domingo, 10 de julho de 2022

Dr. Strangelove, or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (1964) de Stanley Kubrick



por André Miranda

Olho o cursor piscando, acusando-me de falta de criatividade: não sei o que escrever, ilude-me a folha de sala. E por isso principio lamentando-me da minha falta de jeito e garantindo, entretanto, que os próximos parágrafos consistirão da mesma essência. Uma essência pura como os líquidos que ingiro: água destilada e álcool. Só não fumo charutos. Quanto aos comunistas, tenho as mais sérias dúvidas sobre a veracidade dos seus maquiavélicos planos. Afinal já não vivemos uma guerra fria. Ou vivemos? O planeta aquece com desfaçatez e as mangas compridas das camisolas esboroam-se. Não falta muito até que todos andemos de camisolas de alças. 

Se me pusessem na mesma sala que o general Jack Ripper o mais provável é que me subjugasse ao seu porte e voz robusta. Acenaria que sim a todas as lérias por ele ditas como se as suas palavras fossem as únicas pedras num deserto de areia movediça. Ao contrário do Capitão Lionel Mandrake, seguraria as balas e alentaria com gritos delirantes o trovejar contínuo da metralhadora. E quando tudo desmoronasse à nossa volta, alçaria o meu braço sobre os seus ombros caídos e murmuraria: meu general, não há quem esteja mais certo do que o senhor e o mundo inteiro percebê-lo-á no segundo seguinte a não poder percebê-lo. Não vos iludo: a minha coragem é de nuance estapafúrdia. 

Imagino-me agora na sala de guerra, ocupando um lugar naquela mesa oval imensa; farda polida, postura vertical, rosto garboso. Ouço os arrazoados gerais. Concordo com uns, discordo de outros. Tenho uma opinião, mas guardo-a. É necessário salvar a vida e se a salvando podermos obliterar o nosso inimigo, melhor ainda. O essencial é que nenhuma lacuna entre nós e eles exista: mais armas, mais tanques, mais mísseis. Tudo em nome da paz. Esta só existe se mutuamente apontarmos uma pistola à testa. Quem me parece um tipo impecável é este indivíduo com o cabelo desgrenhado; é verdade que por vezes grita, Mein Fuhrer, e a mão insiste em esticar e saudar: há tiques do passado que custam a emendar, mas com tempo tudo vai ao sítio. Vejam lá que até alterou o nome e agora se chama Estranhoamor, Dr. Estranhoamor. 

A primeira bomba está prestes a rebentar. Porventura ainda haja tempo de preservar uma réstia de vida: descer uns quantos humanos até a uma mina, onde lhes fosse possível resistir às radiações mortíferas e persistentes. Dez mulheres para cada homem, sugere o Dr. Estranhoamor. Perfeito, acenam as mais altas figuras hierárquicas, os que seriam salvos, com uma avidez mal disfarçada. Entretanto, o militar cowboy de chapéu erguido é consumido pela explosão nuclear. Mais seguir-se-ão. Quantas? As necessárias. Até que nada seja.



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