quarta-feira, 27 de julho de 2022

Aimer, boire et chanter (2014) de Alain Resnais



por João Palhares

Nem sempre é pertinente escrever uma folha de sala original. Por variadíssimas razões, que podem passar pelo facto de não se achar que se vai acrescentar grande coisa, quer se goste ou não do filme; por se ter pouca informação sobre certas coisas importantes para poder descrever o trabalho específico de alguns realizadores; por uma visualização às vezes não ser suficiente para apreender o que é importante num filme; por uma visualização outras vezes não ser feita nas melhores condições, técnicas ou não. Por preguiça, teimosia ou indiferença. Há uma data de razões para não se escreverem folhas de sala. Mas para este caso em concreto, a verdade é que não o faço porque não gostei do filme que hoje vamos ver. Só que como gosto muito do realizador, Alain Resnais, que atravessa os abismos e os céus em obras tão fabulosas como Noite e Nevoeiro ou Providence, deixo-lhe a palavra:

«Porquê o título original Aimer, boire et chanter, que nada tem que ver com o título original da peça de Alan Ayckbourn, Life of Riley? É uma questão de ritmo. A música dos Pink Floyd atravessa toda a peça. Para mim, é um indício de uma época específica, os anos 1960 e 1970, e queria afastar-me dela. Faço um grande esforço para dar ritmo às mudanças de andamento nos filmes, de forma à realização ser rica em contrastes: momentos em que a realização é reservada e académica e depois, subitamente, uma mudança de tom. Eis o que sonho: que o espectador no cinema diga para si mesmo, “pronto, está bem, é teatro filmado”, e depois, de repente, mude de opinião: “sim, mas no teatro não podemos fazer aquilo...” E andar para a frente e para trás, do teatro para o cinema, e, às vezes, para banda desenhada num estilo Blutch. Gostava de conseguir aquilo que Raymond Queneau chamou em Saint-Glinglin “la brouchecoutaille”, uma espécie de ratatouille, deitando abaixo o que divide o cinema do teatro e, assim, atingir uma total liberdade. Digo isto em todos os meus filmes: o que me interessa é a forma e, se não houver forma, não há emoção. Ainda me entusiasmo muito a juntar o que não deve ser juntado. É aquilo a que chamo a atracção pelo perigo, pelo abismo. Tenho constantemente presente a resposta que costumo dar à pergunta, “Porque é que faz filmes?” - “Para ver como são feitos.” Por essa razão, apaixonei-me naturalmente pelo teatro de Ayckbourn, que pode parecer comédia leve, mas que não o é, de todo. Basta ver os riscos que corre com a construção dramática. Um dia, ele disse o seguinte, “Tento fazer cinema com o meu teatro, e o Resnais faz teatro para o cinema.” 
 
«Como é que tudo começou? Li numa revista que o muito prolífero Sr. Ayckbourn encenava as suas peças num pequeno resort à beira mar, em Scarborough, num teatro em que o próprio público formava as três paredes. Fui lá com a Sabine [Azéma], como se num safari a uma selva exótica. Vimos uma peça. Os atores tinham de se lembrar das três “paredes” de espetadores e, como o público, tinham de dar um salto de fé e acreditar naquilo que não viam. Essa é também uma boa definição de cinema. Desse momento em diante, pensei para comigo, “Aquele é o meu homem.” Regressámos a Scarborough nos quatro ou cinco anos seguintes, anónimos, até que um dia um actor me reconheceu num intervalo e disse, “O que faz aqui? Os franceses nunca vêm aqui. Há japoneses, alemães, mas franceses não.” Conheci finalmente Ayckbourn, bebemos uma cerveja e elogiei-o. Suspirou, “Obviamente, não sou o Chekhov.” Respondi-lhe, “Bem, não, é muito melhor do que o Chekhov.” Foi um encontro cheio de emoção. Alguns anos depois, vi a Sabine a rir-se sozinha a ler uma enorme peça de Ayckbourn intitulada Intimate Exchanges, com apenas dois atores a representar uma multiplicidade de personagens e em que tínhamos de ir doze vezes ao teatro para a ver na íntegra! Encontrei-me com Ayckbourn para lhe perguntar se aceitava que eu a adaptasse, no que se veio a tornar Fumar/Não Fumar. Na altura, ele já escrevera quarenta peças. Disse-me, “Esperava tudo, menos que pegasses nessa. És ainda mais doido do que eu.” Eu sabia, porque lera num artigo, que ele detestava que o adaptassem para cinema, por causa das obrigações envolvidas. Por isso, fiz-lhe uma promessa: “Se encontrar um produtor para financiar o filme, não te digo, não te ligo, não te peço para ler a adaptação, nem te convido para jantar. Não saberás nada de mim até o filme estar acabado e to possa mostrar. Nessa altura, e só nessa altura, poderás decidir se o apadrinhas ou não.” Ele ficou encantado. E mantive a minha promessa até hoje. Também em Corações (cuja peça original é Private Fears in Public Places). 
 
