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quarta-feira, 15 de maio de 2024

Night of the Demon (1957) de Jacques Tourneur



por João Palhares

Quem foi Jacques Tourneur? Entre as muitas formas que existem para tentar responder a essa pergunta, a melhor, no caso do franco-americano, talvez seja mesmo dar-lhe a palavra. “Eu fui assistente primeiro,” disse ele a Patrick Brion e Jean-Louis Comolli[1], “depois montador. Percebi depressa que mesmo que se seja um bom assistente, temos poucas hipóteses de nos tornarmos realizadores. Aprendi então montagem em Berlim porque me queria absolutamente tornar cineasta, e é bem mais fácil passar de montador a realizador do que virar cineasta depois de se ter sido assistente. Sabem que um assistente muito bom não é necessariamente um bom cineasta e, vice-versa, um realizador não tem as qualidades de organização e precisão de um bom assistente. Um cineasta deve ser sempre um bocado um... inventor. Eu montei quatro ou cinco filmes, os maiores filmes do meu pai: Les Gaités de l’Escadron, As Duas Órfãs, Accusée... levez-vous! e mais uns quantos de cujos títulos me esqueci. Emile Natan, que nessa altura era o chefe, propôs-me então (com uma «cunha» do meu pai) o meu primeiro filme. Eis como comecei.” 

O pai de Jacques Tourneur, nascido Jacques Thomas, era Maurice Tourneur, cineasta francês nascido em 1876 e que trabalhou também na Alemanha e nos Estados Unidos durante a era do cinema mudo, terminando a carreira de novo em França. Viveu quase noventa anos e tem perto de cem créditos em seu nome, tendo sido considerado por Clarence Brown, seu assistente de realização e montador em inúmeros filmes, tão importante para os cineastas americanos como D.W. Griffith. “O meu pai tinha uma particularidade que não estava muito disseminada na altura,” disse Tourneur a Bertrand Tavernier[2], “era apaixonado por todas as investigações científicas, médicas e filosóficas. A biblioteca dele era inacreditável. Ele seguia de forma muito minuciosa todas as descobertas da psicanálise. Foi em casa dele que eu descobri Freud, Jung, Adler ou Havelock Ellis. Eu nunca leio romances. Apenas ensaios, tratados científicos. É muito mais apaixonante.” 

Foi graças a pessoas como Brion, Comolli e Tavernier, mas também Chris Wicking, Pierre Guinle, Simon Mizhari, Philippe Bernert, Charles Higham, Joel Greenberg, Joel E. Siegel, Eric Leguèbe, Jacques Manlay e Jean Ricaud, que hoje sabemos que Tourneur, para se proteger dos produtores e dos técnicos, cortava totalmente o som quando os actores deixavam de falar e se dirigiam para algum sítio abrindo uma porta ou subindo escadas, para haver silêncio completo nessas situações, que iluminava as cenas de forma muitíssimo cuidada e deliberada para permitir que os actores interpretassem sem distracções e quase intimamente, quase em segredo, induzidos pela luz baixa, levando-os às vezes para os locais mais sossegados dos estúdios para poderem ensaiar, que sonhou com um cinema sem estúdios, sem teatro, sem cenas, sem quarta-parede, planos gerais, planos médios “e essa porcaria toda”[3], que achava que os melhores filmes que tinha realizado eram I Walked with a Zombie, Stars in My Crown e O Arrependido, com menções ainda para A Pantera, A Noite do Demónio, O Facho e a Flecha, O Expresso de Berlim, Canyon Passage e Wichita, e que quis a dado momento que a Hammer lhe produzisse “o verdadeiro filme de terror”, que para ele nunca tinha sido feito, sobre a guerra entre os vivos e os mortos. 

Este filme, nunca realizado por ele, fosse em Inglaterra, na França ou nos Estados Unidos, iria chamar-se “Whispers in a Distant Corridor”, e numa das fases de desenvolvimento contava com o magnata Howard Hughes, o terceiro homem mais rico do mundo, e um poeta galês chamado Richard Burton como personagens. Depois de contactar o M.I.T., a Duke University, o Cal Tech e outras universidades americanas e europeias, Hughes incumbia Burton de procurar uma casa assombrada na Escócia para lhe provar que os fantasmas não existiam. Com quatrocentos homens de batas brancas, equipados com computadores de última geração, aparelhos de infra-vermelhos, microscópios acústicos, geradores, gravadores e casas-de-banho portáteis, eles conseguiam finalmente contactar fantasmas e descobriam que esses fantasmas queriam ajudar a humanidade. Abriam também, no entanto, uma brecha e o mundo a três dimensões e de uma só realidade como o conhecemos era invadido por mundos paralelos e pelo “exército dos mortos”. 

Jacques Tourneur acreditava no sobrenatural. Como acreditou Victor Hugo, depois de participar em sessões espíritas organizadas pela Madame Delphine de Girardin, durante o seu exílio na ilha de Guernsey, no Canal da Mancha. “There are more things in Heaven and Earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy,” responde o príncipe dinamarquês ao amigo na quinta cena do primeiro acto de Hamlet, de William Shakespeare, precisamente quando Horatio lhe diz que não acredita em fantasmas. Em A Noite do Demónio, Dana Andrews interpreta um psicólogo céptico e muito prático que é testado e contradito em todas as ocasiões durante a sua investigação e que só mesmo perto do final do filme é que se convence e se consegue livrar do pergaminho amaldiçoado e espoletar outro dos finais sintéticos e fabulosos de Tourneur, para juntar aos de Canyon Passage, Anne of the Indies, Encontro nas Honduras, Wichita, Os Fabricantes do Medo ou Timbuktu, e que só por si mereciam um grande estudo, tal como os de Alfred Hitchcock, Michelangelo Antonioni e John Carpenter. Quantas vezes ou por quanto tempo é que temos de olhar para um corredor até começar a vislumbrar o abismo, esse tal que se diz que nos olha de volta mesmo nos olhos? Dana Andrews, perdido nos seus pensamentos enquanto procura o seu quarto de hotel, imagina ou ouve mesmo uma canção antiga enigmática e fundadora, olha uma e várias vezes para os corredores e até nós pensamos ver sombras ou ouvir sussurros distantes. Pensamos numa epígrafe encontrada no livro fundamental de Chris Fujiwara sobre Tourneur, atribuída a René Descartes. “Não há indicações conclusivas de que a vida acordada possa ser distinguida do sono.” Faz-nos lembrar o mais poético e desesperado “Is all that we see or seem / but a dream within a dream,” de Edgar Allen Poe. As luzes apagam-se e ficamos sozinhos, a fitar as imagens que criámos para nos atormentarmos a nós próprios sob o doce encanto dos pesadelos e que não conseguimos deslindar: um puxão inesperado para dentro duma sala pequena e lotada. Carne solta, pele e músculos saídos. Um crânio a descoberto. Visões em relâmpagos e pouco nítidas que nos fitam quando avançamos num corredor enorme e desolado. E recuamos, sem querer saber se há lá alguma coisa ou não. Sim, “maybe it's better not to know.” E os fantasmas não existem.

[1] in «Cahiers du Cinéma» nº 181, Agosto de 1966.
[2] in «Positif» nº 132, Novembro de 1971.
[3] «Cahiers du Cinéma» nº 181.



quarta-feira, 8 de maio de 2024

The Two Faces of Dr. Jekyll (1960) de Terence Fisher



por António Cruz Mendes

Terence Fisher realizou dezenas de filmes protagonizados por uma vasta galeria de conhecidos monstros: Frankenstein, Drácula, o Fantasma da Ópera, a Múmia… Desvalorizados pela crítica quando estrearam, houve quem viesse mais tarde a reconhecer a sua qualidade. 
 
Em As duas faces do Dr. Jekyll, Terence Fisher trouxe para a tela dos cinemas a personagem da bem conhecida novela O Médico e o Monstro. No entanto, o argumento de Wolf Mankowitz é estranho à história escrita por R. L. Stevenson. Nesta, só há protagonistas masculinos mas, no filme, a mulher tem um papel fundamental e, tal como sucede noutras obras de Fisher, o horror associa-se ao erotismo. Muitos recordarão por certo, a volúpia com que, nos seus filmes, jovens donzelas oferecem o seu pescoço aos dentes do Conde Drácula... Neste caso, grande parte da acção decorre em dois cenários contrastantes: o ambiente do laboratório do Dr. Jekyll, sombrio, austero e monocromático, e o da Esfinge, um cabaret onde as cores explodem e reina a liberdade e a devassidão. Estes dois mundos espelham-se no rosto dos protagonistas. O Dr. Jekyll e o Mr. Hyde são encarnados pelo mesmo actor, mas Paul Mason, quando assume o papel do primeiro, aparece-nos com uma cabeleira e sobrancelhas postiças, uma fácies torturada e o rosto sob uma pesada maquilhagem e, quando encarna o segundo, surge-nos despido de todos esses adereços, livre, espontâneo, de olhar fulgurante e sorriso aberto. 
 
O conflito interior do Dr. Jekyll com o seu alterego, Mr. Hyde, tem sido por vezes entendido como exemplificando aquele que opõe o Id ao superego. Para Freud, o Id, fonte de impulsos e desejos inconscientes, busca o prazer imediato. É irracional e amoral. O superego, pelo contrário, encarna os valores socialmente aceites e funciona como um juiz da acção humana. O conflito entre ambos é gerido de uma forma apenas parcialmente consciente pelo ego, que obedece ao “princípio da realidade”, procurando minimizar todas as consequências negativas que possam advir da busca do prazer. Embora a novela de Stevenson tivesse sido escrita muito antes de Freud ter enunciado a sua teoria psicanalítica, esta tese pode corresponder ao facto de, nela, Mr. Hyde ser descrito como um tipo impulsivo e bestial, mas também como sendo muito baixo, de uma altura muito inferior à do Dr. Jekyll, o que se explicaria por o seu ser ter vivido sempre reprimido, impedido de se exercitar livremente. 
 
No filme de Terence Fisher, apesar de Mr. Hyde nos aparecer sob uma forma de um homem atraente e bem-parecido, essa interpretação também é admissível. O diabo tem de saber ser tentador. Porém, As duas faces de Dr. Jekyll pode sugerir-nos outras leituras. Há nele uma nota de crítica social que importa sublinhar, uma denúncia da hipocrisia da puritana sociedade Vitoriana, da qual a Esfinge nos revela uma das suas faces ocultas. Quando Hyde quer conhecer os bas fonds da sociedade inglesa, é Paul Allen, um gentleman na sua aparência, que lhe serve de guia. E pode ser visto ainda como um caso de crime passional. Apesar do seu cinismo e da sua hipocrisia, Kitty está apaixonado por Allen e rejeita tanto os pedidos de ajuda de Jekyll, como os avanços amorosos de Hyde. E este, que a estupra e assassina, acaba por ser o instrumento da vingança de Jekyll. Será, talvez, a necessidade imperiosa de a realizar o que pode explicar que, no conflito interior que o consome, acabe por ser Hyde a levar a melhor. 
 
