os homens que vivem para explorar os outros podem não receber castigo. O Henry Potter de Lionel Barrymore, com o seu busto (e o seu complexo) de Napoleão no escritório, enriquece à custa daquela cidade, daquelas pessoas, e rouba os oito mil dólares a Bailey sem que seja condenado ou tenha aquilo que merece. Não é difícil, felicidade assim? Aceitar que esse Potter pode ter todo o dinheiro do mundo mas não tem coisas mais importantes: um amigo que seja, uma família, respeito por si próprio. “Os meus filmes têm que deixar todo o homem, mulher, e criança saber que Deus os ama, que eu os amo, e que a paz e a salvação só se tornarão uma realidade quando todos eles aprenderem a amar-se uns aos outros”. É um sonho? 

Também o Long John Willoughby de Gary Cooper se quer matar na noite de Natal em Meet John Doe. É também surpreendido quando descobre que não é uma ilha, que há pessoas que dependem dele e vão sentir a sua falta. “If it’s worth dying for, isn’t it worth living for?”, pergunta-lhe a bela e sofrida Barbara Stanwyck. Viver é mais difícil que morrer? Ficar é mais difícil que partir? Então Capra andou a vender-nos sonhos e afinal, nos filmes dele, são tão difíceis de realizar, um verdadeiro pesadelo? Ou andou-nos antes a mostrar que é suposto ser difícil manter-nos fiéis a nós próprios ou estender a mão a alguém, neste mundo? O George Bailey em criança não leva porrada velha do patrão antes que este perceba que não tinha razão e que o miúdo o estava a tentar ajudar? Cena terrível, essa, quem é que não chora a ver isso? Fica marcado para a vida. Ninguém num filme de Capra recebe benesses numa bandeja apenas por viver e sofrer neste mundo, que ele sabe muito bem que a igualdade não é para todos, nem Capra é o “sonho americano personificado”. É a tenacidade e a obstinação de Stewart e Cooper que os transforma em heróis mesmo à frente dos nossos olhos, a capacidade de se levantarem quando não têm razões para isso e só para enfrentarem outra vez os mesmos problemas e as mesmas tristezas. Ora, bolas, é um sonho, isso? 

Fala-se pouco da violência que atravessa os filmes de Capra, das traições e das brutalíssimas lutas no negríssimo Meet John Doe, das constantes reveses de James Stewart no parlamento de Mr. Smith Goes to Washington à empresa nunca lucrativa de George Bailey neste filme. Ninguém sobe de classe por fazer o bem num filme de Capra, aprendem “apenas” que a maior recompensa que existe é descobrirmo-nos no processo. Não desistir. Tentar uma e outra vez. E outra e outra até se conseguir alguma coisa. Não convém, portanto, pensar que isto é coisa de sonhos e da imaginação porque senão a vida torna-se mesmo num pesadelo. Os filmes de Frank Capra não falam de outra coisa, destes avanços e recuos no terreno da auto-comiseração e do respeito próprio (é preciso passar muito tempo na primeira para começar a ver luzes do segundo, é o que nos diz) o que é já matéria infindável. São manuais de sobrevivência para todos os homens: “A paz e a salvação se tornarão uma realidade quando todos eles aprenderem a amar-se uns aos outros.” 

E quanto custa esse “só”? Tentamos este ano? Para o ano? Talvez os filmes de Capra sejam fabulosos não por nos mostrarem coisas impossíveis e belas mas por exigirem tanto de nós. 

Obrigado, Sr. Capra. Vamos tentanto. 

E Feliz Natal.

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