«A grande dificuldade em adaptar Life of Riley era a seguinte: como é que o público de cinema compreendia que há quatro jardins que não se cruzam? Usei os desenhos de Blutch, fotografias de Yorkshire e algumas cenas na estrada, para que as pessoas percebessem que os jardins chegavam a ter vinte quilómetros de distância. Esperava que, ao misturar estes três elementos que não se complementam – os desenhos de Blutch não se assemelham aos cenários de Jacques Saulnier, que por seu lado não são nada parecidos às estradas de Yorkshire – o público tivesse a noção da distância. Queria liberdade a fazer o filme. Trabalhei com o Laurent Herbiet de uma forma muito especial. Herbiet é um mágico ao computador. Bastava dizer algo, aparecia logo na máquina. Por vezes, escrevia o que eu dizia antes mesmo de o dizer. Ele pegou na peça e fez logo o storyboard. Para esta fase do trabalho, uso pequenas figuras de plástico que representam os atores e movimento-os. São muitas vezes personagens de filmes que trago das minhas viagens. Gosto que sejam tão anónimas quanto possível. Ajuda-me imenso, posso descrever o todo, enquanto o Herbiet sugere atalhos e ligações entre as sequências. Certa vez, Ayckbourn riu-se quando lhe disse, “Sou contra os cortes, mas gosto de contracções.” Foi ao Jean-Marie Besset, cuja obra de adaptação e como escritor conhecia e admirava, que coube então a tradução, trabalhando na versão inglesa já cortada. Amar, Beber e Cantar? Pensemos em três casais normais, ou considerados normais, sejam felizes ou infelizes. Basta um único acontecimento para perturbá-los, a chegada de George, e tudo fica histérico. Sim, é divertido mas, ainda assim, há momentos em que a sombra da morte passa, com música leve. Algo bastante raro aconteceu com este filme: quando terminámos, eu e o montador Hervé De Luze notámos que o caixote das offcuts – para onde deitamos as offcuts ou cenas eliminadas – estava vazio. Não cortámos nada, aproveitámos tudo. Sim, podemos dizer que não fizemos lixo! A verdade é que havia muitas cenas de sequência, cenas filmadas em continuidade. De facto, os actores foram incríveis. Juntavam-se e ensaiavam de livre vontade, fora da agenda de produção. Isso poupou-nos muito tempo. 
 
«O que ainda o faz ser cinema, apesar de termos usado todo o tipo de artifícios do teatro, como substituir portas por cenários pintados que podiam ser puxados para o lado? É um verdadeiro mistério. Claro que, embora tenha resultado a favor do filme, era preciso poupar dinheiro. A minha abordagem passou por um grande salto para trás no tempo, pensando em Sacha Pitoëff e na sua mulher. Sempre que encenavam uma peça no Théâtre des Mathurins, não tinham dinheiro para os cenários. Usavam cortinas velhas e pediam emprestadas carpetes antigas, conseguindo sugerir interiores suntuosos. Eu disse ao Jacques Saulnier, “Se o Sacha Pitoëff fazia, também podes fazer.” Ele tentou protestar, dizendo “Sim, mas no cinema...” mas eu respondi-lhe, “Bem, temos de tentar.”»[1]

[1] retirado do presskit da Alambique Filmes, distribuidora do filme em Portugal.;



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