Enfim, na novela de Stevenson, o honrado Jekyll suicida-se porque percebe que essa é a única forma que lhe permite liquidar o brutal e sádico Hyde que o habita. No filme de Terence Fisher, o final fica em aberto. Diante dos olhos da polícia, Jekyll e Hyde revelam-se como uma só pessoa, mas o autor material dos crimes cometidos praticou-os contra a vontade do homem que têm diante de si. Como irá lidar a Justiça com o seu caso?



quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Crash (1996) de David Cronenberg



por Vítor Ribeiro

[Um contributo, na subscrição do manifesto assinado pelos editores do À pala de Walsh, na defesa e elogio das edições físicas como um dos caminhos de suporte da cinefilia, da diversidade e da transmissão entre gerações das obras, do reconhecimento dos seus autores, da valorização do cinema e da sua linguagem.] 
 
A cinefilia organiza-se nas nossas cabeças, na nossa memória, mas também precisa de outro espaço, de espaço físico. No armário onde junto os filmes (a maioria em DVD), a disposição faz-se pela ordem alfabética do nome dos realizadores, uma questão de organização, claro, mas também do pagamento da dívida à política dos autores, conforme a prescrição dos Cahiers du Cinéma. A parte superior do armário permite que esta estrutura de arrumação seja questionada, com a introdução dos santinhos no altar: cineastas com quem nos deitamos mais vezes, o que permite uma reaprendizagem das nossas filiações, um conjunto de associações, em que se juntam os irmãos Scorsese e Schrader, ou os camaradas de burlesco Chaplin e César Monteiro. 
 
Fui comparar as durações, da cassete VHS e da cópia exibida no cinema através dos recortes da imprensa que guardara, considerei a velocidade das imagens em movimento do vídeo (25 frames por segundo) quando comparada com os 24 frames por segundo do cinema, e cheguei a uma diferença de dois ou três minutos. 
 
Nesse armário, um dos santinhos é, naturalmente, David Cronenberg, onde se inclui a edição em DVD de Crash (1996), que estreou em sala em Portugal, em Outubro de 1996 e que será reposto no dia 7 de Janeiro. Aficionado de Cronenberg e leitor de Ballard, tenho na memória três peregrinações à sala de cinema ao encontro da carne e da máquina, sendo que a primeira terá sido no Nun’Alvares, maravilhoso cinema de cidade, na Guerra Junqueiro, Porto. Alguns meses depois (não me recordo se a janela para a edição em vídeo era de três ou de seis meses), um amigo que trabalhava num clube de vídeo ficou com o encargo de me avisar da chegada do VHS de Crash
 
Recolhi-me com aquele objecto de desejo no domicílio, mas logo nas primeiras sequências algo de estranho aconteceu: pareciam faltar partes das cenas do filme que tinha na memória. Mas, só tive a certeza, já passada mais de metade da duração do filme, na cena que se segue ao encontro dos corpos de Vaughan e Catherine na lavagem automática do carro dele, da sua cama sobre rodas. No domicílio, na mesma cama onde James e Catherine tinham fantasiado com as cicatrizes do corpo estropiado de Vaughan, Catherine encolhida no seu corpo coberto de escoriações, marcado pelos movimentos maquinais de Vaughan, era afagada pelo toque de James e pela música orquestrada de Howard Shore, a substituir as guitarras metálicas que soaram até aí. Cena lindíssima, expressão de intimidade, que aquela edição havia retalhado, talvez para ocultar os genitais de Deborah Unger sugestionados pela versão integral. 
 
Fui comparar as durações, da cópia exibida no cinema através dos recortes da imprensa que guardara (a internet era ainda pré-histórica e o Google uma quimera), considerei a velocidade das imagens em movimento do vídeo (25 frames por segundo) quando comparada com os 24 frames por segundo do cinema, e cheguei a uma diferença de dois ou três minutos. Cheio de convicção, que devo ter carregado com a indignação de quem não está habituado a viver com a censura, escrevi ao distribuidor da edição em VHS. A responda não demorou, lamentavam o erro, tinham utilizado por acidente uma cópia distribuída no Reino Unido (onde a censura de filmes era, talvez ainda seja, comum), mas iriam repor o filme, com a edição correcta. Algumas semanas depois, chegou pelo correio uma nova cassete VHS, com a metragem certa e uma carta de agradecimento, que guardei, mas não sei onde. 
 
Uma dúzia de anos depois, em Maio de 2009, uma Mostra de Ficção Científica – On the Trek – tão peregrina, que só conheceu uma edição, na Casa das Artes de Famalicão. À boleia da ante-estreia europeia(!) do reboot de Star Trek armado por J. J. Abrams, um panorama de cinco dias estrelado por um Programa Ballard, onde recuperámos uma cópia em película de Crash, também em película, Aparelho Voador a Baixa Altitude (2002), o Ballard das ruínas de Tróia por Solveig Nordlund, Videodrome (1983), um Cronenberg sem a escrita mas com o espírito ballardiano, e uma exposição em diálogo com o CCCB: Centre de Cultura Contemporània de Barcelona. E a fechar a On The Trek, Wall-E (2008). Nos primeiros trinta minutos da mais bonita peça do catálogo Pixar, nas ruínas de um novo mundo, despovoado, em que os arranha-céus são já esculturas cobertas de poeira e de tempo, um robô obsoleto, mas trabalhador, arruma e empilha lixo retirado de uma extensa clareira. 
 
Wall-E vai catando vários objectos que arruma no seu atrelado, memorabilia sentimental organizada em prateleiras (onde ele próprio se arruma no fim do dia de trabalho): cassetes VHS, onde ele revê musicais, que também grava no seu dispositivo, um cubo mágico, talheres, relógios, espanta-espíritos, um globo terrestre, objectos e brinquedos, que ele testa e experimenta, cataloga e organiza. Do ecrã de Wall-E solta-se um pedaço de Hello, Dolly! (1969), o tema “It Only Takes a Moment”: não consigo imaginar maior elogio à materialidade. 
 
in «Crash, uma edição censurada», À Pala de Walsh, 31 de Dezembro de 2020. 
 

[O autor deste texto está a preparar uma análise mais aprofundada sobre Crash, que oportunamente partilharemos, talvez até noutra exibição do filme.]



sexta-feira, 6 de outubro de 2023

2001: A Space Odyssey (1968) de Stanley Kubrick



por Jacques Lourcelles

Como disse Jacques Goimard (cf. Biblio.): «2001 é o primeiro filme desde Intolerância que é simultaneamente uma superprodução e um filme experimental». Ao contrário de várias produções holywoodianas, esta, quanto ao sentido e à forma, emana de um homem só e não passou de mão em mão, apesar de ter uma génese bastante longa (1964-1968), durante a qual o orçamento inicial aumentou de seis milhões para dez milhões e meio de dólares. No entanto não é de modo nenhum a obra de um só homem e, em primeiro lugar, a contribuição do argumentista e escritor de FC Arthur C. Clarke foi muito importante. No início de 1964, Kubrick propôs a Clarke escrever um argumento tendo em vista um filme de FC que ao princípio tomaria a forma de um romance escrito a duas mãos. O ponto de partida do romance e do filme foram as novelas de Clarke The sentinel (escrita em 1948), bem como Encounter in the Dawn (1950) e Guardian Angel (1950). O trabalho de escrita e a preparação do filme duraram até 29-12-1965, data do primeiro dia de rodagem. A própria rodagem estendeu-se por cerca de sete meses (nos estúdios Boreham Wood, na Inglaterra), e a pós-produção (mais de duzentos planos do filme precisaram de efeitos especiais) só chegou ao fim no início de 1968. O trabalho e a inspiração de Kubrick visavam dois objectivos em paralelo: realizar o filme de FC mais espectacular feito até à data (com as maquetes e os efeitos especiais mais esmerados e sofisticados, especialmente graças ao talento de Douglas Trumbull) e oferecer uma espécie de poema filosófico sobre o destino do Homem na sua relação com o Tempo, com o progresso e com o universo. Esta dupla ambição resulta numa obra de construção muito original e muito arriscada, feita de quatro blocos relativamente autónomos, o que faz também realçar o virtuosismo de Kubrick e a sua vontade em percorrer o campo quase completo do género (como nota Bernard Eisenschitz in Cahiers du Cinéma 209: «A mestria de Kubrick aparece na justaposição e na combinação de quatro grandes motivos característicos: FC pré-histórica, antecipação a curto prazo, viagens interplanetárias e por fim as grandes galáxias, mutantes no hiperespaço»). Basicamente, 2001 é um filme de angústia – uma angústia difusa, como que glacial, cuja substância é por assim dizer consubstancial à existência do homem no universo. É a angústia – física e metafísica – do homem perdido nos espaços infinitos, mas também velado, em todas as épocas, pela próxima etapa – inelutável – do progresso científico, que não deixará de ser ainda mais destrutivo que construtivo para ele. Mas 2001 também é um filme de especulação: a influência dos extra-terrestres (que se manifesta pelo monólito) e a mutação final do herói vão gerar talvez uma forma de vida e de desenvolvimento menos decepcionante e menos imperfeita que a que conhecemos. A este respeito, o filme pode ser julgado optimista. Mas enquanto o pessimismo de Kubrick é sentido como uma evidência durante a maior parte do filme (onde mesmo a vida quotidiana dos personagens, tornados simples servos das máquinas e do cérebro que as comanda, cria uma monotonia deprimente semelhante ao «tédio mortal da imortalidade» referido um dia por Cocteau), o seu «optimismo» permanece puramente especulativo e, enquanto tal, existe apenas como um imenso ponto de interrogação. Optimismo muito relativo, a bem dizer, uma vez que tudo o que poderia acontecer de melhor ao homem viria de outro sítio, e sem que este o tivesse decidido. Kubrick parece difundir mesmo a hipótese de que toda a evolução científica do homem pode ser determinada pela intervenção de extra-terrestres. No plano formal, Kubrick alterna com uma plenitude maravilhosa o aspecto contemplativo (a progressão das naves pelo espaço) e o aspecto dramático (vide o extraordinário duelo entre Keir Dullea e o computador Hal 9000, que não terá a última palavra). Salpica os vastos espaços de angústia disseminados pelo filme com zonas estreitas de humor. Humor ora relativamente secreto (troca de banalidades entre os astronautas), ora mais evidente (utilização da música de Johann Strauss). Tudo o que se sabe da elaboração do filme, das hesitações e tentativas de Kubrick mostra que ele quis ir cada vez mais longe na direcção do silêncio, da economia, do segredo e do mistério. Suprimiu assim o comentário off do início, reduziu ao mínimo o número de membros da equipa da Discovery e renunciou a mostrar os extra-terrestres. Esta direcção foi muito benéfica para o filme. Estimulou, como nunca se tinha ousado fazer num filme com este orçamento, a imaginação do espectador. (E é significativo que a maioria dos comentários escritos sobre 2001, tanto na Europa como nos Estados Unidos, sejam no geral de um nível altíssimo). Teve igualmente como efeito apagar no estilo a tendência de Kubrick em sublinhar de forma pesada os seus efeitos e as suas intenções: de todos os seus filmes, 2001 é o mais sóbrio, o mais completo e o mais bem conseguido. No que diz respeito à história da FC cinematográfica, 2001, que na sua estreia criou um choque cujo eco ainda hoje não se extinguiu, situa-se na crista de uma década em que o género se ia tornar predominante, depois de ter sido minoritário e marginal durante cinquenta anos em Hollywood. 

N.B. Arthur Clarke escreveu uma continuação ao seu romance de onde foi extraído um filme, 2010 (título português idêntico), realizado por Peter Hyams (1984). Keir Dullea reencontrou o seu papel. Desenvolvendo sobretudo um tema político, encorajando uma aliança entre americanos e russos, a obra tinha pouca envergadura e era mesmo muito inferior a alguns dos outros filmes de FC de Hyams como Capricorn One (1978) ou Outland (1981). 

BIBLIO. : alguns meses depois da estreia de 2001 saiu o livro (homónimo) do filme, assinado apenas por Arthur C. Clarke, Nova Iorque, New American Library, 1968 (traduzido pelas Publicações Europa América). A planificação do filme (643 planos) apareceu na L'Avant-Scène no 231-232 (1979), antecedida de um prefácio importante de Jacques Goimard de quem também recomendamos a crítica escrita a quente para a Fiction de Novembro de 1968: o autor confessa aí a sua perplexidade e a sua admiração diante de uma obra que, não o esqueçamos, pareceu à época, mesmo aos olhos dos especialistas, muito esotérica. Sobre a rodagem e as trucagens, ver Jerome Agel: The Making of 2001, Nova Iorque, New American Library, 1970. (Para esta recolha de textos e de documentos, o autor teve acesso aos dossiers de Kubrick. Obra considerada até há pouco tempo como o campeão de vendas dos livros americanos sobre cinema.) Também leremos Arthur C. Clarke: The Lost Worlds of 2001, Nova Iorque, New American Library, 1972 (diário de bordo do argumentista); Carolyn Geduld: Filmguide to 2001: a Space Odyssey, Indiana University Press, 1973 (estudos, cronologia e bibliografia); Jean-Paul Dumont e Jean Monod: Le Foetus astral, Christian Bourgois, 1970 (sem dúvida o primeiro estudo estruturalista sobre um filme). 

in «Dictionnaire des films. **De 1951 à nos jours Suivi d’Écrits sur le cinéma», Robert Laffont, Paris, Novembro de 2022.
Tradução: João Palhares



quarta-feira, 31 de maio de 2023

Lektionen in Finsternis (1992) de Werner Herzog



por João Palhares

Numa sessão do ciclo “Cinema, jornalismo e liberdade”[1], promovida pelo Cineclube Gardunha em parceria com o Jornal do Fundão nas comemorações do seu 4000º número, José Manuel Barata-Feyo partilhou uma história dos seus tempos de televisão, na RTP, sobre a cobertura da guerra do Golfo. Ele tinha comunicado à estação que não se passava nada na capital da Jordânia, e que o melhor se calhar era voltar para Portugal, mas a redacção central disse-lhe que havia desacatos todos os dias à frente da embaixada americana e que os outros canais os estavam a difundir sob a manchete de “Jordânia a ferro e fogo”. Na verdade, o que se passava, era que todos os dias desciam vinte a trinta pessoas por uma avenida de Amã até chegarem à frente da embaixada e começarem a gritar palavras de ordem contra os Estados Unidos da América, incendiando bandeiras. O hotel onde estava hospedada toda a imprensa internacional era mesmo em frente à embaixada americana e, acompanhando esse grupo, sessenta ou setenta câmaras esperavam por eles sentados e enquadravam-nos em contra picado para parecerem uma multidão. 
 
Então, quando a redacção central pediu a Barata-Feyo que fizesse uma peça para abrir o telejornal com “a capital da Jordânia a ferro e fogo”, o jornalista falou com o seu operador de câmara, Jorge Guerreiro, e disse-lhe para filmar os manifestantes a descer a avenida. Quando chegassem aos muros da embaixada, juntava-se então às câmaras das outras televisões. Como já era um jornalista sabido e vivido, entregou a peça tarde e a más horas certamente para ninguém verificar o conteúdo e o telejornal abriu assim com as suas imagens e de Guerreiro anunciadas como a guerra em primeira mão num escalar da violência fabuloso. Escusado será dizer que, depois deste episódio, a RTP não voltou a pedir reportagens do género a Barata-Feyo. 
 
A cobertura da guerra do Golfo beneficiou das possibilidades técnicas trazidas pelos satélites, pela artilharia militar equipada com câmaras e pelas imagens de visão nocturna, o que permitiu que um canal como a CNN, que desde a sua génese se dedicava às notícias 24 horas por dia, difundisse a guerra em directo a partir de um hotel em Bagdad com enviados especiais. Só que se a técnica evoluiu, as regras apertaram quase na mesma medida, e o exército americano só libertava a informação que queria libertar, limitando ainda os acessos aos cenários de guerra e as entrevistas aos soldados a certos jornalistas, o que na prática resultava no chamado pool de imprensa que fazia proliferar as mesmas imagens horas a fio por todo o mundo. 
 
Werner Herzog, como é óbvio, não gostava dessas imagens, mas viu o potencial imagético dos incêndios dos poços de petróleo por parte do exército iraquiano no final da guerra quando os viu como toda a gente em 1991. "O mundo andava a ser saturado noite e dia com imagens dos poços de petróleo em chamas no Kuwait,” disse Herzog a Paul Cronin[2], “mas através dos filtros das notícias na televisão. Lembro-me de assistir àquelas transmissões e de saber que estava a testemunhar um acontecimento momentoso que tinha de ser registado, mas de forma singular, para a memória da humanidade. As estações e os canais por cabo tinham filmado aquilo de forma totalmente errada; aquele estilo de reportagem de tablóide, com os seus trechos de oito segundos, habituou rapidamente o público aos horrores, e toda a gente se tinha esquecido demasiado cedo daqueles campos espectaculares dum óleo ardente sereno e escuro como breu que cobria a paisagem. Eu estava à procura de imagens doutro tipo, algo de muito diferente, algo de mais duradouro. Queria ver aqueles planos a rolar em takes longos e quase intermináveis. Só assim é que as imagens podiam revelar o seu verdadeiro poder.” 
 
Assim, e na sua busca permanente da verdade pela poesia, convocou o operador de câmara da BBC, Paul Berriff, que tinha um visto de rodagem, o piloto de helicóptero experiente Jerry Grayson, e o director de fotografia aérea Simon Werry. O resultado foi Lições da Escuridão, dividido em treze curtos capítulos, um delírio poético pleno de invenções que se tornou possível para o cineasta alemão numa época de revelações estrondosas, e que aí como nos anos seguintes lhe permitiram decidir que, em cinema, e no documentário como na ficção, os factos podem servir maiores desígnios, que uma citação não é uma citação, que um sinal de proibido é uma tentativa de comunicação por parte duma raça de extraterrestres, os seres humanos, que uma postura resoluta de trabalho é uma insistência de criança em brincar com o fogo, que os objectos de estudo não têm de ser nomeados para serem visíveis e óbvios, que o turismo é crime e que o universo, esse mistério físico e abstracto que nos baralha há milénios, não sabe o que é um sorriso. A informação não é conhecimento, em milhões de anos podemo-nos transformar nos dinossauros e nos fósseis de outros seres, mais inteligentes do que nós, que viajando através do fogo e da poeira e dos destroços, numa linha recta que parte de François Couperin e termina em Dante, passando por Wagner, Grieg, Mahler e Pascal, acabarão por descobrir que houve um inferno que uma vez se chamou planeta Terra e um demónio que por lá se passeou e hoje conhecemos como ser humano. 

 “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate.”

[1] «Conversa entre José Manuel Barata-Feyo e Rui Pelejão sobre o filme Network e jornalismo», disponível no canal do YouTube do Cineclube Gardunha.
[2] in «Werner Herzog: A Guide for the Perplexed - Conversations with Paul Cronin», de Paul Cronin, Faber & Faber Limited, Londres, 2014.



quinta-feira, 25 de maio de 2023

Little Dieter Needs to Fly (1997) de Werner Herzog



por Joaquim Simões

Dieter Dengler é um homem assombrado pela morte à qual escapou, ou antes, pela qual foi rejeitado. Viu amigos morrerem da maneira mais violenta e gráfica possível. Um deles vem por vezes dizer-lhe que tem frio nos pés, por isso Dieter nunca baixa a capota do carro, mesmo no calor do Verão. E ao entrar em casa fecha e abre a porta repetidamente, para saborear a liberdade: quando esteve preso na selva do Vietname as portas nunca se abriam. 

A vida do pequeno Dieter foi moldada desde a infância pela guerra e pela morte. Quando era criança assistiu ao bombardeamento da sua vila, e um avião passou a rasar por cima da sua casa, tão perto da sua janela que o viu a aproximar-se como um espetro, uma visão “indescritível”. A partir desse momento decidiu que queria voar. Herzog, conterrâneo de Dieter e também ele uma vítima da miséria da Alemanha pós-guerra, dá a este veterano a oportunidade de contar a sua história, captando-a com o seu experiente olho documental. Mais tarde irá tornar esta história fantástica numa ficção em Rescue Dawn

Depois da segunda guerra a Alemanha não podia ter uma força aérea; para concretizar o seu sonho, Dieter teria de emigrar para os Estados Unidos. Com dezoito anos, trinta cêntimos no bolso e muita fome embarcou num navio. Dois anos passados no Texas a descascar batatas e outros dois a viver numa carrinha na Califórnia, a trabalhar e a estudar; finalmente conseguiu entrar na marinha. O pequeno Dieter começou a voar e foi diretamente para o Vietname. 

“Visto de cima, o Vietname não parecia real. Dieter viu-se no papel não só de piloto, mas de soldado envolvido numa guerra. Embora fosse tudo muito real, tudo lá em baixo parecia abstrato”, relata Herzog. Um dia despenhou-se, e o que tinha visto de cima como uma mera abstração iria rodeá-lo durante os próximos seis meses. A morte voltava para o assombrar, e tão perto esteve dela que a chegou a considerar a sua única amiga. Mas ela não o quis e Dieter foi salvo. 
 
A história de Dieter é tão alucinante que desafia a credulidade do espectador habituado às ficções de guerra; nem a maior parte dos filmes de ação chega a tais exageros: só a realidade é que não tem limites. Ao longo da narração de Dieter Dengler, vamo-nos apercebendo e sendo cada vez mais assoberbados pela capacidade de resistência e coragem de que este homem foi capaz. Não só passou por eventos traumáticos com uma capacidade de resiliência e foco surpreendentes, como é agora capaz de relatar todos os eventos eloquentemente e com todo o pormenor. 

Herzog, no entanto, não se limita a fazer o registo passivo da narração de Dieter Dengler, acompanhada por imagens ilustrativas, como seria o expectável num documentário banal. O realizador desafia o sujeito a enfrentar mais uma vez o trauma, a embrenhar-se novamente na selva que o engoliu e cuspiu passados seis meses. Num plano que poderá parecer cruel, Herzog põe-no a correr pela selva de mãos atadas atrás das costas, escoltado por vietnamitas com espingardas. Embora fosse tudo a fingir o seu coração batia violentamente, admite, como se fosse real. E foi.



quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Cross of Iron (1977) de Sam Peckinpah



por André Miranda

O inimigo capturado pelo esquadrão de reconhecimento não é um qualquer soldado: é uma criança. Igual àquelas que, num último estertor de condenado, com a mão trémula, Hitler ordenou que defendessem Berlim até à morte. A guerra é um beco sem saída, fim último e inexorável do fascismo. O bacilo que lânguido e sub-reptício voga por entre as pessoas de bem, esses que supostamente urgem pela pátria e o reerguer da grandeza olvidada. Rebanho que aguarda o pastor hábil e feroz, a flama que faça o bacilo recrudescer. 

É bem dentro do território soviético que o sargento Steiner comanda o seu grupo em operações de reconhecimento da Wehrmacht. Um oficial que odeia oficiais; que odeia os homens do partido. Rege-se por outras regras que não as deles. Possui um olhar de têmpera imperturbável, uma envergadura impávida ao ribombar ininterrupto das bombas e um sorriso que só se abre quando está entre os seus. 

O que tropeça e conspurca a farda impoluta é o capitão Stransky. Aristocrata prussiano da mais pura linhagem, nasceu com a glória militar desenhada nos astros pelo sangue azul correndo-lhe nas veias. Almeja, apenas e só, uma cruz de ferro ornamentando-lhe o peito. Não é em Paris que a vai alcançar, onde o único risco em que incorre é humilhar-se desajeitado numa dança complicada. Por isso a frente oriental. Mas depressa o objetivo esboroa-se quando, pusilânime, berra, “estou ferido”, e apenas umas gotas liliputianas lhe escorrem da testa. 

Entre estes duas personagens, entre estes dois opostos, traça-se a derrota da Alemanha nazi, essa derrota já sem espaço para retiradas estratégicas e forçada a fugas vexantes. Resta a gargalhada de Steiner perante a inépcia de Stransky, o aristocrata predestinado que não sabe como recarregar a metralhadora, enquanto sobre eles desce o caos das explosões e o contínuo tiroteio. Eis, então, a guerra em todo o seu esplendor. O bacilo resplandecendo na sua volúpia pela morte.



domingo, 10 de julho de 2022

Dr. Strangelove, or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (1964) de Stanley Kubrick



por André Miranda

Olho o cursor piscando, acusando-me de falta de criatividade: não sei o que escrever, ilude-me a folha de sala. E por isso principio lamentando-me da minha falta de jeito e garantindo, entretanto, que os próximos parágrafos consistirão da mesma essência. Uma essência pura como os líquidos que ingiro: água destilada e álcool. Só não fumo charutos. Quanto aos comunistas, tenho as mais sérias dúvidas sobre a veracidade dos seus maquiavélicos planos. Afinal já não vivemos uma guerra fria. Ou vivemos? O planeta aquece com desfaçatez e as mangas compridas das camisolas esboroam-se. Não falta muito até que todos andemos de camisolas de alças. 

Se me pusessem na mesma sala que o general Jack Ripper o mais provável é que me subjugasse ao seu porte e voz robusta. Acenaria que sim a todas as lérias por ele ditas como se as suas palavras fossem as únicas pedras num deserto de areia movediça. Ao contrário do Capitão Lionel Mandrake, seguraria as balas e alentaria com gritos delirantes o trovejar contínuo da metralhadora. E quando tudo desmoronasse à nossa volta, alçaria o meu braço sobre os seus ombros caídos e murmuraria: meu general, não há quem esteja mais certo do que o senhor e o mundo inteiro percebê-lo-á no segundo seguinte a não poder percebê-lo. Não vos iludo: a minha coragem é de nuance estapafúrdia. 

Imagino-me agora na sala de guerra, ocupando um lugar naquela mesa oval imensa; farda polida, postura vertical, rosto garboso. Ouço os arrazoados gerais. Concordo com uns, discordo de outros. Tenho uma opinião, mas guardo-a. É necessário salvar a vida e se a salvando podermos obliterar o nosso inimigo, melhor ainda. O essencial é que nenhuma lacuna entre nós e eles exista: mais armas, mais tanques, mais mísseis. Tudo em nome da paz. Esta só existe se mutuamente apontarmos uma pistola à testa. Quem me parece um tipo impecável é este indivíduo com o cabelo desgrenhado; é verdade que por vezes grita, Mein Fuhrer, e a mão insiste em esticar e saudar: há tiques do passado que custam a emendar, mas com tempo tudo vai ao sítio. Vejam lá que até alterou o nome e agora se chama Estranhoamor, Dr. Estranhoamor. 

A primeira bomba está prestes a rebentar. Porventura ainda haja tempo de preservar uma réstia de vida: descer uns quantos humanos até a uma mina, onde lhes fosse possível resistir às radiações mortíferas e persistentes. Dez mulheres para cada homem, sugere o Dr. Estranhoamor. Perfeito, acenam as mais altas figuras hierárquicas, os que seriam salvos, com uma avidez mal disfarçada. Entretanto, o militar cowboy de chapéu erguido é consumido pela explosão nuclear. Mais seguir-se-ão. Quantas? As necessárias. Até que nada seja.



quarta-feira, 13 de abril de 2022

Black Narcissus (1947) de Michael Powell & Emeric Pressburger



por Alexandra Barros

Black Narcissus é um filme de abismos. Os visíveis são os magníficos precipícios que cercam Mopu, uma aldeia indiana localizada numa região remota e de enorme beleza natural dos Himalaias. Esta paisagem é o centro duma espiral dramática que se desenvolve à medida que outros abismos se vão revelando. 

Cinco freiras anglicanas são incumbidas de transformar um palácio abandonado de Mopu num convento. Clodagh, apesar da sua juventude e impreparação é escolhida para liderar o grupo. O palácio foi em tempos habitado pelo harém do pai do general indiano Toda Rai e é conhecido como Casa das Mulheres. Desses tempos permanecem os frescos eróticos hindus pintados nas paredes. De acordo com a vontade do general, o convento deverá prestar serviços educativos e de saúde à comunidade local. Estes serviços, no entanto, não interessam à população, cujos hábitos culturais chocam com os que as freiras pretendem impor. Esta distância entre as religiosas e a população irá aprofundar-se e uma tragédia transformá-la-á, no final, num abismo intransponível. 

Inicialmente, para garantir o sucesso do projecto, as pessoas são pagas pelo general para receber a educação e os cuidados médicos que não desejam e o convento enche-se diariamente de gente. Quem está verdadeiramente interessado na instrução das freiras é o filho do general, Dilip Rai, um “pavão” vaidoso, mas educado, gentil e sensível. Para agradar ao general, as freiras aceitam-no como aluno, apesar desta presença masculina no interior do convento não ser vista com bons olhos. Kanchi, uma rapariga sedutora e irreverente, também é acolhida pelas freiras para ser por elas “domesticada”. O visitante do convento mais desconcertante, no entanto, é Mr. Dean, um inglês que representa o general e que foi por ele encarregado de ajudar as freiras no que for necessário. As freiras tentam adaptar-se à sua nova casa e ultrapassar as dificuldades inerentes à vida num país do qual desconhecem a língua e cultura. Porém as intensas impressões sensoriais provocadas pelo ambiente e pessoas que as cercam impedem que a paz espiritual se instaure no convento. Mr. Dean é especialmente perturbador, despertando paixões, ciúme, desejo e por fim, loucura. Mas a própria paisagem, majestosa e estonteante, afecta a racionalidade e autocontrole das freiras. Inebriada pela beleza circundante, Philippa semeou flores em vez dos vegetais comestíveis que estavam planeados. A cena em que Philippa é confrontada com a sua irresponsável acção condensa a essência do filme, pelo que não espantaria que Black Narcissus fosse alguma espécie de flor germinada na horta sabotada. Na verdade, Black Narcissus é o nome do perfume usado por Dilip Rai. O seu aroma delicia tanto Kanchi como as freiras e constitui mais um apelo aos seus já sobre-estimulados sentidos. A conversão da Casa das Mulheres num convento parece assombrada pela encarnação anterior do palácio e por espíritos de natureza bem terrena. 

Tal como a paisagem, todo o filme é exuberante, com uma paleta de cores vibrante e com forte carácter simbólico. No guarda-roupa, aos hábitos religiosos de cores neutras contrapõe-se o colorido vestuário indiano, particularmente os exóticos trajes de Dilip e Kanchi. No final, o vermelho do vestido e dos lábios de Ruth espalha-se pelo ar como um veneno até ser engolido por um vertiginoso (e literal) abismo[1]. 

Filmado em Technicolor, e muito elogiado pela sua fotografia, Black Narcissus é considerado o visualmente mais belo filme de Michael Powell e Emeric Pressburger. São deslumbrantes: a cor e o brilho, a apurada escolha de perspectivas e a cuidada composição das imagens. Embora possa parecer ter sido filmado in loco, foi rodado em estúdio. Michael Powell disse, a propósito: “As nossas montanhas foram pintadas em vidro. Decidimos fazer tudo no estúdio para conseguir controlar totalmente a cor. Por vezes, num filme, o tema ou a cor são mais importantes do que o enredo.” 

O enredo de Black Narcissus é bastante bizarro, mas o enredo é sobretudo um pretexto. Importante é o grande tema do filme: o incontrolável poder das forças naturais que se impõem à razão através dos sentidos. Esse poder encantatório do ambiente é um dos elementos dramáticos da narrativa e é determinante no curso dos acontecimentos. "Não pude impedir o vento de soprar, o ar de ser límpido como cristal, não consegui esconder a montanha." - admite Clodagh. 

Num filme pintado de modo tão vibrante, paradoxalmente, o preto é a única cor presente no título - uma (não-)cor, que absorve todas as cores e não reflecte nenhuma[2]. A escuridão em Black Narcissus é como a misteriosa matéria-energia escura do universo. Não se vê, embora se estime que constitua mais de 90% do conteúdo total de massa-energia do universo. O que levou Clodagh, Philippa, Briony, Honey e Ruth a procurar a luz divina terá sido essa infecção invisível de que fala Leonard Cohen - the darkness[3]. Mas a luz do “ar límpido como cristal” que encontraram em Mopu levou-as afinal ao encontro da escuridão. Neste excêntrico psico-drama erótico centrado em abismos, o negro, no fundo, é a mais intensa cor.

[1] Alguns críticos, entre os quais João Bénard da Costa, apontaram relações entre Vertigo, de Alfred Hitchcock, e Black Narcissus, entre as quais constam as enlouquecedoras/enlouquecidas metamorfoses de Judy/Madeleine e da Irmã Ruth, assim como os diversos elementos comuns: freiras/monjas, convento/capela, sinos, alturas, suspense, quedas, ...
[2] As superfícies negras absorvem os comprimentos de onda de todas as cores.
[3]Na canção “Darkness”, do álbum “Old Ideas”.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Cave of Forgotten Dreams (2010) de Werner Herzog



por João Palhares

Werner Herzog interessou-se pela caverna de Chauvet através de um artigo de Judith Thurman, «First Impressions», escrito para a New Yorker em 2008. Esse grupo de túneis e grutas no sul de França deve o seu nome a Jean-Marie Chauvet, um dos três espeleologistas que o descobriram em Dezembro de 1994. No seu interior estão as pinturas rupestres mais antigas do mundo que, graças a um deslizamento de terra que vedou a entrada principal, se mantêm num estado de conservação pouquíssimo habitual para o que é esperado para este tipo de achados arqueológicos. Herzog teve acesso limitado ao local (quatro horas por dia, durante seis dias) e, apesar de não o irmos ver dessa forma, decidiu filmar o documentário em 3-D. “O 3-D era imperativo,” disse ele à revista Archaeology, “porque eu ao início pensava que havia paredes e pinturas planas na caverna. Mas não havia áreas planas. O drama dos arqueamentos e das cavidades foi mesmo utilizado pelos artistas. Fizeram-no com uma habilidade fenomenal, com grande habilidade artística, e havia algo de expressivo nisso, um drama de rocha transformado e utilizado no drama das pinturas. É por isso que era imperativo filmar em 3-D.” 
 
Com esse tempo e essa decisão tomada, além de questões de acesso e limitações de movimento explicadas no próprio documentário, muito do material de filmagem teve que ser improvisado no sítio. “Levamos connosco o equipamento espelhado tosco fornecido pela British Technical Films,” escreveu o director de fotografia Peter Zeitlinger[1]. “Tinha sido utilizado antes em vários anúncios em condições de estúdio. Depois de apenas alguns metros no interior da gruta decidimos deixá-lo para trás, porque não era possível encaixá-lo pelo túnel estreito. 
 
“Uma vez que só tínhamos umas horas para rodar o filme todo tivemos que rodar fosse como fosse. O Werner disse, "Pega em fita adesiva e cola ou qualquer coisa do género. Põe as câmaras lado a lado e vamos a isso.” “Consegui construir uma macro-extensão com um rolo de papel higiénico numa tenda no Antárctico para filmar dentro de um microscópio científico,” respondi eu, “mas devíamos voltar e tentar no dia que vem.” 
 
“Passado um momento, o Werner passou-me dois suportes de braços mágicos para a câmara. "Não consegues usar isto?" Arranquei as câmaras do equipamento espelhado e fixei-as lado a lado nos braços mágicos. 10 minutos depois começámos a rodar as pinturas secretas da caverna. Filmei da anca sem visor. Passámos por cima do alinhamento complicado das câmaras 3-D e resolvemos o assunto à noite em Cineform (Software).” 
 
É possível que o 3-D acrescente muito a esta Gruta dos Sonhos Perdidos, até porque foi assumidamente a única e última vez que o realizador de Aguirre e Fitzcarraldo rodou nesse formato, para mostrar ao mundo uma caverna totalmente inacessível ao público em geral e para respeitar os traços de movimento pensados pelos nossos antepassados mais remotos, os jogos entre superfícies e protuberâncias, as camadas sobrepostas de pintura ou as sombras primordiais que nos levam a Fred Astaire mas também a Platão, só que a beleza e o deslumbramento também passam na versão mais reproduzida que vamos ver. Não é nada comum ver um filme dos nossos tempos que nos garanta que ainda não sabemos tudo, que há um mundo a ser desbravado e que precisa de pessoas para o desbravar, que nos traga de volta a aventura, a descoberta e o maravilhamento, e que proponha timidamente que a meta e o fim da estrada estão no princípio de todas as coisas. Ou que para sair da caverna talvez tenhamos que lá entrar.

[1] in «3D in the 21st Century. On Shooting Cave of Forgotten Dreams», 2 de Maio de 2015, Notebook, MUBI.

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Only Lovers Left Alive (2013) de Jim Jarmusch



por Alexandra Barros

Os vampiros Adam e Eve estão unidos como casal há muito, muito tempo. Séculos, literalmente. E são séculos de história, arte, ciência e cultura em geral, o que os alimenta (além do obrigatório sangue). Há até uma cena com um frigorífico cheio de ... livros. Adam dedica grande parte do seu tempo à música. É nostálgico e rodeia-se de objectos de épocas passadas, rejeitando o “progresso” e tecnologias recentes (como, por exemplo, telemóveis). Os instrumentos que toca e coleciona limitam-se aos acústicos, guitarras vintage e equipamentos de electrónica analógica. Nada de CDs ou ficheiros digitais, claro. Colecciona vinis e grava a música que cria em fita (magnética) K7. Eve é apaixonada pela leitura. Para as suas viagens, enche as malas só com livros (apesar de se apresentar sempre maravilhosamente vestida). Lê em diversas línguas, a uma velocidade sobre-humana, e descobre a idade dos objectos tocando-lhes. 

Eve e Adam são vampiros não predadores. “Drenar” (sangue) com moderação, sem matar a “fonte”, ainda é considerado aceitável. Beber desregradamente é bárbaro e, além disso, pode matar, pois a maior parte dos zombies (aka humanos) têm o sangue “contaminado” (poluição, drogas, ...). A irmã de Eve adoece após beber o sangue de Ian (a ligação de Adam ao mundo dos zombies). “What did you expect? He’s from the f***ing music industry!”, diz Eve. Para evitar consumir sangue contaminado com drogas, Adam compra sangue “puro” a um médico corrupto, como se comprasse droga a um dealer

Adam e Eve vivem em cidades distantes, Detroit (EUA) e Tânger (Marrocos), respectivamente, mas Eve vai ao encontro de Adam quando se apercebe que ele está profundamente deprimido. Adam é um hipster auto-centrado e cheio de auto-piedade, cujas desilusões com o comportamento dos zombies se transformaram em depressão e últimamente em pensamentos suicidas. Eve, com mais séculos de vida que Adam, tem afinidades com o realizador do nosso ciclo anterior, Ozu: sim, a desilusão é inevitável, mas a vida tem ainda assim muitos prazeres para oferecer: apreciar a natureza, cultivar a amizade e a amabilidade, dançar, amar e ... sorvetes de sangue (“blood on a stick”). É aliás o prazer da música que reaviva Adam quando este está prestes a desfalecer de “fome”, no final do filme. Adam assiste a uma actuação de Yasmine Hamdan e fica fascinado. Quando Eve afirma que Yasmine será muito famosa, Adam responde que espera que não, pois é boa demais para isso (a mais explícita declaração de snobismo hipster). 

É típico de Jarmusch utilizar nos filmes: citações literárias, linguagem e enunciados científicos e muitas referências a artistas, cientistas e outras figuras culturais. Alguns músicos amigos participam mesmo nos filmes: John Lurie, Tom Waits, Jack White, Iggy Pop, .... Neste há actuações da banda White Hills e da música libanesa Yasmine Hamdan. As referências culturais são imensas. Além dos recorrentes Jack White e Nikola Tesla (cientista/inventor): (os cientistas) Pitágoras, Galileu, Copérnico, Newton, Einstein, Fibonacci, (os escritores) Shelley, Byron, Shakespeare, (o dramaturgo) Christopher Marlowe, (o compositor) Schubert, (o músico) Eddie Cochran. Foi Adam que criou o Adagio para o Quinteto de Cordas de Schubert e lho ofereceu. De acordo com Eve, foi a companhia dos poetas Shelley e Byron, de quem Adam era amigo, que contribuiu para o seu carácter depressivo. Adam não está ligado à rede de distribuição de electricidade geral (está “off-the-grid”). Gera a sua própria energia num equipamento inspirado na transmissão de energia sem fios, teorizada por N. Tesla. Explica a Eve física quântica, nomeadamente partículas entrelaçadas: quando duas partículas entrelaçadas são separadas e afastadas, mesmo que colocadas em extremos opostos do universo, respondem instantâneamente ao comportamento uma da outra. Einstein chamou a este fenómeno “spooky action at a distance”. Eve é amiga de Christopher Marlowe, que também é vampiro e, além das suas obras, escreveu secretamente as atribuídas a Shakespeare. Eve refere-se à fauna e flora pelos seus nomes científicos (sistema de classificação do botânico e zoólogo Lineu). Existem duas cenas particularmente carregadas de “heróis”: uma em que Eve escolhe os livros que levará na mala de viagem e outra em que olha para os retratos pendurados na casa de Adam (http://draculahistoryandmyth.com/only-lovers-left-alive-adams-wall-heroes). 

Tudo está carregado de simbolismo. Por exemplo, a música inicial, “Funnel of Love” de Wanda Jackson, é uma escolha típica de um nerd musical. Lançada num lado B, em 1961, tornou-se entretanto uma favorita de connoisseurs de r&b e country. Outros exemplos mais óbvios: a fonte (gótica) escolhida para o genérico, o nome das personagens, as cidades onde vivem. Tânger é uma cidade com uma herança cultural e histórica riquíssima, que assume a sua decadência como característica distintiva e apelativa para determinado tipo de viajantes. Tem sido local de passagem, mais ou menos prolongada, para “outsiders” ocidentais, desde que Burroughs and Bowles aí viveram na década 1950. Detroit, cidade que cresceu à custa da indústria pesada e automóvel, foi a maior das cidades americanas que faliu após a crise financeira e económica de 2008. À escala dos EUA, é também uma cidade histórica e culturalmente rica. Na altura em que o filme foi feito, Detroit estava em plena fase decadente, com a indústria e o esplendor de outrora arruinados. O filme foi lançado no ano em que a cidade declarou falência. Adam leva Eve a dar uma volta por paisagens urbanas abandonadas. Tristes e belas como o mundo de Roberto em Down By Law (“It’s a sad and beautifiul world.”). O mais belo e triste local que visitam é o Michigan Theater. Outrora uma faustosa sala de espectáculos, foi transformado num parque de estacionamento e é o ícone perfeito desta Detroit e da estética e espírito do filme. Adam sente-se derrotado pelos acontecimentos actuais, mas Eve, uma criatura (da noite) luminosa, com “lust for life”, adapta-se às mudanças e é o seu instinto de sobrevivência que mantem os dois amantes vivos, como partículas entrelaçadas.

sábado, 28 de julho de 2018

The Big Lebowski (1998) dos irmãos Coen



por João Palhares

Pronto, passaram-se. Estava tudo a correr tão bem, os programadores pareciam tão cultos e tão informados, respeitavam e divulgavam a grande história do cinema, os artistas e as correntes que o fizeram, a opinião dos críticos e historiadores que a comentavam: como é que agora se lembram de programar lixo americano dos anos 90 depois de ciclos dedicados ao cinema francês, a Kenji Mizoguchi e a Pedro Costa? Estava tudo a correr tão bem. O caso torna-se tema de conversa em todos os cafés de Braga e de Lisboa, amizades desfazem-se, os sócios revoltam-se, os espectadores boicotam a sessão, convocam-se reuniões extraordinárias ao mais alto nível, as distribuidoras e os realizadores portugueses recusam-se a negociar com os responsáveis do cineclube: escândalo! sacrilégio! violação! homicídio! estão a equiparar os Coen aos grandes génios do cinema, informem as entidades reguladoras, chamem as forças de segurança pública! 

O "caso Coen" enche as manchetes dos jornais, abafando o interesse dos meios de comunicação pelos incêndios florestais, pela contratação de Cristiano Ronaldo e pelas conferências de imprensa de Bruno de Carvalho: Augusto M. Seabra, António Guerreiro e Alexandra Lucas Coelho escrevem extensos ensaios a acusar o cineclube de Braga de crimes contra a cultura. Os responsáveis vão-se tentando defender das acusações, mas acabam por citar João Soares e, como lição, são escoltados pela polícia para o Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus, onde terão de aguardar julgamento. A lição não sai muito bem à sociedade pois os responsáveis são declarados intocáveis por Paulo Raposão, homicida e traficante de droga, fã confesso de O Grande Lebowski, que se compadece com a situação dos programadores bracarenses. Depois de recitarem com ele o filme inteiro no pátio da prisão, e enquanto os seus advogados (Luís Tarroso Gomes e Mário Fernandes) preparam a defesa, os cineclubistas redigem um depoimento conjunto para a imprensa:
"Nem sempre é fácil descartar os grandes encontros com filmes vividos durante a infância e a adolescência, e que vão de Fievel - Um Conto Americano (1986) a Nova Iorque 1997 (1981), passando por Space Jam (1996), Hook (1991) ou Con Air: Fortaleza Voadora (1997), decidir hoje se são bons filmes ou não, se merecem palavras de apreço que passem por mais do que a mera descrição da já imensamente meritória qualidade de nos terem feito os dias meses a fio. Mas há excepções em que a confusão se dissipa, e de que convém dar sempre conta, quando um filme e certas personagens nos acompanham ao longo dos anos, quando os diálogos vão saindo de cor e adaptados a quase todas as circunstâncias da vida (“Fuck it, Dude, let’s go bowling”, “yeah, well, that’s just, like, your opinion, man”, “this agression will not stand” ou “the Dude abides”), quando revisitar o filme é quase como voltar a ver velhos amigos, na acepção dos “filmes de personagens” de Howard Hawks ou dos “hangout films” de Quentin Tarantino, ou quando se começa a ver um caldo geracional riquíssimo e que documenta perfeitamente um local e uma era, dos hippies descontraídos dos anos sessenta aos milennials retraídos e fechados nos quartos dos anos 90, dos veteranos da Coreia aos do Vietname, dos pederastas aos fascistas, dos surfistas aos cowboys, dos niilistas às feministas, do submundo dos pornógrafos que tiveram de competir com a explosão do VHS aos grupos elitistas e poliglotas que frequentavam a cena artística nos anos 80. 

"É possível que em Portugal, país em que a resposta à pergunta "Mas onde é que tu estavas no 25 de Abril" ainda pode pôr termo a uma amizade, pareça estranho, inconcebível ou mero macguffin narrativo que um hippie, que nos anos sessenta podia perfeitamente ter recebido os soldados do Vietname com gritos nada pacíficos de "baby killers" ou "make love, not war", e um veterano dessa guerra, que depois das notícias dos massacres da comuna de Charles Manson e dos desacatos trágicos no concerto de Altamont podia perfeitamente passar a ver a "geração do amor" com outros olhos, sejam amigos para a vida. Não há explicação para esta amizade no filme dos irmãos Coen e também não é preciso, porque acreditamos sempre nela, mas sabendo do destino dos ex-combatentes do Vietname e dos últimos resistentes do "flower power" (e partindo do princípio errado que os grupos definem os seus membros), do desprezo a que a sociedade e a opinião pública americanas os votaram durante os anos setenta e oitenta, das demonstrações gratuitas de violência a que foram submetidos pelas autoridades ou por consórcios criminosos como os Hells Angels, não é difícil imaginá-los a encontrarem-se e a conhecerem-se num recinto perdido de bowling qualquer nos subúrbios de Los Angeles, a curar as suas frustrações derrubando pinos como se fossem inimigos ou perseguidores políticos com uma bola pesada de plástico rígido. 

"Pode ser essa a grande lição do Grande Lebowski, entre o muito de surreal que acontece na demanda por um tapete (o verdadeiro macguffin do filme) por essa Los Angeles fora: ser possível encontrar um amigo na pessoa mais improvável e sem pensar nas suas afinidades políticas ou na possibilidade vergonhosa de ser visto com ele em certos círculos e em certos contextos. Numa altura em que as convicções e as palavras das pessoas estão sob vigilância máxima, à custa de empregos e imagem pública, nunca é demais lembrar que não vale mesmo a pena terminar uma amizade por razões políticas, que a vida é curta demais para isso. É sempre preferível resolver as diferenças com um “Walter, I love you, but sooner or later you’re going to have to realize the fact that you’re a god damn moron” ou então um “Fuck the tournament? Okay, Dude, I can see you don’t want to be cheered up, here. Come on, Donny, let’s go get ourselves a lane”. 

"Podemos não gostar da obra dos Coen como um todo, o que até é verdade, concordar que Barton Fink, Miller’s Crossing ou Fargo são filmes afectados e muitíssimo ostensivos, mas isso não nos pode impedir de admitir que às vezes as coisas resultam (ou "sometimes there's a man...", como atira Sam Eliott nas suas divagações de narrador), consegue-se realmente criar uma ligação perfeita entre intérpretes, um ambiente ideal para a criação e para a naturalidade nas relações e nos diálogos, imagens icónicas e originais que dependem de aparatos técnicos muito complexos, como carros telecomandados com câmaras especiais a seguir bolas de bowling ou plataformas gigantes que simulam o ponto de vista dessas bolas, perfeitamente justificados pelos desmaios recorrentes da personagem de Jeff Bridges e da sua apetência por charros e pelo “occasional acid flashback” a que por vezes não resiste. São as pequenas coisas que nos fazem gostar muito deste filme, e por isso o mostramos. Não nos censurem."

sábado, 24 de fevereiro de 2018

A Countess from Hong Kong (1967) de Charles Chaplin



por José Oliveira

E cá chegamos ao fim do nosso ciclo repondo a ordem na cronologia do percurso de Charles Chaplin. A Condessa de Hong Kong teve de ser obrigatoriamente a nossa sessão derradeira, para se perceber sem margem para dúvidas tudo o que ela convoca e não convoca, o dentro e o fora, a grande dor apátrida. Arrancada em complicado parto dez anos depois da “afronta” à América com Um Rei em Nova Iorque, Chaplin viveria ainda outros dez anos, mas aí já completamente na Sibéria do cinema, trilhando esta caminhada por mar todas as justificações acabadas para os que usaram as carapuças da ressaca (de lucidez) de Chaplin. 

Antes de embarcamos e depois do desembarque vamos ter um baile, o primeiro onde se confundem Condessas com “mulheres da vida”, o segundo onde as tais “mulheres da vida”, depois de confrontadas com as aparências oficias, sejam elas a lei ou as esposas legítimas, surgem totalmente cristalinas e a verdade a perseguir. “Mulheres da vida” também tornadas mulheres da vida sem aspas, antes lutadoras, pois a culpa para as aspas foi, como quase sempre, do grande outrem que move os peões da humanidade terrestre. No baile com que o filme abre os figurantes olham marcadamente para o marinheiro que poderia ser personagem principal, no fecho os dois amantes estão só contra o mundo planando no sonho estelar definidor da felicidade Chaplinesca. Único filme a cores de Chaplin, prodígio dos Pinewood Studios da sua Inglaterra natal, utilizando uma janela mais rasgada do que o habitual (o 1.85 : 1 ao invés do mais clássico 1.37 : 1, percebendo-se o porquê da opção, entre tantos exemplos, na sequência do mar agitado na qual o próprio Chaplin bate à porta da fortaleza para prevenir a má disposição, numa consonância da técnica com a dramaturgia que só um artista total alcança, dirigindo, focando e vergando conforme), logo nos tira o chão quando Hong Kong nos surge fulgurante como que agarrada pelas garras e ganas de um jovem documentarista com sede de realismo. 

Mas logo vamos para bordo e a coisa pia fino – um estadista americano, Marlon Brando imprevisível, e a sua ideia de paz mundial. A partir daí ainda mais estupefacção: Chaplin a desconstruir Brando, ou a despi-lo, olhando para ele sem conceitos nem preconceitos e surgindo deles palhaçadas, contorcionismos, criancices e tudo o mais que não se esperava do ícone naturalista do método do actors studio; a ele se vai juntar a Condessa de Sophia Loren que no seu momento menos “respeitável” se transforma no Tramp com que Chaplin lá para trás revirou a sociedade e os seus alicerces, em soutien e vestes de animais amestrados de jardim zoológico; a restante pandilha são os polícias, indigentes, os presidentes e os demais líderes de todos os outros filmes. Vários foram os episódios mais ou menos anedóticos da relação entre duas existências bigger than life e de gerações opostas e em certa medida rivais como foram Chaplin e Brando, um dos quais reza que o futuro Padrinho exigiu que o Farrapo aristocrata se ajoelhasse e afirmasse perante todos os presentes que estava perante o maior dos actores; questões de ego ou de mito aparte, é tanto mais impressionante tudo o que passou de um para o outro, de uns para os outros: de Chaplin todo um cosmo de subtilezas e nuances de movimentos e de dizeres, com sucessivas camadas entre o óbvio, como na poesia pura, entre tanto mais; de Brando e de outros “modernos” a tensão e as cordas musculares que passam para as formas cinematográficas constantemente a serem esticadas para lá do concebível classicismo. «A tensão é algo belo» diz-se quando a macacada começa a acalmar, assim como a generosidade que se nota a cada instante. 

O incomensurável cineasta espanhol Víctor Erice afirmou certo dia que antigamente todas as pessoas de qualquer parte do mundo em todas as idades perceberam o cinema de Chaplin, o que ele fez com o corpo e o que ele disse por palavras – e continua-se a perceber, digo eu. E assim o âmago do filme, o tema, começa por ser a comoção – que ele afirma não ter – do diplomata por essa Condessa que está muito mais próxima de uma menina largada às feras do mundo, mais uma órfã Griffthiana, tão distante, tão sozinha, tão triste... é Brando que assim fala, e protegendo-a do mundo que aparentemente não vamos ver no interior do barco, descobre o resultado da busca pela imortalidade da alma de que lhe fala uma sonsa no terceiro baile do filme. E se esse âmago parece tão simples e justo, tudo ainda se irá simplificar mais na extrema complexidade com que se ignora o fora de campo das politiquices, das hierarquias, das dependências, da chantagem e dos álibis retóricos, enfim, das aparências que sempre foram o inimigo público número 1 de Chaplin como do seu Tramp

Porque fora breves planos de ligação e os bailes, antes da chegada aos cais, o mundo estará concentrado numa sala de estar, num quarto com duas camas, a casa de banho que será outro fora-de-campo, e os infindáveis esconderijos cedidos à imaginação de cada qual. Logo desde cedo o filme se tornará num Jogo das Escondidas, ou num Jogo da Apanhada, conforme o lado, a formação e a inocência de quem o joga. Jogos a uma primeira vista inofensivos, cinefilamente Lubitchianos ou de uma sofisticação de encenação puramente prazerosa, mas que olhados bem de perto e para lá do brilho do cast revelam todos os perigos para que Chaplin foi alertando a entrarem no ninho do amor, ou no ninho da infância onde tais jogos se dão; revelam ainda uma sede de liberdade trucidante no casal de Brando e de Loren e de alguns mais não-figurantes; são as guerras demenciais de O Grande Ditador ou o vagabundo largado nas trincheiras em Shoulder Arms, são os combates de boxe não pedidos e por isso justiceiramente adulterados em The Champion nos quais o vagabundo mete KO não só os campeões do ringue mas várias figuras castradoras que detêm poder, as estátuas da liberdade atadas em O Imigrante, e resumindo, a ciência e os maquinismos usados ao contrário e em desfavor dos desfavorecidos - é tudo isso a querer matar o intimismo, e as crianças desmultiplicadas por Chaplin a não deixarem. 

E num filme em rodopio e em sede de fuga muitos se irão juntar às brincadeiras, todos eles podendo dispensar os passaportes para saltarem os muros imperiais, acontecendo casamentos com a mesma mulher e trocas de casais, espreitadelas e traições sem pecado nem multa, balançando-se a fábula entre a máxima inocência e o erotismo tão selvático como sugestivo. E é por estes jogos e pelo que hoje em dia seria considerado deboche – nesta nova caça às bruxas século XXI em que todos querem ser limpos e moralmente Deuses – que os ditos de Erice fazem pleno sentido: nestas escondidas e nestas apanhadas com que muitos críticos da época despacharam o filme a bola negra estão todos os genocídios e grandes guerras, a fuga do Pai da Condessa para Hong Kong e a sua tragédia, a prostituição e os suicídios consequentes, a falta de talento e de afectos maquiados pelo cargo político ou pela classe da gravata. 

Um momento significativo dos mecanismos dos jogos das crianças em relação com os jogos dos adultos acontece aquando da primeira vez que Loren é descoberta por um membro da entourage de Brando (uma ambígua personagem interpretada pelo próprio filho de Chaplin, Sydney Chaplin e o seu fardo, que balança entre a protecção cega ao chefe e os bons sentimentos até ao oportunismo do lado negro americano), esse Harvey que até acabará por se fazer de seu esposo, mais um, em mais um faz-de-conta inadjectivável; acontece na casa de banho mas, logo ao lado, na sala de estar, o Brando diplomata e não criança fala das suas noções e ideias para a tal paz mundial... sussurra verdade... compreensão... tolerância... e alternadamente vemos essa descoberta no WC: montagem que nos entrega uma complexificação aí sim moral que ainda hoje, ou sobretudo hoje, separa o trigo do joio, as superfícies higienizadas de uma elevação moral mesmo que se esteja todo borrado: uns poderão considerar que o diplomata se contradiz, os outros, talvez hoje na maioria crianças e velhotes, perceberão logo a enormidade e o fulgor do coração que viu a tristeza num corpo e numa alma e não aguentou compactuar com as forças opostas. 

Enormidade que vem de dentro, assim A Condessa de Hong Kong é também um libelo pelos interiores, pelos quartos e por essas divisões que respondem à violência do caos global e dominante, e que são inseparáveis das entranhas e da sensibilidade humanista: «estamos a ser observados pela lei», diz Brando numa suposta despedida a Loren; e então não só percebemos que a lei vem dos papéis e dos tratados e regras das Entidades referidas sobretudo na banda de som, mas também dos falsos casamentos, dos casais atados por filhos, por obrigações, propinas, salões de beleza, comunhão de bens, hipotecas... todos os lamentáveis e abafados horrores que perfazem a ideia ilusória de felicidade e de sociedade limpa e acabada; tanto no “cinema antigo” em que os berros eram mais honestos como agora num Centro Comercial Colombo da nossa consolação onde normalmente o telemóvel-computador é o principal protagonista, cenas destas doem tanto como a ameaça de um míssil. 

Entre e por tanta diversão A Condessa de Hong Kong é ainda um tratado, uma chapada, um petardo filosófico. A tal rapariga que cita Aristóteles ou é mesmo uma sonsa, ou uma boba da corte, ou nada disso, pois realmente o que se passa em alta velocidade – e por isso quando alguém estaca para olhar para fora de uma janela ou para soltar um micro suspiro ou perscrutar um sorriso invisível tudo abala – vai dos mínimos olímpicos para se viver – andar... falar... pensar... – até à transfiguração e ascese – a alma... a imortalidade... o amor. Acredite-se ou não na transcendência – o filme nada força – vamos sair ou ficar no filme com um futuro presidente de uma nação e uma mulher que já conheceu mil homens unidos numa dança que mesmo que seja a última valeu por tudo. O presente, de que essa mulher falou Aristotelicamente, em diálogo com a eternidade, com que o filme nos presenteia ao terminar. «Não devemos ter medo dos confrontos. Até os planetas se chocam e do caos nascem as estrelas» é uma das suas citações que se vendem em qualquer lado, e é o desafio para continuarmos a sua obra. Que é eterna.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

A King in New York (1957) de Charles Chaplin



por João Palhares

Sabe-se com certeza pelo que Chaplin teve que passar até chegar a Um Rei em Nova Iorque, feito já no velho continente e sem nenhum dos seus colaboradores regulares. Apesar de o querermos muitas vezes ignorar, e sobretudo nos tempos que correm, porque é a esquerda que está a fazer as vezes da direita conservadora e das brigadas dos bons costumes, as celebridades são alvos fáceis para os pregadores da moral, carregados às costas pelos meios de comunicação, que são capazes de tudo por um furo jornalístico e às vezes movidos apenas por vinganças pessoais, provocando os receios de investidores, que querem que um filme ou um programa ou um álbum paguem os seus custos no mercado. Se estes vêem que um artista anda envolto em polémicas (verdadeiras ou falsas, não interessa) cortam os fundos e cancelam os contratos sem pensar duas vezes, às vezes até agradecendo. Sempre foi este o método e a ordem dos acontecimentos, do julgamento popular de Roscoe “Fatty” Arbuckle (ainda hoje vilipendiado por Hollywood sem se poder defender, quando os jurados do seu julgamento escreveram na declaração do seu veredicto que “a absolvição não é suficiente para Roscoe Arbuckle. Achamos que lhe foi cometida uma grande injustiça”) às difamações constantes a Michael Jackson (talvez culpado apenas de ser uma pessoa muito estranha e muito magoada, além de um artista fabuloso), passando pela corrente purificadora e censória dos anos setenta e oitenta que escolheu como alvos Clint Eastwood, Sam Peckinpah, John Milius, Michael Cimino ou Sylvester Stallone no cinema e Prince, Jackson, Donna Summer, os N.W.A ou Frank Zappa na música, entre muitos outros e não só na América. 

Hoje em dia e no rescaldo das centenas de acusações a Harvey Weinstein em Hollywood, Louis C.K. e Kevin Spacey, até ver, perderam tudo, Woody Allen e Quentin Tarantino andam a ser difamados numa demonstração de justiça de uma hipocrisia gritante, que por não ter mais alvos humanos, ataca agora as palavras, as imagens e os filmes de certos cineastas como se pudessem servir de provas em tribunal. Falam de problemas de representação e de falta de heróis ou histórias que representem as minorias, querem que mostrem uma sociedade que não existe, que deixem de mostrar a injustiça e a violência porque são coisas imorais. É uma limpeza totalmente irrazoável e que lembra mesmo as perseguições das brigadas dos bons costumes (“If it looks like censorship and it smells like censorship, it is censorship”, dizia Zappa nos anos oitenta), além de considerar o cinema do passado como um desfile de mulheres fracas e de minorias ainda mais fracas. São as lições de Roland Barthes levadas ao ridículo, o colonialismo representado pela bandeira francesa e pelo homem negro que a saudava, seguidas da linha de pensamento que grita “escravatura”, “injustiça”, “abominação” e “patriarcado”. Que subtileza, que sofisticação, não é? 

Em 1995, Michael Jackson respondia a acusações de racismo por causa de They Don’t Care About Us (no videoclip da canção, realizado por Spike Lee, censuraram a palavra “judeu”) dizendo que “eu sou a voz dos acusados e dos atacados. Eu sou a voz de toda a gente. Sou o skinhead, sou o judeu, sou o homem negro, sou o homem branco. Não era eu quem estava a atacar. É sobre as injustiças para com os jovens e como o sistema os pode acusar injustamente. Fico com raiva e indignação por poder ser tão mal interpretado.” São palavras que podiam ter sido ditas por Charles Chaplin e que são demonstradas em toda a sua obra, que mergulha a fundo nos meandros e nas consequências dessa representatividade, da neve do Alaska ao Oeste americano, da França à Tomânia, das ruas mais sórdidas aos quartos de hotéis mais luxuosos, dos dormitórios públicos aos ringues de boxe, dos barcos de imigrantes aos cruzeiros transpacíficos, das fábricas aos centros de emprego, dos bares aos bancos, dos parques públicos aos centros de reabilitação, dos restaurantes de cinco estrelas à sopa dos pobres, etc, etc.

Chaplin também se mostrava ciente desse facto no trabalho com os actores, interpretando os seus papéis para lhes mostrar como queria que uma cena fosse feita. Assim, na rodagem de A Condessa de Hong Kong foi Marlon Brando, foi Sophia Loren e foi Tippi Hedren. Não está nada mal para representatividade, pois não? Em Um Rei em Nova Iorque, Chaplin é um rei deposto que é roubado pelo seu primeiro ministro; que tem planos atómicos que não quer usar para bombas nucleares, como o acusam e como querem os seus ministros, mas para tornar possível uma “utopia”. Foge para a América, autoproclamada “land of the free”, para descobrir que também lá se perseguem as pessoas ideologicamente, que também lá se acusam as pessoas injustamente, tal como no seu país, chamado Estróvia. Como nos lembrou João Bénard da Costa, a escolha de um rei como personagem não é uma escolha inocente, reforça o ridículo de se acusar alguém de ser comunista pelas companhias que frequenta, neste caso um miúdo de dez anos, obrigado pelo governo a dizer nomes, para salvar os pais, numa das cenas mais comoventes da obra de Chaplin, num dos filmes mais tristes da obra de Chaplin.

O verso de que o rei Shahdov não se lembrava no jantar planeado pela comunicação social nas suas costas era "Thus conscience does make cowards of us all". Dá que pensar, não é?

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

The Deer Hunter (1978) de Michael Cimino



por João Palhares

Continuando o nosso pequeno ciclo Cimino inserido no grande ciclo de cinema americano, damos de caras com The Deer Hunter, o filme de 1978 que rasgou as paisagens revolucionárias desses tempos e irrompeu por Hollywood e pelo mundo com a grandeza intemporal de um épico grffithiano ou wagneriano, com lampejos de fúria e de côr, tonalidades românticas e apaixonadas e vários actores em absoluto estado de graça. Voltaríamos a ver Meryl Streep (talvez só em The Bridges of Madison County, de Clint Eastwood), Christopher Walken (talvez só em King of New York, de Abel Ferrara), George Dzundza ou John Savage como os vemos neste filme? “Frágeis como o mundo”, citando o filme de Rita Azevedo Gomes de 2000 com o mesmo nome. 

Porque o que impressiona, mais uma vez, e repetindo o que se disse sobre Thunderbolt and Lightfoot (Mike como Thunderbolt, Nick como Lightfoot?) é esse confronto impossível entre as maiores tormentas desta vida e a fragilidade dos homens. Lembramo-nos de Nick, tão sozinho, tão desalentado e sem ânimo, a percorrer as ruas de Saigão cantando “Rain is rain, snow is snow”, depois de não conseguir telefonar a Linda e de não conseguir passar a noite com companhia passageira mas tão necessária. Se não se cruzasse com o terrível Julien que lhe abriu as portas do submundo e do inferno talvez conseguisse regressar a casa. Se Mike não o convencesse a elevar a parada na cabana de todos os suplícios, com três balas em vez de uma nas câmaras dos revólveres que tiveram que apontar à cabeça, talvez também conseguisse. Se não fosse sozinho no helicóptero e Mike e Steve não caíssem à água, talvez também conseguisse. Se, se… 

Como magoam os “ses” desta vida quando se imprimem irreversivelmente nas caras e nos corpos com que nos cruzamos todos os dias. A lembrança de Nick para sempre impressa nos olhos de Linda, a lembrança da guerra para sempre ligada à invalidez de Steve. Mike como recipiente de todos os arrependimentos e de todas as culpas - o mais forte dos três. Mas nem ele consegue parar à porta de casa e ser recebido com a festa que lhe preparam os amigos. Claro que The Deer Hunter é um filme difícil, claro que custa revê-lo, mas não pela brutalidade crua das cenas da roleta russa, e sim pelo que não se diz nem se quer dizer e se guarda e reprime para sempre no fundo da alma. Michael Cimino tornou visível esta terrível vacilação e nós ainda não o perdoamos. Mas é fácil? É fácil tornar todas estas memórias inseparáveis dum olhar ou de uma acção perdida? Ou redimi-las num acto absolutamente desesperado e aleatório, mas que impede as pessoas de sofrer quando olham para quem está à frente delas? Cantar o “God Bless America” à espera que uma bênção divina chegue mesmo, eis algo por que só muito poucos devem passar (e não são os “happy few”, são os “sad few”, a metade perdida deste mundo que ainda carrega a outra como um peso insuportável em nome de belas palavras como “paz” ou “progresso”, a gente que mais interessou a Ford e a Cimino, a gente que mais interessa a Pedro Costa ou a James Gray – o povo). 

As pessoas lembram-se das cenas da roleta russa e do “God Bless America” mas esquecem-se do fumo e do fogo dos aceiros, de Michael a despejar o dinheiro todo que tem no mundo para as mãos de Julien e dos gangsters vietnamitas para salvar Nick, morto-vivo na desolação de uma cidade a ferro e fogo. O “one-shot” de que Nick e Mike falam tanto tem que ramificações e toma quantos significados, já, no final do filme? Terá tanto que ver com o tiro solitário que mata os veados da Pensilvânia (única maneira de estar à altura da sua beleza, código de honra de caçador), com a oportunidade única de subir ou saltar na vida que a participação na campanha americana no Vietname pode oferecer (Steve fala disso à mãe; “shot” aqui como “chance”, portanto) como com a morte lenta de Nick, desde a noite da “descida ao inferno” (como na tradução francesa) à procura da bala escondida nas câmaras dos revólveres de Saigão e que o aliviará das dores deste mundo. Mas com que mais? Nick lembra-se dessas palavras no último momento, depois de não reconhecer Michael quando este o tenta convencer a ir para casa. Tinha-lhe dito para o ir buscar se lá ficasse, na última noite (“one-shot”) que passaram na cidade deles. Ter entrado na casa de jogo com Julien, pela primeira vez, pode ter sido a última tentativa desesperada para encontrar Mike (“one-shot”), que estava mesmo lá e o vê a ele, mas acaba por perdê-lo na confusão. Estando ambos apaixonados por Linda (quantos olhares furtivos de Michael na direcção dela, durante a festa do casamento de Steve – Nick percebe e Cimino torna tudo isto incrivelmente cristalino), o último acto de Nick neste mundo (“one-shot”) pode ser visto como um acto distorcido de amor, como só comete quem perdeu toda a sanidade. É claro, sequer, que Linda e Mike vão acabar juntos, no final, quando esta nem consegue olhar para ele? Consegui-lo-ão depois da morte de Nick, que a pediu em casamento – ela disse que sim - na festa? Nada disto tem uma resolução e mais se acentua a nossa dificuldade em suportar as questões não resolvidas deste filme, apresentadas de forma solta, dispersa e imperscrutável, como na vida. 

Ficam (têm que ficar, tanto para eles como para nós) os momentos que mais se querem lembrar: Nick a cantar “Can’t Take My Eyes of You” (veja-se a construção e a encenação dessa cena, tão fluída que nos esquecemos que teve que ser construída e encenada, das tacadas de bilhar à entrada da mãe de Steve e da conversa que esta tem com ele sobre o casamento, os amigos e a guerra), Mike no topo das montanhas a caçar os seus veados ou a sorrir e a jogar bilhar no bar de John (George Dzundza), aquele que mais parece compreender tudo o que se passa com aquele grupo, tanto quando toca o Nocturno de Chopin (a seguir ao qual já só se pode cortar para a guerra), como quando começa a cantar a canção do fim do filme, Steve a celebrar o seu casamento com um mar de promessas à sua frente, as brejeirices de Axel e Stan e a beleza inviolável de Meryl Streep, a Lilian Gish de Michael Cimino. 

Os filmes de Cimino são todos tragédias (e o capítulo mais negro ainda não chegou, esperem por Janeiro), e se não é descabido falar em Griffith ou de The Birth of a Nation quando se fala dele, The Deer Hunter talvez seja o “The Death of a Nation”. Só que sonhador, poeta e místico como é, Cimino não consegue apagar as réstias de esperança contidas numa ou em duas canções muito sentidas (The Deer Hunter), num bailado cósmico num salão vazio (Heaven’s Gate), num freeze frame em que se projectam todas as possibilidades e sonhos deste mundo (Year of the Dragon), num vislumbre do mundo e de todas as coisas do topo de uma colina (The Sicilian), num assobio belíssimo que ecoa pelas montanhas e pela eternidade (Desperate Hours) ou numa corrida desenfreada pelos vales da morte e em que tudo se conjuga e redime (The Sunchaser). 

Resta tentar aprender alguma coisa, por mais pequena que seja, como com tudo o que nos ultrapassa, seja a obra de Wright, a de Michelangelo, a de Rubens, a de Bach, a de Nijinsky, a de Shakespeare ou a de Michael Cimino.